Mentira e delação premiada, males com efeitos imprevisíveis

Remédio é para o acidente, não para a essência.
Agostinho da Silva (“Espólio”)

Como sempre, aos sábados pela manhã vou à feira-livre do Campo Belo, limítrofe do meu Brooklin no qual persisto em morar desde 1958. É a teoria de Plínio Marcos, que considerava sua cidade não a natal, mas aquele torrão por ele habitado, Santa Cecília, no coração de São Paulo.

Encontro Marcelo e pergunto-lhe se tem desesperança quanto aos rumos do Brasil. “Não, estou a par de tudo, mas anestesiado, não mais acredito em soluções a médio prazo. Amigos estão pensando o mesmo e enxergam apenas neblina”. Insisti se achava essa atitude a melhor. “O cotidiano maculado diariamente não me possibilita outra maneira de pensar. Percebo que a grande maioria dos políticos está com ficha suja, sobretudo os que estão no poder neste século nada promissor. Estamos mergulhados num pântano”.  Após a feira-livre revisitei as charges de meu saudoso amigo e grande artista plástico, Luca Vitali (1940-2013). Como são atuais seus desenhos!

Nestes últimos anos causa-me perplexidade a insistência de temas precisos do cotidiano, recorrentes nas conversas que mantemos com amigos ou conhecidos. Houve mudança de foco. Se futebol, mormente entre os homens, é tema quase que prioritário, jamais abandonado, consolida-se um nítido desvio para assuntos mais voltados hoje à política e à corrupção. O Brasil sempre soube da corrupção, mas ela mantinha-se em espécie de “banho maria” ou, emprestando outra metáfora, como uma doença crônica sem consequência fatal. Saint-Exupéry, em “Citadelle”, conta a história do mendigo portador de chagas que não as deixava cicatrizarem, pois com elas conseguia a condolência pública.

Assistimos, principalmente a partir do início do século, à ascensão galopante desse flagelo que é a corrupção. Todos a conhecem, da burocracia a mais inferior na hierarquia aos políticos que pululam no Estado brasileiro. A Lava-Jato, surgida ocasionalmente, fixar-se-ia na corrupção programada “cirurgicamente”, sangrando o país, surrupiando verbas que deveriam estar direcionadas para o benefício do povo. É estarrecedor o modo como o Estado foi assaltado. Silente através das décadas, foi sacudido pelos desvarios do Mensalão, Petrolão e tantos outros mais, envolvendo políticos e empresários.

A tragédia brasileira é a absoluta destruição da ética e da moral. A mentira como verdade, a delação como “princípio final”. Machado de Assis já vaticinava que “a mentira é tão involuntária como a respiração”. A desgastada, mas tristemente real, frase de Joseph Goebbels – “Uma mentira repetida mil vezes torna-se verdade” – tem sido a “regra” daqueles, que por motivos vis, não querem e por vezes não podem (sic) confessar práticas ilícitas. Essa nefasta atitude de fuga da verdade é sempre e invariavelmente a resposta dos envolvidos, políticos, empresários e figuras dentro ou próximas ao poder quando atos de desvios de conduta a eles atribuídos são descobertos. Jamais confessam de imediato. Em entrevista publicada no dia 17, o coordenador-geral da força-tarefa da Operação Lava-Jato, Procurador Deltan Dallagnol, afirmou: “Existe um mundo de corrupção para ser investigado. Puxam-se penas e não vêm apenas galinhas, mas granjas inteiras….” (https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/agencia-estado/2017/07/17/classe-politica-a-espreita-de-uma-oportunidade-para-se-livrar-da-prisao).

Quanto à delação premiada, ela nunca é aceita em prol do Brasil pelo implicado em crimes de enriquecimento ilícito de toda a ordem, mas sim para o abrandamento da pena. A delação premiada está aí escancarada, a revelar escândalos que arrepiam a todos desvinculados de militâncias fanatizadas. A delação é uma das mais abjetas atitudes do homem. Paradoxalmente, revela a dimensão das entranhas apodrecidas pela corrupção. Sem a delação premiada como saberíamos de grande parte dos ilícitos? Estarrece o cidadão cumpridor de seus deveres e obrigações. Estou a me lembrar de minha tenra infância. Tinha eu não mais de dez anos quando entrei na sala de casa para dizer ao meu pai que irmãos tinham feito peraltices próprias da idade, mas que certamente o desagradariam. Imediatamente meu pai se retirou para reprimendas e eu ia segui-lo. Na sala estava Monsieur Keller, agente para a América Latina da firma francesa que meu pai representava em São Paulo. Com serenidade pediu que sentasse ao seu lado. Disse-me que a delação era a mãe de todos os males. Inocentemente perguntei-lhe qual a razão. Levantou a barra da calça e mostrou-me a perna mecânica. Assustado, indaguei-lhe o porquê. Falou-me então que, durante a primeira grande guerra, um desertor delatara aos alemães o esconderijo onde estava com outros soldados. Na escaramuça, a explosão de uma granada destruiu sua perna. Nunca mais me esqueci dessa história. Lição de vida.

A situação no Brasil estaria muito mais tranquila se julgamentos de políticos, empresários e figuras outras ligadas ao governo tivessem por parte do Judiciário maior rapidez. Impressiona no mundo ocidental a demora para que figuras proeminentes no cenário político brasileiro sejam julgadas, sentenças proferidas e penas cumpridas. Em meu blog sobre “A Justiça” (29/10/2009) comentava que pessoas das várias gradações da classe média por mim abordadas opinaram sobre a credibilidade da nossa Justiça. As vinte e tais questionadas responderam sem titubear que não acreditavam na Justiça de nosso país. Presentemente indaguei a um igual número de pessoas menos favorecidas e a unanimidade vinha carregada de certa irritação. Hoje a maioria desses trabalhadores de serviços ou de empresas tem algum dos muitos tipos de celular e contato direto com a notícia. Não são idiotas e facilmente percebem que nem todos são iguais perante a lei. Pessoas simples me responderam saber que presidentes ou ex foram presos após sentenciados na Coreia do Sul e no Peru, mas que o mesmo não ocorre no Brasil. Estão cientes da quantidade de políticos envolvidos com a Justiça. Quando mencionei a Lava-Jato, alguns disseram temer sua estagnação por forças estranhas. Aqueles com quem falei desconhecem a quantidade de recursos que tramitam nos muitos tribunais e prazos que, “legalmente” esticados, impedem a celeridade. Sem contar a quantidade absurda de processos engavetados à espera de resoluções sine die.

Marcelo, pertencente à classe média, asseverou-me também que hoje acredita ainda menos na Justiça do que em 2009, quando formulei-lhe a mesma pergunta. Citou-me com profundo desprezo decisões recentes do STE e STF. “Podemos confiar em nossos togados?”, perguntou-me. Realmente passamos por situação complexa também no âmbito do Judiciário, motivo pelo qual o descrédito existe.

O leitor que me acompanha desde Março de 2007 sabe bem que alguns temas abordados desagradam-me. Não fazem parte de minha respiração, o que não me impede de raramente tê-los em pauta. Esperemos que o Brasil não sofra tanto nas mãos de quantidade infindável de figuras mergulhadas em atividades ilícitas.

Revisiting illustrations made by my friend and painter Luca Vitali (1940-2013), I was led to reflect on the issue of corruption and dispensation of justice in Brazil and on the reasons why the common man has always had a distrust of our judiciary, tending to regard it as an exclusive reserve of the elites.