Tradição que se estiolou

Peu à peu, la mémoire m’est cependant revenue.
Ou plutôt je suis revenue à elle,
et j’y ai trouvé le souvenir qui m’attendait.

Albert Camus

A fazer parte de tradição cultural que se perpetuou até basicamente o advento da internet, o denominado “Livro de Ouro” era comum entre os jovens que buscavam, num impulso natural, obter autógrafos ou mesmo depoimentos de figuras respeitadas. Colegas da minha geração também os conservavam com carinho. Meu irmão João Carlos e eu, sempre que possível, colhíamos simples dedicatórias ou opiniões abalizadas de mestres consagrados. No meu Livro de Ouro constam depoimentos de Marguerite Long, Fernando Lopes-Graça, Felicja Blumental, Camargo Guarnieri, Lídia Simões, Antonieta Rudge e tantos outros. Em outros segmentos de registro, conservo carta do grande pianista Alfred Cortot sobre os dois irmãos pianistas.

O Livro de Ouro tinha uma dupla função. Uma primeira relativa à alegria da “colheita” de autógrafos de personalidades de nossa área recentemente adentrada. Numa outra visão, bem mais profunda, serviam determinados depoimentos como incentivo que corroboravam o intento de prosseguir estudando. Mais focalizado, o depoimento  adquiria a força da crítica musical competente publicada em jornais àquela altura e que impulsionava os jovens que éramos à difícil escolha já feita.

A depender da área de atuação, nossos tempos eram generosos. Figuras reconhecidas pela competência assinavam ou depunham nesses pequenos relicários o que sentiam pelo solicitante, e tão mais intenso o envolvimento se o convidado já conhecesse virtudes do jovem possuidor do Livro de Ouro, a resultar, de sua parte, análise artística e até psicológica do novel músico.

Dias atrás, minha mulher Regina, ainda às voltas com uma quantidade de dados de sua mãe, a competente professora de piano Olga Normanha (1915-2013), encontrou entre seus pertences um Livro de Ouro. Sobre a pedagoga há dois blogs (“Professora Olga Rizzardo Normanha”, 02 e 09/03/2013). Olga Normanha, nascida em Campinas, estudou no Conservatório Dramático e Musical de São Paulo e teve mestres ilustres. O seu Livro de Ouro, a conter assinaturas e depoimentos, seria mais um, não fosse a presença de autógrafos diferenciados envolvendo dois dos mais extraordinários compositores de nossa História Musical: Francisco Mignone (1897-1986) e Heitor Villa-Lobos (1887-1959). As mensagens deixadas em seu Livro de Ouro datam do período dos estudos de Olga em São Paulo, em 1931.

Aspectos fulcrais levaram-me a considerar um blog sobre a matéria: a relevância dos compositores, a camaradagem existente entre os dois e o ineditismo de tais mensagens, fixadas num singelo livro de recordações. Há jocosidade nas mensagens, pois Mignone estimula Villa-Lobos, sabedor de uma sua visita ao Conservatório Dramático de São Paulo no mês seguinte, a escrever uma possível resposta à sua provocação. A jovem estudante Olga não se esqueceria da primeira mensagem e, tão logo diante do consagrado Villa-Lobos, apresentou a afirmação de Mignone, que recebeu pronta resposta. A mensagem de Mignone é de 5 de Outubro de 1931 e a de Villa-Lobos, de 4 de Novembro do mesmo ano. O “diálogo” musical, guardado com carinho ao longo da existência por Olga Normanha, e outras mais mensagens, inclusive do extraordinário cantor lírico Tito Schippa “à la Signorina Rizzardo, ricordo de…”, não ratificariam certezas?

O Livro de Ouro nessa configuração plena de fantasia, hoje basicamente extinto, hélas, não responderia, na essência essencial, à degradação cultural presente em velocidade geométrica em tantas áreas? Estudiosos têm insistido nessa tendência à cultura de massa insuflada por interesses vários visando lucros extraordinários e dimensionada de maneira plena pela mídia. Nos megashows o que se vê é a multidão realizando os mesmos gestos e a gritar automaticamente letras de “canções” apresentadas. Paupérrima qualidade “musical”, imundície deixada pós show, drogas dão o exemplo da degradação denunciada por figuras como Mario Vargas Llosa. O que pensar se até os textos exaltando ad nauseam essa cultura, hoje em plena ascensão, estão plenos de incorreções gramaticais e conceitos vazios, que fariam corar vestibulandos de outrora! Que o leitor entre nos portais mais ventilados! Dificilmente um parágrafo subsiste sem incorreções, por vezes grosseiras. A lamentável TV aberta, em seus noticiários, exalta os personagens dos megashows e simplesmente ignora a cultura tradicional, base de nossa civilização. Difícil encruzilhada.

Mudaram-se costumes e, hoje, uma mocidade mais focada no flash da “colheita” de autógrafos de “celebridades” que se apresentam com suas bandas e parafernálias de toda sorte, assim como outra faixa da juventude que obtêm assinaturas de seus ídolos esportivos, conservam “álbuns” assépticos, pois sem qualquer envolvimento com o solicitado. A efemeridade desses cadernos de autógrafos ou simples folhas de papel soltas tem a justa medida do essencial efêmero de tantos que colocam suas assinaturas ou simples rubricas. Hoje nem mais isso permanece, pois o jovem busca a selfie, aparência da “eternidade”, que se perde nos arquivos das geringonças eletrônicas, mas que é diariamente almejada pela mocidade junto aos ídolos de plantão. Apenas o registro do instante do acontecido, que nada tem a ver com o caminho que o jovem já escolheu ou pensa escolher.

Saudosismo? Sim, saudosismo. Ao me referir ao Livro de Ouro como exemplo da esperança que impulsionou gerações para a ratificação de vocações antes indecisas, e que durante a existência seria consultado ou lembrado com a compreensão devida, volto-me à mente daquele que escreveu a mensagem, arauto provável das certezas. As trajetórias dos que deixaram testemunhos e dos dedicatários podem um dia se nivelar, a depender de um sem número de circunstâncias. O Livro de Ouro testemunha um período sem retorno. Há muito esvaíram-se imaginação, fantasia e o gosto. Tempos plúmbeos.

In the old days, before the advent of the internet, there existed the tradition of keeping a “Golden Book”: an authograph book to collect signatures, sayings and words of encouragement from family, friends and famous people who meant something for the book owner. Some time ago my wife Regina found her mother’s – an outstanding piano teacher – autograph book and inside it, dating back to 1931, two precious hand-written entries (reproduced here) from two of the most extraordinary Brazilian composers of all times: Francisco Mignone and Heitor Villa-Lobos. Unfortunately such precious little treasures are a fading trend today, when email messages are read, deleted and soon forgotten and young people choose to collect autographs from celebrities with no connecting links whatever with their lives. Just a signature on a blank page, devoid of all meaning. Gloomy days!