Tema que pode aplicar-se a inúmeras áreas
Acredito que o piano traduz uma confidência,
e esta não se grita sobre o telhado.
Désiré N’Kaoua
Há temas que extrapolam os limites de determinada área. Métodos podem diferenciar-se, mas a essência temática torna-se coesa e doutrinária a partir do enfoque abrangente que se lhe queira dar . A pedagogia relacionada a uma área do conhecimento tem com frequência vertentes que se aplicam em campos do conhecimento por vezes antagônicos.
Ao tratar, no post anterior, da crise do recital de piano solo, mormente para os intérpretes sem o abrigo de patrocinadores e das luzes dos holofotes, tópicos outros foram apreendidos nos textos que inseri anteriormente e de autoria dos notáveis músicos franceses Désiré N’Kaoua e François Servenière, pianista e compositor, respectivamente.
Primeiramente, há um aspecto que se torna mais sensível à medida que a tecnologia avança em seus multifacetados meios de comunicação. Paradoxalmente, há o progressivo desinteresse pelos padrões culturais que foram a base sólida da cultura ocidental. Désiré N’Kaoua comenta, com profunda agudeza e, hélas, ceticismo, vários dos muitos problemas que atingem o cerne da denominada música clássica ou de concerto, nas várias entrevistas concedidas recentemente para o site www.pianodoux.fr: “A história do piano ensina-nos que, no começo do século XX, a chegada de um virtuose numa capital era anunciada bem antecipadamente como um evento, as senhoras pensavam no que vestir ou mesmo encomendavam uma nova toilette para a ocasião. E hoje, é isso que ocorre?” Lembraria que Alfred Cortot (1877-1962), ao realizar tournée pelo Japão, ganhou da imperatriz uma ilha, Cortoshima, oferta rigorosamente impossível de ser dada na atualidade. Continua N’Kaoua: “Paralelamente ao rush de novos pianistas, o público reduziu-se consideravelmente. A seguir a segunda grande guerra, a maioria dos melómanos europeus não supunha sequer a ideia de inserir, no interior do vocábulo ‘música’, outra coisa que as obras de grandes criadores como Mozart, Beethoven, etc… assim como algumas belas canções populares. O jazz, já existente há decênios no outro lado do Atlântico, veio (por que não?) a ser aceito até por aficcionados sectários e a ter abrigo no vocábulo ‘música’. Evitando-se um casamento misto, tomou-se o devido cuidado de delimitar fronteiras, qualificando-se de ‘clássica’ as obras escritas pelos grandes compositores incensados através da História. Sessenta anos após, o que nós chamamos de música, e que acreditamos ser eterna, mendiga um espaço restante, drenando um público cada vez mais restrito. Os amorosos dessa música, qualificada erroneamente de elitista, encontram-se confinados em um gueto e a mídia (cuja ambição é expandir seus índices) tem dúvidas sobre o concerto, e não se aflige sobre o fato de o Requiem de Mozart ser utilizado para suporte de uma publicidade”. E sobre a alienação da juventude frente à música clássica: “Os jovens que crescem hoje são ‘acalentados’ pelos ritmos primários, que desconhecem o sentido da música. Quem virá amanhã aos concertos? Sob outro enfoque, qual a porcentagem de crianças chegadas à adolescência que continuará a estudar um instrumento, sabedores que aprender é sinônimo de esforço? É fato que os vídeos são tão mais atraentes!!!”.
O desvio de intenções, voltado às “geringonças” sempre in progress – iPad, iPod, iPhones - e seus infindáveis aplicativos, está a retirar das gerações mais novas a reflexão necessária. Colados às telinhas, multidões em compulsão fixam-se nas mensagens que proliferam nessa via em expansão, o WhatsApp. Essa distração globalizada impede a concentração, a disciplina e N’Kaoua, ao mencionar que “aprender é sinônimo de esforço”, aponta para uma realidade sem retorno. Tornar-se-ia evidente que o estudo sério de um instrumento musical, independente da apreensão de toda uma estrutura contida na partitura e além dela, requer disciplina espartana para que objetivos concretos se realizem. E estariam as gerações que surgem dispostas ao “sacrifício”, quando um totus se apresenta tão mais fácil? Não teria a pianista Eudóxia de Barros, no seu livro “Valeu a Pena?”, enfatizado incontáveis vezes a necessidade do estudo diário imprescindível?
O compositor e pensador François Servenière comenta: “admiro a dimensão geopolítica de Désiré N’Kaoua (post anterior). O que mais me chamou a atenção foi justamente a análise sobre a predominância da cultura europeia, que estancaria frente à mundialização, correlativamente à predominância de um de seus instrumentos culturais e burgueses mais emblemáticos, o piano”. Servenière escreve sobre os impostos do Estado taxando abusivamente a arte. “A arte era justamente a última coisa, individual, introspectiva, íntima, talvez reputada pelos invejosos como pertencente à burguesia – nada é menos seguro -, que poderia fazer supor estar fora da soberana e implacável tutela do Estado, da lei, muitas vezes oriunda geneticamente da violência cruel e injusta dos senhores ou príncipes de antanho contra seus povos. E por que não impor as garras sobre lápis, pincéis, cadernos, cores? Violência soberana, que provocou, há não muito tempo, nossa ensanguentada revolução francesa, com suas chagas jamais cicatrizadas e que se podem abrir a qualquer momento”. Não seriam os tentáculos do Estado a taxar a Cultura como um todo, como o faz com produtos banais de consumo, uma das formas do desvio de intenções? Sob outro ângulo, a grande maioria dos dirigentes culturais desconhece o sentido da palavra Cultura, entendendo-a como entretenimento, apenas. Assim não agiu o prefeito eleito João Dória ao convidar inicialmente Boni Sobrinho para a Secretaria da Cultura, que acabaria declinando o convite, ele um nome emblemático do… entretenimento? E a Cultura erudita, que não pertence aos índices mediáticos estratosféricos, mas que é base essencial para que não percamos o norte? Teria o futuro alcaide a noção ao menos potável da abrangência da Cultura? Servenière continua: “Pode-se entender a mundialização como parâmetro evidente da decadência do recital de piano face às grandes máquinas espetaculares, que fazem lembrar um verdadeiro Barnum nos estádios para 80.000 lugares. Como lutar contra a potência dos decibéis, dos astros do rock e da canção? Pela inteligência. Na França, país de ponta no progresso e nos excessos, temos o rap, as mídias e a televisão invasora, a vulgarização do pensamento, seja ele artístico ou político, literário ou filosófico. Os códigos milenares da pintura e da escultura foram pisoteados pelos aprendizes de Fausto, teóricos da ideologia fecal encurralados e a levar a arte à sua vibrante dimensão do caos original, o menos digno que se possa imaginar. Não, não estou a metamorfosear artificialmente, nessa atualidade consumista que não sabe a diferença entre o universal e o banal, entre a escatologia e a coprologia. Um mundo de m—- gera o que promete e idealiza”. Para tanto, Servenière apresenta link com obras tidas como “arte”, fecais gigantescas que ocupam espaços em jardins, parques e museus do Ocidente. Mario Vargas Llosa não teria mencionado exposição em Londres onde a “obra de arte” era representada pelo material constituído por fezes de elefante?
Servenière, em sua longa mensagem, retoma o item relativo à “geopolítica ligada ao desaparecimento do recital de piano e do piano… Pode-se invocar essa posição, pois nenhuma forma de expressão tem na essência validade universal para a eternidade. A moda e os instrumentos passam. Contudo, a sociedade humana é feita de ciclos, de avanços e recuos, de fases de excessos e, como contradição, de temperança, o que me leva a lembrar frases de Franz Liszt: “Fecundar o passado pensando no futuro, eis para mim o sentido do presente”, e de Nietzsche: “O homem do futuro será aquele que terá a mais vasta memória”. Que significam essas duas frases magistrais, pensadas por dois grandes mestres do passado? Simplesmente que o indivíduo que não tem memória (histórica, artística, cultural, semântica, visual, sonora, linguística, filosófica…) não terá futuro. Vivemos atualmente um dos grandes cismas psicosociológicos da história”.
Em artigo publicado nos anos 1980 (“As mortes do intérprete”, Cultura, O Estado de São Paulo, 24/12/1988), mencionava que a gravação é a aparência da perpetuação. Escrevia: “Pense-se no piano Bösendorfer-Computer ‘SE-Grandpiano’, capaz de dar ao registro fonográfico o real absoluto, onde a inexistência física do intérprete – ou o seu fantasma – , após gravação fixada, restitui à obra exata fidelidade da execução no instrumento mesmo em que o registro se verificou”. Tive a oportunidade de gravar uma peça de Rameau num desses pianos, em demonstração numa Feira de instrumentos no Anhembi, em São Paulo, ouvindo-a após, exatamente como se estivesse a tocar, ou seja, as teclas abaixavam durante a execução e eu, em pé, só observava atônito a minha interpretação tal qual a tinha realizado. Disse-me o representante da empresa que, doravante gravada e arquivada, em qualquer momento alguém no planeta poderia ouvi-la, desde que em instrumento similar. Atônito também fiquei ao sentir a “digitação” de grandes mestres mundiais do piano em obras fantásticas, teclas sendo acionadas, por vezes em velocidades à la Usain Bolt, como no caso do fantástico pianista de jazz Oscar Peterson. Teclado em seus movimentos naturais, mas sem a figura humana, e o som real transmitiam uma estranha sensação presencial. Servenière menciona o Diskklavier da Yamaha, inventado em 1980, e vê no processo dessa “família” tecnológica, próxima à do piano Bösendorfer, um caminho distinto, “o piano do recital solo a entrar no futuro neste século XXI !!! Muitos poderão urrar, voltados que estão ao purismo. Não eu. Para mim a cultura do piano se difunde, e as performances dos mais ilustres contemporâneos estão gravadas. A geração passada recusa o processo, mas ela também recusou a informatização eletrônica décadas atrás para o órgão instrumento, processo que pode manter todos os dados arquivados pelo organista. Os puristas que não concordam utilizam em suas casas aparelhos de microondas, celulares, computadores e televisão. Doravante, o piano tem mais esse caminho e as performances dos grandes pianistas (do presente e do futuro) poderão ser escutadas em tempo real, tranquilamente, em casa. Não falo dos meios de difusão da música, graças aos aparelhos domésticos que conquistaram o mundo inteiro. A Cultura sempre teve opções outras em seu baú… Nada há que comprove a sua morte, pois, acredito, o inverso está a se produzir. Como sempre, há cumeeiras e abismos, ciclos, recuos, renascimento, novos meios de difusão, desaparecimento de modismos, novos processos artísticos. Haverá uma triagem natural no que concerne à cultura. Os povos, mesmo enclausurados em campos de concentração e de morte, sabem o que é importante ou não. Depois da enxurrada de idiotices musicais que inunda o planeta, o ouvinte retorna aos lugares onde ele sabe que encontrará a qualidade, mais do que a absurda quantidade de furor e barulho ensurdecedor. Os povos, naturalmente, sabem o que é necessário salvaguardar ou não, mesmo nos períodos de caos. Enfim, seu último post permite essas digressões filosófico-histórico-pragmáticas. Há a necessidade de retorno ao trabalho manual, necessário para certas qualidades e experiências valorizadas no passado e, como escrevia Rousseau, ‘é necessário cultivar nosso jardim’. A tecnologia virtual evolui sem limites… mas sem o contato com a terra, com o real, essa inteligência ‘retorna ao caos’. De maneira cíclica”. Não por acaso, Désiré N’Kaoua observa em sua entrevista plena de reflexões: “Ao chegar à idade próxima de meus mais de 80 anos, dividi meu tempo ora dedicado ao piano, ora à jardinagem cotidiana e aí, como faço ao ler uma obra musical, a menor folha morta sobre a terra é para mim como uma mancha sobre uma bela partitura”. (traduções: J.E.M.)
Todas essas observações de ilustres músicos e pensadores nos levam à reflexão sobre o futuro do piano. Salientaria que a tecnologia mecânico-sonora dos pianos Bösendorfer e Yamaha, mencionada acima e datada das décadas de 1980, ocupou poucas salas de concerto, mas aponta para o futuro. Sob outro aspecto, aperfeiçoamentos acrescentados aos pianos Steinway, assim como a qualidade indiscutível dos instrumentos Fazioli, levam-nos a pensar. Se, por um lado, as grandes marcas são basicamente destinadas às grandes salas de concerto espalhadas pelo planeta, mercê dos preços altíssimos, os recitais de piano solo nas pequenas salas continuarão colocando, mormente no Brasil, o pianista sempre em alerta, pois jamais saberá a qualidade do instrumento que terá de enfrentar. Um recitalista experiente poderá não se lembrar dos melhores pianos, mas jamais se esquecerá de um mau piano.
Continuo pleno de esperanças, friso.
Resuming the subject of last week’s post, I transcribe excerpts of an interview given by the French pianist Désiré N’Kaoua and of an e-mail message from the composer François Servenière, both musicians giving their views on the issue of shrinking spaces for piano solo performances.
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Chapecoense (In Memoriam)
Nada sabemos a respeito de determinados desígnios. A tragédia que se abateu sobre a valorosa equipe de futebol da Chapecoense só ocorreu graças ao contrário absoluto, instantâneo, fruto do mais preciso reflexo. Ao defender com o pé direito uma bola certeira endereçada ao gol da Chapecoense, chutada por jogador do San Lorenzo, Danilo, o goleiro salvador, “São Danilo”, doravante aclamado pelos milhares de torcedores que acorreram à Arena Condá, em Chapecó, eliminava a equipe argentina e entregava a caneta àquele que redigiria, uma semana após, o atestado de óbito de praticamente toda a gloriosa equipe da aprazível e congraçadora cidade. Assisti pela Fox Sports aos dois jogos inteiros entre a Chapecoense e o San Lorenzo, esta a equipe do Papa Francisco. No instante do acontecido, o brilhante narrador Deva Pascovicci, em locução apaixonada, exaltou o milagre da defesa de Danilo, o goleiro “salvador”. Lógico, também vibrei. Pascovicci, Danilo e mais 69 atletas, dirigentes, jornalistas e tripulantes da aeronave sucumbiram.
Como sempre o faço, não me inclino a escrever imediatamente após qualquer acontecimento. Fá-lo-ei na próxima semana. A decantação elimina incertezas.
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