Um mal-entendido a resultar esclarecimentos

Julgas a árvore pelos materiais?
Falas-me da laranjeira,
criticando sua raiz ou o sabor da fibra,
o visco, as rugas da casca ou a arquitetura de seus galhos?
Não te preocupes com os materiais.
Julga a laranjeira pela laranja.
Antoine de Saint-Exupéry
(“Citadelle” cap. CCXVII)

A tradicional Revista CONCERTO de Julho último publicou matéria assinada pela colunista Camila Frésca, na qual, ao abordar o Concerto op. 10 para piano e orquestra de Henrique Oswald,  que seria apresentado no início do mês no Theatro Municipal pelo pianista Nahim Marun, insere frase a ele atribuída. A certa altura, abre aspas para palavras que seriam do pianista: “Esse concerto  foi tocado há muitos anos por José Eduardo Martins, mas usando o manuscrito, que tem muitos erros”. Ao ler o segmento, realmente fiquei atônito!!! Tive de imediato dúvidas quanto à afirmação. Conheço Nahim Marun e com ele mantenho esporádicos contatos, sempre cordiais. Sob outro aspecto, em meu blog publiquei resenha de seu ótimo livro “Técnica avançada para pianistas” (03/09/2011). Leio habitualmente a coluna de Camila Frésca, doutora em música, e entendo a frase como um mal-entendido que teve esclarecimento posterior pertinente.

Preparava “direito de resposta” quando recebo, no dia 6 de Julho, telefonema de Nahim Marun explicando-se, a dizer que palavras foram mal interpretadas. No dia seguinte enviou-me cópia de mensagem à Revista em apreço, “Carta aberta aos leitores da Revista Concerto”, na qual se posiciona com clareza. Sairá publicada na Revista de Agosto, assim como meu “Direito de resposta”. Torna-se indispensável transmitir algumas considerações de Nahim Marun em sua retificação ao segmento escrito pela colunista: “Na conversa, feita por telefone, fui  perguntado se esse concerto já havia sido feito no Brasil. A minha resposta foi afirmativa, explicando que a referida obra havia sido executada pelo pianista e Prof. Dr. José Eduardo Martins há vários anos. Mencionei também a ótima gravação do mesmo, em versão para Quinteto de Cordas, realizado pelo Prof. Martins e o Quinteto Rubio”. Insiro dois outros parágrafos:

“Portanto as aspas na minha declaração ‘Esse concerto foi tocado há muitos anos por José Eduardo Martins, mas usando o manuscrito, que tem muitos erros’ é um completo equívoco, provavelmente uma interpretação indevida do que foi dito, conectando a resposta da primeira pergunta à da segunda, alterando o contexto das afirmações feitas.

Venho aqui declarar que tenho profundo respeito e grande admiração pelo trabalho do Prof. Dr. José Eduardo Martins. Seu trabalho é uma notória referência, essencial para qualquer estudo acadêmico ou interpretativo da obra de Henrique Oswald. Não tive absolutamente nenhuma intenção fazer qualquer critica negativa ao seu pioneiro e respeitadíssimo trabalho acadêmico e musical”.

Entendo o episódio como superado, aceitando os termos expressos pelo pianista, que se posiciona com transparência. Creio mesmo ter havido um mal entendido. Ao leitor, à guisa de informação, diria que Henrique Oswald redigiu ao menos seis manuscritos do Concerto: três para a configuração original, piano e orquestra, dois para a versão para piano e quinteto de cordas e uma para dois pianos (segundo piano, redução do acompanhamento de orquestra), sempre a manter a parte do piano basicamente inalterada. Na matéria da Revista Concerto é mencionado um só manuscrito na configuração piano e quinteto de cordas, quando na realidade são dois. Designa-o como “arranjo” quando na realidade é versão (redução de orquestra para quinteto de cordas realizada pelo compositor), palavra correta e que está presente na carta do pianista Nahim Marun. O manuscrito utilizado, contendo três autógrafos de Oswald, pertence-me, pois me foi presenteado pela neta do compositor, minha saudosa amiga Maria Izabel Oswald Monteiro, que o recebeu, por sua vez, da pianista Honorina Silva, que estudou com o compositor e dele ganhou o manuscrito encadernado (119 págs). Não há uma só rasura, o que evidencia certezas plenas por parte de Oswald. Considere-se que foi nessa versão para quinteto de cordas e piano e, com todas as probabilidades, através do manuscrito mencionado, que Henrique Oswald apresentou a primeira audição em Firenze em 1894, sendo que o original para piano e orquestra foi apresentado em 1897 no Rio de Janeiro.

Ao consultar Johan Kennivé, um dos mais competentes engenheiros de som da Europa e com o qual realizo gravações desde 1999, recomendou-me gravar o Concerto de Oswald com o Quarteto de cordas Rubio, renomado conjunto com uma série de registros fonográficos basilares sob o controle de Kennivé, entre os quais a premiada gravação dos 15 quartetos de cordas de Dmitri Shostakovitch (Brilliant Classics, Abril-Setembro de 2002).  Cópia do manuscrito autógrafo de Oswald em apreço foi enviada ao Quarteto Rubio, que se debruçou em pormenorizado trabalho visando a uma edição digitalizada para cordas. Durante meses trocamos informações. Cheguei na Bélgica mais de uma semana antes da gravação e aprofundamo-nos nesse manuscrito autógrafo. Dirk Van de Velde, do Quarteto  Rubio, convidou o primeiro contrabaixista da Orquestra Sinfônica da Ópera Nacional da Bélgica para integrar o quinteto de cordas. Gravamos o Concerto na Capela Saint-Hilarius (séc. XI) em Mullem, Bélgica,  entre os dias 17 e 20 de Fevereiro de 2002. Completam o CD o Quarteto op. 26 para trio de cordas e piano e a Sonata para violoncelo e piano op. 44. O CD foi lançado no Brasil sob a égide da Revista CONCERTO, em coprodução com a Universidade de São Paulo e a VZW De Verenigde Cultuurfabrieken / De Rode Pomp, Bélgica, 2002.

Aprofundo-me na obra de Henrique Oswald desde 1978, mercê do apoio incondicional da família do compositor durante décadas, rigorosamente sem quaisquer outros interesses. Corroborando o exposto: cinco LPs gravados no Brasil e três CDs gravados na Bélgica (o quarto, em edição, previsto para 2018-2019), livro (“Henrique Oswald – Músico de uma saga romântica”, São Paulo, Edusp, 1995), dois trabalhos acadêmicos junto à USP (tese de doutorado em 1988 e provas para professor titular em 1992 ), edições de partituras em 1982 (São Paulo, Novas Metas) e 2002 (São Paulo, Edusp), artigos acadêmicos e inúmeros recitais consagrados a Oswald, mormente no Exterior. Apraz-me saber que, a partir de minha tese pioneira, mais de uma dezena, escritas por estudiosos do compositor, foram defendidas no Brasil e no Exterior, tendo eu integrado júris nessas duas condições. Ademais, diria que jamais neguei quaisquer aconselhamentos sobre Henrique Oswald a todos os que me têm consultado ao longo das décadas. É sempre motivo de alegria saber que a obra de Henrique Oswald está a ser apresentada.

Confio no bom bom senso do pianista Nahim Marun, que aliás, frise-se, está a realizar trabalho louvável em torno de Henrique Oswald, tendo gravado CD a ele dedicado e apresentando, em acréscimo, a primeira audição moderna no Brasil do Concerto do compositor na configuração original, piano e orquestra sinfônica, pois apresentei o Concerto na versão camerística com o Quarteto Rubio em várias cidades belgas e em São Paulo no ano de 2003, assim como  posteriormente com a OCAM (conjunto de cordas), regida pelo Maestro Gil Jardim, no Theatro São Pedro.

Clique para ouvir, com J.E.M. ao piano:

Acreditemos na má interpretação da conversa telefônica. Contudo, a dedicada colunista Camila Frésca deveria ao menos ter-me consultado a fim de certificar-se sobre o manuscrito aludido, já que meu nome foi publicado a constranger-me. Eu teria, através de um simples telefonema, dirimido dúvidas sobre o manuscrito que utilizamos para gravação e concertos.

On a damaging statement appeared in an interview published by “Revista Concerto” (July issue) regarding my manuscript of Henrique Oswald’s Concert nº 10 for piano and orchestra (reduction of orchestral score for string quintet) and my refutation of what has been said, as shown by pictures of my autograph manuscript used for recording and performances in Belgium and São Paulo.