Aspectos relativos ao recital piano solo

É melhor debater ideias sem regulamentá-las
do que regulamentá-las sem as ter debatido.
Joseph Joubert (1754-1824)

A recepção à epígrafe do post anterior, a abordar conceitos sobre a atividade “profissional” do pianista, causou-me surpresa. Reproduzo-a: “A carreira de pianista também é muito difícil. Há tanta dedicação! Se não houvesse essa vocação, esse talento, essa vontade, nada seria compensador. A recompensa é mais espiritual do que qualquer outra coisa: porque, material, certamente não é! A pessoa se dedica tanto! É uma experiência espiritual que eleva a pessoa. A pessoa penetra naquela música, e fica alheia do mundo por aquele período. Acaba levitando dentro daquela música.” Os inúmeros e-mails não deixaram de louvar, sem exceção, a pianista Eudóxia de Barros em seu trabalho cotidiano em prol da música brasileira e a epígrafe em apreço de Henrique Morelenbaum.

Considerando-se pianistas de minha geração, não é difícil concluir que havia no país uma maior oportunidade para recitais de piano, com cachets pertinentes. Apenas na cidade de São Paulo o pianista se apresentava algumas vezes ao ano e com salas abrigando bom público. Quase todos de minha geração tocaram, como exemplo, no Teatro Colombo, no Largo da Concórdia, no Brás, que seria consumido pelas chamas em 1966. Naquele período havia menos entraves burocráticos e as instituições, públicas ou privadas, convidavam o músico, recolhiam os impostos devidos e pagavam o que lhe era devido. Quanto aos entraves burocráticos, Eudóxia de Barros, em “Valeu a Pena?”, apresenta generosamente os passos para um intérprete conseguir dar entrada no Ministério da Cultura, a fim de obter o registro necessário e daí partir em busca de patrocinadores!!! Eudóxia de Barros comenta: “Já me aconteceu de que quando consegui o patrocinador, o prazo de validade do registro no MINC tinha expirado. Voltamos à estaca zero e daí resolvi nunca mais cuidar dessa parte tão burocrática e cansativa. Enfim, é muito complexa a intermediação entre as entidades que contratam e o pianista que precisa se atualizar com todos esses procedimentos para manter sua carreira!”. Servindo-me de várias observações pontuadas no livro “Valeu a Pena?”, a pianista Eudóxia de Barros, que percorreu centenas de cidades e Estados brasileiros, exceção a Tocantins – certamente aquela que visitou o maior número de localidades do país para recitais em teatros e auditórios -, verifica-se sensível declínio da apresentação piano solo. Factível uma das considerações, a apontar que o recital solo atualmente tem menor apelo junto às instituições e promotores, em detrimento da apresentação conjunta. Eudóxia de Barros é enfática ao observar que “as Secretarias de Cultura não vêm se interessando muito por recitais de piano. Não está fácil conseguir concertos, porque as Secretarias de Cultura, que existem aos milhares no Brasil, quase não contratam mais recitalistas. O pianista depende, sobretudo, de patrocinadores ou do SESC e SESI”. Sob outra égide, bem menos causadora de impacto no imenso Brasil, as “Grandes” Sociedades de Concerto, quando agendam um pianista pátrio – contam-se estes nos dedos de uma apenas das mãos – fazem-no prioritariamente no formato piano e orquestra.

Henrique Morelenbaum tem extrema razão ao dizer que “a recompensa é mais espiritual do que qualquer outra coisa: porque, material, certamente não é!” Tirando-se os que “se contam nos dedos de uma apenas das mãos”, os pianistas residentes no país sabem que os cachets são bem menores do que antanho, pois o interesse diminuiu. Se amparada pela lei Rouanet e por poderosos patrocinadores, as possibilidades se apresentam. Considere-se que a música popular e as “celebridades ‘vocais’ popularescas” têm consideravelmente uma guarida extremamente mais ampla – público avassalador em gestual uniformizado – e, em acréscimo, casos de desvios vêm a público. A decadência da arte erudita, enfatizada por Mario Vargas Llosa no livro “La Civilización del Espectáculo”, e a certeza de promotores visando à quantidade de público e rarissimamente à qualidade do ouvinte, explicariam em parte a queda dos valores eruditos. O lucro a preponderar sobre a Cultura. Antolha-se-me que, na música erudita ou de concerto, a apresentação individual de um intérprete não pertencente à “seleta” elite bafejada pelo binômio patrocínio-holofote, estará a cada ano mais restrita a público diminuto, mas geralmente qualificado. Diria, audiência de resistência. Sem o fator formado pelo binômio acima, o intérprete individual estará a buscar a “recompensa espiritual” mencionada  por Morelenbaum. Comentei, em tantos blogs, que voluntariamente muitos pianistas altamente qualificados não têm propensão a situações necessárias para serem ungidos, como a constante viagem ou o holofote que pode obliterar intenções mais dignas. Mencionei várias vezes meu Mestre em França, o pianista Jean Doyen (1907-1982), pertencente a um nível de primeiríssima elite, mas que era avesso às “badalações” mediáticas.

Para o pianista que pratica repertório conhecido do grande público, que insere composições brasileiras e, por motivos tantos, obtém patrocínios, as chances de ser abrigado pelas leis de incentivo são maiores. A realidade, contudo, é mais dramática para aqueles que, sem acesso a poderosos patrocinadores e consequente “amparo” da Lei Rouanet, insistem no piano solo em apresentações fortuitas. Se convidados por Universidades no país, têm de se sujeitar aos pro labores apenas; se lembrados por entidades particulares, ficam a mercê do imponderável. A universidade surgiria como “refúgio” de sobrevivência e possibilidade até de rumos outros, devido ao “canto das sereias” administrativo.

Considerando parcela apreciável de pianistas docentes na universidade, a hipótese de drástica desmobilização quanto à eventual carreira artística é real. São necessárias disciplina férrea e perseverança para conciliar aulas, burocracia imensa na Academia e o estudo pianístico e, nesse aspecto, Eudóxia de Barros mostra-se bem cética em “Valeu a Pena?”, justamente pelo desvio de foco. Apenas não menciona, por desconhecer possivelmente as entranhas universitárias, que incontáveis reuniões intramuros são estéreis, como, aliás, majoritariamente na vida política do país.

O consagrado pianista francês Désiré N’Kaoua – meu colega durante curso na classe da legendária Marguerite Long – afirmou recentemente, em longa e substancial entrevista para o site “Pianodoux”, que “o que eu não diria, sob pena de ser acusado de ‘tentativa de desmoralização da legião’ de pianistas, é que sou bem pessimista no que concerne ao futuro do piano, pelo menos em sua formatação de recital público. Creio que o piano está intimamente ligado ao período romântico, durante o qual ele era essencialmente vocal e não destinado a se tornar o símbolo da destreza e da percussão, tal qual o é atualmente. Outro motivo da redução do público: uma visão geopolítica da música ocidental nos revela rapidamente os gigantescos territórios que não mais estão dispostos a receber essa música essencialmente europeia, que alimentou toda a nossa existência. A rapidez dos meios de transporte e a propagação de CDs de todas as origens pelo planeta tiveram como consequência uma incrível proliferação de aprendizes-pianistas, assim como de concursos, sendo que esses oferecem uma sobrevida de curta duração ao laureado – até a aparição de um novo ungido -, abandonando-o à própria sorte, tornando o primeiro, doravante, um pianista em busca de algum concerto. Paralelamente ao rush de novos pianistas, o público que os acolhe encolheu drasticamente”. Em meu livro “Témoignages – Entretien avec le pianiste brésilien José Eduardo Martins” (Paris Sorbonne, 2012), abordava o tema e dizia que, anualmente, legião de pianistas do Extremo Oriente inunda concursos internacionais de piano, habilíssimos instrumentistas, mas na grande maioria com ausência de ideias precisas e criativas.

Pareceria evidente que há mercado para a quantidade de pianistas premiados em concursos internacionais, geralmente por período curto, raramente a ultrapassar um ano. A proliferação dos certames e a quantidade de primeiros prêmios agraciados por numerosos recitais e concertos, logo após a láurea máxima, não são garantias de carreira certa. Seriam as “leis da natureza” a minimizar o laureado anterior, a fim de promover o novo talento. Proliferam os exemplos. Essa assertiva ocorre basicamente em todas as áreas. Uma quantidade mínima consegue prosseguir com uma agenda de concertos preenchida. Vários fatores envolveriam o pianista eleito nesse desenvolvimento a ultrapassar a barreira do prazo vencido: talento indiscutível, patrocinadores relevantes, contatos certos e repertório. Muitos talentos sucumbem ao day after da premiação pelo fato da limitação de repertório e da impossibilidade de, em curto prazo, edificá-lo. O mercado é implacável e a depressão pode instaurar-se.

François Servenière elabora outra metáfora àquela que apresentei no livro citado. “Em seu livro da série ‘Témoignage’, publicado pela Sorbonne, do qual fui um dos entrevistadores, você estabelece metáfora em algumas páginas sobre a existência na ponta do iceberg do repertório super frequentado e na massa submersa, escondida, do repertório pouco tocado ou nunca programado. No âmbito da interpretação, proponho outra metáfora, da montanha. Há aqueles raríssimos, que conquistaram os 14 picos himalaios acima dos 8.000 metros e tantos outros que repartem os cerca de 200 picos na faixa dos 7.000m, também no Himalaia. Virtuosidade na ascensão, perigos enfrentados, risco mortal nas duas faixas de altitude evidenciam profundo valor. Todavia, a mídia apenas projeta todos os holofotes nos ungidos que realizaram o feito do acesso aos 14 picos, as cumeeiras, o Olimpo!!! Casta à parte e poderíamos considerar normal a atitude. Diria que a metáfora relativa ao Himalaia bem se aplica à elite na música, no caso, aos pianistas. A parte submersa do iceberg ou os dificílimos picos logo abaixo dos 8.000m não contam para a mídia. Ficam nas profundezas (iceberg) e na sombra (montanha), respectivamente. Apenas a elite tem o privilégio da unção, independentemente de talentos e qualidades individuais” (traduções: JEM). O certo é que, se aqueles que tiveram acesso aos picos próximos aos 8.000m têm pouca divulgação, menos ainda os que, meritórios, não atingiram os 7.000m. Lembremo-nos que a maior altitude abaixo dos 7.000m está distante da cordilheira do Himalaia. Trata-se do Aconcágua (6.962m) na Cordilheira dos Andes. Metáforas à parte, o recital de piano fora das condições de elite está em crise.

O tema é rico, polêmico e a ele darei espaço no próximo blog, aproveitando trechos da entrevista e da mensagem dos ilustres músicos Désiré N’Kaoua e François Servenière, respectivamente, que acrescentam, inclusive, outros temas significativos relativos à interpretação.

Nowadays space for soloists dwindles as sponsors focus primarily on pop shows and, in terms of classical music, on orchestras, since grandiose shows capture more public and bring in receipts in ticket sales. Only star soloists – in special foreign ones – have a chance and audiences get more of the same, for they keep hearing the same things again and again. Winners of international competitions may become overnight superstars, but just until the next winner is chosen. Profit prevails over culture and legions of excellent soloists remain unknown because financial backers prefer a handful of celebrated performers. As Vargas Llosa announced in his book “Notes on the Death of Culture: Essays on Spectacle and Society”, high culture is dying, replaced by mere entertainment.