Quando a distância temporal determina emoções

Caminho, caminho, caminho.
Quando me encontro no jardim,
que é uma pátria de aromas
,
sento-me em um banco.
Olho e vejo folhas que voam e flores que fenecem.

Sinto que tudo morre e renasce.
Sensações que não me abalam.
Sou vigilância em pleno mar.
Não se trata de paciência,
pois é na caminhada que encontro o prazer
e não em seu término.
Antoine de Saint-Exupéry
(“Citadelle”, cap. CLXXXVI)

No penúltimo post comentava o programa do recital que apresentei no Theatro Municipal no dia 28 de Junho. Há recitais e recitais. O realizado naquele dia revestiu-se de aura diferenciada. O distanciamento tão imenso do tempo entre duas apresentações não permitia entender a récita como mais uma. Nascido em São Paulo, tendo me apresentado umas poucas vezes no Theatro Municipal, sendo que o último recital deu-se aos 17 de Junho de 1963, pois com orquestra apresentei-me nos anos 1970, o evento causou-me uma nostálgica sensação a anteceder o momento de entrar no palco. Quantos não eram, entre aqueles do numeroso público, que vieram ao mundo nesses 54 anos decorridos. Temos certamente duas gerações no espaço de tempo pouco superior a meio século!!!

Sempre que passo pelo Theatro Municipal, contornando-o durante inúmeras corridas como as do Centro Histórico ou da São Silvestre, lembro-me, entre uma longa respiração e outra, de minhas apresentações no mais tradicional e belo teatro da cidade. Pensava igualmente que jamais retornaria para realizar recitais naquele recinto. A minha total idiossincrasia quanto a ter um empresário, fruto talvez de minhas escolhas repertoriais, tornaram-me o que se denomina um low profile. Rigorosamente sinto-me bem nessa situação, pois a liberdade de agir, os locais eleitos no Exterior, para onde me desloco anualmente para apresentações destinadas a públicos que têm absoluto respeito ao repertório pouco frequentado, assim como para as gravações na mágica capela de Saint-Hilarius, perdida na planura flamenga da Bélgica, levam-me, já a caminho dos 80 anos, a considerar que a missão está a valer.

Não me desviando das propostas erigidas desde a década de 1970, o repertório apresentado no dia 28, luso-brasileiro, continha obras de quatro compositores portugueses e outros quatro brasileiros. Ao adentrar o palco, tendo o piano com plena luz e uma sombra a encobrir o público, entendi que este era numeroso pela vibração que acompanha a entrada de um intérprete. Proferi algumas palavras iniciais e lembrei-me, mercê da sugestão do Sr. Cônsul Geral de Portugal em São Paulo, Dr. Paulo Lourenço, idealizador da magnífica série de eventos que teve como título “Experimenta Portugal’17″, de mencionar aquela longínqua apresentação. Dei ênfase à frase, pois disse “aos 17 de Junho de… 1963″ e, para minha surpresa, fui aplaudido. Descontração maior, clima mais propício não poderia existir. “… Resistir, quem há-de?”, lembrando-me do soneto de Luiz Guimarães Júnior, “Visita à casa paterna”.

O programa, iniciado com duas Sonatas basilares de Carlos Seixas (1704-1742), foi sendo apresentado e poemas da poetisa portuguesa Violeta Figueiredo foram lidos, a anteceder cada uma das seis peças de Eurico Carrapatoso, executadas em primeira audição no Brasil, dando prosseguimento à récita. Escusado dizer que a excepcional coletânea teve guarida absoluta e, após o recital, vários estudantes pediram-me cópia da partitura. Como não sentir emoção ao tocar os seis “Estudos Transcendentais” e “Adamastor – O Gigante das Tempestades”, de Francisco Mignone, tendo presente a viúva do compositor, a pianista Josephina Mignone, incansável batalhadora nessa luta hercúlea pela preservação da memória desse imenso músico brasileiro. Na ordem, Gilberto Mendes, Fernando Lopes-Graça e Júlio Medaglia, sendo que a pequena peça deste, “Zé Eduardo arpeggiando no choro”, pelas características da obra e minha primeira incursão no gênero, mereceu aplausos inusitados. Há um fato que sempre me intriga. Quando apresento obras do notável compositor português Jorge Peixinho (1940-1995), criações austeras, seriais, de difícil entendimento inicial para o público, a reação é imediata e calorosa. Assim sempre ocorreu, seja com “Villalbarosa”, composta em 1987 para o centenário de Villa-Lobos, seja com o “Étude V Die Reihe-Courante”. Criações telúricas, que extraem todos os recursos possíveis do piano e cujo emprego dos pedais se mostra rigorosamente singular. Nessa duas obras tenho de utilizar luvas, pois há glissandos que percorrem todas as teclas, brancas e pretas, processo basicamente impossível de ser realizado com as mãos abertas desprotegidas.

O que dizer da magnífica “Valse-Caprice” op.11 nº 1, de Henrique Oswald? Uma das criações mais comunicativas do repertório brasileiro, estará presente em meu próximo CD, já editado e com previsão para lançamento entre 2018 e 2019. O público a desconhecia, pois o manuscrito não foi encontrado e poucas cópias da edição publicada subsistem em arquivos institucionais. Uma das alunas de Henrique Oswald, Honorina Silva, presenteou-me com uma cópia, ela que foi intérprete notável de Oswald. Também a interpretação dessa magnífica Valsa a encerrar o programa mereceu efusivos aplausos. Friso sempre que esses são destinados prioritariamente às obras, sendo eu apenas o mensageiro.

Duas peças extra-programa foram apresentadas: “Oraison dominicale des Castors”, síntese da síntese de uma obra, pois essa pequena “oração”, que faz parte das “Trente-six histoires pour amuser les enfants d’un artiste”, evolui em forma de coral, após a menção de um canto, apenas a melodia. Um primor. E como sempre faço ao apresentar os denominados encores, interpreto de vez duas peças. “Viva-Villa”, de Gilberto Mendes, encerraria o recital que, diferentemente de tantos outros ao longo de meu caminho, sensibilizou-me muito.

Uma sugestão ficaria para a programação do Theatro Municipal. Presentemente não mais imprimem os programas. Tive de me socorrer junto ao Consulado Geral de Portugal em São Paulo, que na última hora fotocopiou o programa. Que os responsáveis pela programação do teatro entendam que o programa editado faz parte de uma apresentação. Qual a memória escrita que restaria de uma récita? Os sons podem permanecer nas mentes do ouvinte ou se volatizarem, o papel comprova e reaviva lembranças.

On my delight in playing once more in the great hall of Theatro Municipal de São Paulo last 28 June, fifty-four years after my previous solo recital at the same theatre, the most traditional and impressive in the city, as confirmed by the pictures that illustrate this post, taken by photographer André Hoss during my performance.