Sérgio Monteiro e um grande desafio

Liszt escreveu “Poemas Sinfônicos”
que são rapsódias heróicas, epopeias pitorescas,
sinfonias programáticas.
Certamente o Poema Sinfônico não é rapsódia,
mas ele reúne, como indica seu nome duplo,
a organização do desenvolvimento,
que é obra da Razão,
e a liberdade caprichosa do Poema,
que se norteia através da Fantasia.
Vladimir Jankélévitch
(La Raphsodie – Verve et  Improvisation Musicale, 1955)

Franz Liszt (1811-1886) foi possivelmente o mais eclético de todos os compositores românticos. Sua obra é imensa e abordaria com segurança os mais variados gêneros. Pianista de recursos descomunais, Liszt inventaria uma das frequentadas manifestações artísticas voltadas à música, o recital de piano. Para tanto, exibiu durante décadas pela Europa a sua arte pianística, onde preponderavam a técnica absoluta e a prodigiosa memória. A produção composicional de Liszt para piano privilegia limites extremos como acrobacia e profundo lirismo ou contemplação, neste caso mormente nas últimas décadas da existência, quando uma percepção voltada ao misticismo se instaura definitivamente. Para os intérpretes, Liszt permanece sempre como desafio a ser vencido. Sua aluna Amy Fay, conta em seu famoso livro “Music study in Germany” (1880), a ação hipnotizadora que suas interpretações causavam no público, ávido por assistir às apresentações do “demiurgo” (vide blog “Amy Fay – Missivas Cativantes de Musicista Norte-America”. 29/12/2012). Liszt transforma o denominado salão, frequentado pela aristocracia, preferencialmente, em sala de espetáculo, sendo ele o epicentro.

O obra orquestral de Liszt compreende vários gêneros. O Poema Sinfônico é um dos mais significativos. O roteiro programático, tendo como inspiração o extra-musical descritivo, poético ou literário, tem influência decisiva nesse gênero sinfônico. Contrariamente a Hector Berlioz em sua célebre “Sinfonia Fantástica”, dividida em cinco partes e baseada em programa igualmente, Liszt busca a síntese em um só movimento, distanciando-se do tradicional arcabouço da sinfonia estruturada em três ou mais andamentos. Em 1833 Liszt faria a transcrição para piano da “Sinfonia Fantástica”. A concentração ao conceito formal do Poema Sinfônico levaria Liszt a mais de uma dezena de criações obedecendo a unidade. A apreensão do todo dramático, a induzir claramente o ouvinte à ação, imprime ao Poema Sinfônico lisztiano caráter inovador.

Se os Poemas Sinfônicos do mestre nascido na Hungria se apresentam concentrados, privilegiando a denominada “música de programa”, na “Sinfonia Fausto”, tripartida (três estudos de caráter a partir de Johann Wolfgang Goethe), o compositor abandona a estrutura monolítica. Tem-se, pois, uma Sinfonia de programa.

Para o piano, seu instrumento eleito, Franz Liszt legou produção enorme, mas curiosamente quase a metade é constituída de transcrições. Frise-se que o virtuose absoluto sempre teve visão orquestral e, quando a orquestra era o objetivo maior, a transcrição para piano torna-se-ia uma extensão. O domínio absoluto do teclado fê-lo entender que a transcrição para piano de seus Poemas Sinfônicos, a envolver a dinâmica em seus limites extremos, poderia atender perfeitamente aos seus desideratos como pianista. Liszt transcreveria para piano, entre tantas composições, as Sinfonias de Beethoven, apresentando-as em público. Aberturas de óperas e lieds de autores diversos, assim como obras para órgão de J.S.Bach foram por ele transcritas e incorporaram-se ao seu repertório.

A NAXOS está a publicar a obra completa para piano de Franz Liszt. Coube ao pianista brasileiro Sérgio Monteiro gravar o vol. 43 da coleção dedicado às transcrições para piano dos Poemas Sinfônicos do músico húngaro. Escolheram pianista à altura do desafio. Um dos mais destacados intérpretes de sua geração, Sérgio Monteiro tem carreira consolidada nos Estados Unidos, sendo vencedor de importantes concursos de piano, pontificando o primeiro prêmio do 2º Concurso Internacional Martha Argerich, realizado em Buenos Aires em 2003. Estudou com José Henrique Duprat e Myriam Dauelsberg no Brasil e na Eastman School of Music nos Estados Unidos, onde obteve o doutorado. Em blog bem anterior comentei magnífico CD gravado pelo pianista (vide blog “Obras para Piano de Henrique Oswald – Sérgio Monteiro e a escolha criteriosa”. 07/11/2015). Tive o grato prazer de ouvir mais um CD, ora dedicado às transcrições para piano de Poemas Sinfônicos de Franz Liszt, alguns não transcritos pelo compositor, mas por ele revisados e aprovados. São obras de execução transcendental, pois captam a essencialidade orquestral de obras plenamente comunicativas e impactantes. Reduzidas para piano solo, têm de manter tantas vezes, mercê das grandes massas sonoras, sucessões de acordes e oitavas em intensidade extrema. Liszt as apresentava em público para gáudio de seus admiradores. Obras de grande dificuldade, que encontram na interpretação segura e inteligente de Sérgio Monteiro um pianista singular para desafios dessa natureza.

O CD tem início com um dos mais festejados Poemas Sinfônicos de Liszt, “Les Préludes”. Criação de imediata aceitação, para felicidade de regentes do mundo inteiro, tem na transcrição de Karl Klause, revista por Liszt em 1885, uma leitura que não desmerece os valores intrínsecos da composição, frise-se, só possível de ser interpretada por pianistas virtuoses do nível de Sérgio Monteiro. Transcrição de résistance, pois exige do intérprete sua exposição integral. Nas passagens de pleno lirismo, Sérgio Monteiro evidencia toda a compreensão dessas frases longas, lentas, verdadeiros recitativos tão característicos na obra de Liszt  e reveladores do pianista músico na acepção.

A transcrição para piano de “Orpheus” foi realizada pelo aluno de Liszt Friedrich Spiro, sob sua supervisão (1879). Sérgio Monteiro ratifica seu lirismo e todo o Poema, mesmo nos segmentos mais intensos e dramáticos, jamais perde a unidade. As impressões digitais estilísticas lisztianas, perceptíveis em poucos acordes ou numa simples melodia acompanhada, merecem por parte do intérprete o conhecimento de Liszt na abrangência do músico, pensador, místico e generoso mecenas.

A compreensão absolutamente necessária do estilo listiano, a fim de que a obra do compositor húngaro não seja entendida como simplesmente panfletária – assim o é por segmento “purista” -  através de interpretações menos convincentes, pode ser apreendida nos outros Poemas Sinfônicos transcritos para piano e executados por Sérgio Monteiro. “Künstlerfestzug” foi composto para a celebração do centenário de nascimento de Schiller (1759) e transcrito pelo compositor em 1883 (segunda versão). A seguir, Sérgio Monteiro interpreta o Poema Sinfônico “Von der Wiege bis zum Grabe” (1882), (Du berceau jusqu’au cercueil), dividido em três partes. Do todo interpretativo, destaquemos o lirismo pleno de Sérgio Monteiro em Le Berceau; a criatividade na concepção que o pianista imprime à dramaticidade de Le combat pour la vie, desde o tema incisivo inicial; o entendimento que depreende da assimilação dessa mística e misteriosa visão lisztiana a poucos anos da morte em  A la tombe – Berceau de la vie future.

Liszt fez a revisão, em 1872, do Poema Sinfônico “Der nächtliche Zug”, transcrito para piano por Robert Freund. Criação de intensa interioridade, traduzida magnificamente por Sérgio Monteiro nesse poema austero.

O CD finaliza com uma das visões da célebre Valsa Mefisto “Vierte Mephisto-Walzer” de 1885. Sem a abrangência da consagrada e transcendente Valsa Mefisto, tem de ser considerada nesse fervilhar de ideias que percorria a mente do compositor.

Ao longo dos anos tenho insistido nessa renovação repertorial que se faz necessária, imperiosa, diria. As obras do CD em pauta são magníficas. Felizmente, um falso purismo que vigorou durante décadas, anatematizando as transcrições, estiolou-se. Recomendo vivamente o CD Franz Liszt – “Transcriptions of Symphonic Poems” na soberba interpretação de Sérgio Monteiro (selo NAXOS). Mercê de direitos autorais, não ouso inserir uma faixa do CD em meu blog, mas o leitor poderá, através do YouTube, acessar outras belas execuções do pianista.

This post comments on Naxos’s album with piano works by Franz Liszt played by the Brazilian-born pianist Sergio Monteiro. The music on this recording features solo piano transcriptions of Franz Liszt’s symphonic poems either produced by Liszt or transcribed under his supervision. For this project with Liszt’s complete piano works Naxos label has invited artists of the highest caliber and Sergio Monteiro proved to be the right choice. Winner of the 2nd Annual Martha Argerich International Piano Competition in 2003 and a real master of the instrument, he is up to the challenge offered by Liszt’s technically demanding pieces. Listening to this CD is a huge reward for any classical music lover.