Sylvain Tesson en sidecar com Napoleão

Limites da abulia!
Para escapar, leio de tempos em tempos
algum livro sobre Napoleão. A coragem dos
outros nos serve algumas vezes como estímulo.
Cioran
(Cahiers, 17/01/1958)

Sylvain Tesson tem trajetória singular, mas coerente, se entendida no conjunto de sua obra. Daquele vagabond e aventureiro que subia em catedrais pelas paredes exteriores, assim como em frondosas árvores, para  passar dias nas cumeeiras, ao viajante temático que empreende longos percursos, em busca de respostas a tantos fatos e episódios históricos nebulosos, houve um longo percurso. No menu do blog o leitor tem acesso aos títulos dos livros de Sylvain Tesson e às datas em que foram resenhados (Livros – Resenhas e Comentários – Lista).

“Berezina”, de Sylvain Tesson, é livro recente (“Berezina – En side-car avec Napoléon”, Chamonix, Guérin, 2015), no qual episódio desastroso da História da França serve como tema para viagem singular do escritor aventureiro. Tesson buscou realizar o trajeto empreendido pelo Imperador Napoleão Bonaparte (1769-1821) na catastrófica retirada da Grande Armée de Moscou a Paris em 1812. Num Ural, sidecar russo, Tesson e seu fiel companheiro Thomas Goisque, fotógrafo de mérito, realizam, acompanhados a certa distância por outro sidecar pilotado pelos amigos russos Vassili e Vitali, o trajeto longo Moscou-Paris, em pleno inverno. O escritor Cédric Gras, outro amigo, participa de várias etapas da empreitada. Os muitos locais das tragédias são pormenorizados.

Diferentemente de outras aventuras de Sylvain Tesson, menos afeitas às precisões históricas, o autor enfrenta no presente romance um confronto de difícil posição, sem parti pris. O romance é organizado num formato a aparentar um “diálogo” imaginário, confrontando ou reforçando conceitos de acompanhantes que fixaram por escrito a desdita da retirada em 1812 e a posição do viajante de 2012. O autor de “Berezina” interpreta, sob impressões por vezes intensas, o que está a ver e a sentir ao passar por terras eivadas de sepultos ou de seus fantasmas. À medida que o percurso vai sendo transposto a temperaturas sempre muito abaixo de zero, impactos de eventos tenebrosos ocorridos dois séculos antes vão sendo acumulados. Frise-se o reforço dado aos relatos principalmente pelos escritos do general diplomata Armand Augustin Louis de Caulaincourt (1745-1813), fiel depositário de confidências de Napoleão durante a retirada da Russia, assim como os de Adrien Bourgogne (1785-1867), sargento durante a campanha russa. Essas “confissões”, e outras mais dos que vivenciaram a retirada, chegam ao limite da descrição cruenta, mas documentam a história da fatídica retirada. Passam por um crivo arguto de Tesson, que dramatiza, interpreta – colocando-se não raras vezes até como “figurante” imaginário -, pincela com cores ainda mais veementes as cenas das batalhas, o duro convívio entre soldados de tantas nacionalidades envolvidos naquela que foi denominada a Grande Armée.

A escolha dessa aventura de Tesson em pleno inverno, a seguir os passos de Napoleão em sua trágica retirada, acentua ainda mais o papel de seu algoz da Rússia Imperial, o general Mikhail Koutouzov (1745-1813),  derrotado na batalha de Borodino ou Moskova (40.000 soldados mortos contra 30.000 franceses que sucumbiram) durante o avanço da Grande Armée em direção a Moscou (135km), verdadeira vitória de Pirro para o Imperador da França. Koutouzov teria preconizado ao czar Alexandre 1º (1777-1825) que o “general inverno se encarregaria” de dizimar o exército do invasor. Antes da chegada da Grande Armée a Moscou  a cidade fora incendiada por ordem do czar Alexandre 1º (1777-1825), ficando sem víveres e sem a tão esperada conquista napoleônica. Terra arrasada. Imprudentemente, Napoleão e seu exército permaneceram em Moscou de 14 de Setembro a 19 de Outubro, quando foi iniciada a retirada às vésperas do inverno. Conselhos não atendidos de Caulaincourt para o Imperador mostraram-se proféticos. Durante o tenebroso retorno, seria Koutousov que estaria à testa do exército russo, fustigando a retaguarda e as laterais da Grande Armée.

As paisagens gélidas percorridas exatamente há dois séculos pelos soldados de Napoleão e aquelas presenciadas por Tesson  permanecem na imensa solidão das terras submersas sob o peso da densa neve, mas surgem recorrentes durante o texto. Confessa que correr em sidecar russo e antigo a 70, 80 km, no minúsculo anexo da moto e ocupado pelo amigo e fotógrafo Thomas Goisque, lugar do morto, como rezam os conceitos sobre esse posicionamento, fustiga corpo e alma, mas que à noite encontravam quase sempre abrigo em vilarejo ou qualquer outro lugar. Pensa nas muitas dezenas de milhares de infortunados sem quaisquer outras proteções, fustigados pelo frio e vento, apavorados pelos ataques constantes do exército imperial russo, dos cossacos ou dos camponeses, ávidos nessa tarefa de dizimar e enfraquecer o que restava da Grande Armée.

As interpretações de Tesson das narrativas de Caulaincourt ou Borgogne, considerando-se os desafortunados soldados, chega até a retirar do real a força intrínseca do passado, transformando-a tantas vezes, sem concessões na dramatização, em vislumbre mediático. Há que se considerar contudo,  mesmo para um experiente escritor-aventureiro, o impacto das visitações diárias às paragens da catástrofe sobre um cidadão francês. Dezenas e dezenas de milhares de soldados que sucumbiram foram seus compatriotas. Nessa absorção do trágico destino, Tesson enfatiza quase cinematograficamente o canibalismo que realmente existiu devido à extrema escassez de víveres. Cavalos que não mais tinham força para prosseguir eram devorados pelos infelizes combatentes, que ainda se serviam de suas peles para resguardar-se das temperaturas baixíssimas. Num arroubo romântico, Tesson considera a morte de 300.000 cavalos, divididos entre os dois exércitos beligerantes, e afirma: “Vós, Homens, vós falhastes, pois nenhuma de vossas guerras é aquela dos animais”.

Seguir o percurso desta retirada, uma das mais cruentas da História, influenciaria muitas deduções de Sylvain Tesson. Menciona números que têm sido questionados ao longo de dois séculos, mas que de todos os ângulos quantitativos analisados não deixam de impactar: das centenas de milhares de soldados preparados para a invasão, 250.000 morreram em combate ou combalidos pela fome e pelo frio e 200.000 foram feitos prisioneiros. Os russos teriam perdido 300.000 homens. Relembrar esses números é estarrecedor, mormente num espaço temporal de pouco mais de dois meses, a se considerar a retirada desde Moscou até a chegada de poucas dezenas de milhares de soldados, destruídos física e mentalmente, em terras francesas O vislumbre presente de fato aterrador em 1812 emociona o autor e o texto por vezes não camufla esse estado de espírito.

No evento dantesco da travessia do rio Berezina, sempre rumo a leste, o estrategista Napoleão, a fim de salvaguardar seu exército, acuado, sem pontes possíveis, pois os russos e cossacos obliteravam todas as possibilidades de fuga, fez construir duas pontes com incrível rapidez, uma para as tropas, outra para o material de maior peso. A seguir, temendo que os russos pudessem transpor as mesmas pontes, manda destruí-las antes que milhares de soldados franceses pudessem atravessá-las, deixando pois à mercê do exército de Koutosov o fatal destino de infortunados. Com tintas fortes, Tesson “participa” da cena, auxiliado por narradores da era napoleônica.

Por fim, seria o próprio Tesson e seu companheiro Goisque que “abandonam” o que resta da Grande Armée em Vilnus (Lituânia) e seguem doravante caminho velocíssimo de Napoleão, em sua carruagem guiada por vários cavalos e oficiais de elite,  para não ser capturado pelos russos. A fuga, iniciada entre 5-6 de Dezembro, chegará ao fim na noite de 18 do mesmo mês em Paris!!! Nesse retorno vertiginoso, algumas confissões de Napoleão a Caulaincourt são mencionadas por Tesson, nessa participação “dialogal” separada por dois séculos. Tesson divaga em questionamentos imaginários que porventura teriam povoado a mente do Imperador. Entre esses: “Ao menos uma vez, em sua existência, Napoleão teria considerado as perdas humanas senão sob o ponto de vista estatístico? Suas noites foram perturbadas pela visão de um desses cadáveres? Sofreria, no silêncio da noite, por ter aberto as portas da guerra e precipitado nações inteiras no abismo?”

Interpretações sob forte estado emocional corroboram o sucesso do livro? Certamente, mas deixa ao leitor certas dúvidas quanto ao hic et nunc. Seria Cédric Gras, escritor e outro companheiro da travessia, que melhor definiria, sob o aspecto “poético”, essa presença em terras sob as quais dezenas de milhares de soldados da Grande Armée jaziam: “hectares fecundados pelas lágrimas da História, territórios sacralizados por um gesto, malditos pela tragédia, terreno que, pelos séculos, continua a emanar o eco dos sofrimentos emudecidos ou de glórias passadas. Paisagens abençoadas pelas lágrimas e pelo sangue. Aqui, houve uma tal intensidade da tragédia e espaço de tempo tão curto que a geografia não se recuperou. Sim, as árvores surgiram, mas a Terra, ela continua a sofrer. Precisamos olhar esses territórios em silêncio, pois os fantasmas ainda os assombram”.

Tesson traça uma síntese dos feitos de Napoleão a ser considerada. “Se a Revolução reduziu-se a um empreendimento de luta pela liberdade, Napoleão é o coveiro dos princípios de 1789. Seu antiparlamentarismo, seu autoritarismo, seu imperialismo guerreiro o tornam aparentado a César. Mas se a Revolução definiu-se como um combate pela igualdade, o Imperador foi seu mais ardente promotor. A igualdade civil foi sua obra técnica. A igualdade do mérito, sua obsessão moral. Em que outra época da História da França um açougueiro teve tantas chances de se tornar general, mercê de seus talentos? O ideal do heroísmo irrigou o Império em seu início”. Sylvain Tesson evoca Caulaincourt: “O Imperador desejava os caminhos abertos ao mérito, o meio de atingir sem distinção de casta, sem ser parente ou amigo de alguém próximo ou de uma favorita. Todo soldado poderia tornar-se general, duque, marechal; o filho de um camponês, de um mestre-escola, de um advogado, do prefeito, conselheiro de Estado, ministro, duque, essa nobreza não mais chocaria ninguém com o tempo, pois ela recompensaria indistintamente todo o mundo”. Tesson acrescenta “Você poderia se tornar marechal! Não mais era necessário ser bem nascido, bastava ser ardente”.

O autor critica a sociedade atual, entorpecida pelo consumo, as tantas distrações tecnológicas, o comodismo. Não acredita que, hoje, toda uma fantástica legião pudesse se unir a um líder como Napoleão, o Imperador, em causas por ele sonhadas. Afirma: “Ele havia contado alguma coisa aos homens e estes tinham a vontade de ouvir a fábula, de acreditá-la viável. Os homens estão sempre prontos a tudo desde que exaltados e tendo por pressuposto a existência do talento do orador”.

“Berezina” seduz desde o início, mas é necessário ter cautela quanto a determinadas afirmações “históricas”. O romance de Tesson se amalgama às narrativas dos que presenciaram a retirada. Seria possível entender que em alguns momentos estabelece-se uma dúvida quanto a essa fusão pretendida por Tesson. Meritória essa incrível viagem, que se soma às tantas outras ousadas aventuras do autor. Contudo, creio que, para o leitor que tiver vontade de conhecer mais o dantesco episódio da retirada napoleônica, valeria a pena consultar farta bibliografia, mormente  francesa e russa, para possível avaliação dos trágicos episódios, sendo que muitos deles jamais serão conhecidos.

I’ve just finished reading “Berezina”, by the French geographer and adventurer Sylvain Tesson, one of my favorite authors. This time, Tesson retraces Napoleon’s retreat from Moscow in winter with his Grande Armée in 1812, following the debacle of his war against the Russian tsar. While describing his present day (2012) adventure from Moscow to Paris on a motorcycle with a sidecar, Tesson — supported by memoirs written by survivors of the retreat — recalls the tragedy of Napoleon and his men on the same route 200 years ago, a human drama of horror and loss. A fascinating book that does not exclude recommendations for further reading for those interested in the French invasion of Russia.