Visão crítica competente

Prefiro antecipar o futuro a por ele ser surpreendido.
François Servenière

Preparava texto para o presente blog a respeito de pergunta arguta do amigo Rafael durante um curto: “Quais as razões de alguns permanecerem no Exterior para aprimoramento e outros não? “. Mensagens via internet saudavam um músico brasileiro praticamente desconhecido para muitos leitores. Alguns salientaram a fixação de Maury Buchala em Paris durante tantas décadas. Pouco a pouco o compositor e regente faz-se mais divulgado no Brasil através de suas atividades.

No treino de domingo último (10k), as ideias pulularam a partir da pergunta de Rafael, mas posteriormente ao acessar o computador havia mensagem do compositor e pensador francês François Servenière, parceiro em tantos posts, precisando o conteúdo do blog referente a Maury Buchala, assim como tecendo considerações sobre as Artes. Na visita precedente de Maury a São Paulo, fiz-lhe ver que um contato com François Servenière seria benéfico para os dois. Com satisfação verifico presentemente que eles mantêm profícua troca de mensagens em França.

Escreve François Servenière:
“Prazerosamente li seu artigo sobre Maury Buchala. É um músico comunicativo e talentoso. Admiro sua escrita a conter grande virtuosidade, apesar de seu universo composicional não ser o meu. Entendo suas criações formidáveis sob a égide arquitetônica, sendo uma vertente que tem guarida na França institucional. Conversei bem com Maury a respeito de problemática da criação musical em França e ele se mostrou consciente. Entende nosso amigo a abertura futura em direção a uma música mais humana, menos desencarnada, voltada aos sentimentos. Tendências da composição musical nas últimas décadas apresentam infinita capacidade em propor a escuridão. Há toda uma corrente filosófica francesa (ultra) niilista, de origem marxista-leninista, que trabalha objetivamente para o fim da história, para o caos, enquanto os povos (nauseabundos para as elites globalizadas) são muito positivos e voluntaristas, apesar da situação trágica por que passamos. Serão sempre os povos que salvarão as nações, nunca as elites, preceito bem conhecido. Os concertos promovidos pela instituição brasileira SESC em bairros nas periferias de São Paulo e dirigidos por Maury, assim como os que são realizados por seu irmão João Carlos pelo Brasil, à testa de uma orquestra filarmônica, bastariam para nos convencer de que o otimismo e a clarividência não são mais exclusividades das classes dirigentes e das elites que acreditam ter maior cultura para dirigir as nações em direção às melhoras.

Tomemos como exemplo um autor que nós dois admiramos, Sylvain Tesson. Suas narrativas são sombrias, niilistas, mas somos seduzidos por elas. Temos o prolongamento dos escritos de Finkielkraut, Onfrat, Houellebecq e outros. Aqui em França, como no Brasil, na América Latina, nos USA, os povos pouco a pouco retomam o poder, desgraçadamente nem sempre de maneira pacífica. Contudo, seriam essas revoluções verdadeiras que deverão se processar, ontológicas e inevitáveis, mercê do estado de ruína do mundo atual, piores do que a degenerescência que atingiu as civilizações ditas avançadas? Nos dias de hoje, a música, a arte em geral, o esporte corrompido pelo dinheiro e o dopping, seriam eles testemunhos probatórios da boa saúde de nossas democracias?

Faz-se necessário que as artes e a criação sejam independentes, como foram sempre desde a Revolução Francesa (era bem mais difícil antes, sem os direitos autorais), mas não em termos de apologia aos regimes, pois tornar-se-iam submissas quase automaticamente.

A luta das multinacionais (YouTube, Facebook, Apple, Amazon, Google, Microsoft, etc.) contra os direitos autorais (com a ajuda do socialismo, do estadismo, na França e fora dela) foi pedra angular para estatizar a arte de maneira ainda mais convincente. O Estado detesta a liberdade dos povos, dos indivíduos. Imprescindível para o Estado reduzir essa liberdade de maneira drástica. O resultado na França é claro e a criação artística desmoronou, tendo-se como exemplo o período liberal (1890-1930). A França não mais é um farol, como era antes nos tempos da Belle Époque que atraia artistas de todo o mundo.

Todas essa elucubrações me vêm à mente, a partir do belo trabalho que realiza nosso talentoso músico Maury Buchala nessa ponte França-Brasil. Faço votos que continue”. (tradução J.E.M.).

Entendo que ações dessa natureza, mesmo que cercadas por apoios da iniciativa privada e por vezes com estímulos do governo, podem estiolar-se tão logo a figura fulcral do conjunto ou orquestra desapareça. Se determinada Fundação tiver continuidade, a depender do carisma de um novo líder e da existência de profissionais competentes, projetos poderão vingar. A mescla da música dita de concerto com a popular tem sido o caminho de alguns conjuntos. Curiosamente, o contrário inexiste. Atualmente o espaço reservado a inúmeras apresentações populares — em suas infindáveis vestimentas “musicais” qualitativamente questionáveis — não dá margem à convivência com a música erudita. Promotores dos megaeventos são pragmáticos, voltados essencialmente ao lucro, resultado das massas que afluem a esses espetáculos e dos patrocínios que pululam, a depender da fama de grupo específico. Antolha-se-me, contudo, que a firme convicção dos dois músicos regentes terá resultado enquanto a ação perdurar, o que se afigura alvissareiro. Importa saber se o público que acorre aos espetáculos de João Carlos com a Orquestra Bachiana, como exemplo, permanecerá fiel à mensagem musical erudita. Não se pode negar a capacidade inalienável de João Carlos Martins de atrair a grande mídia brasileira, o que o torna o mais conhecido músico erudito pátrio. Apesar de propostas diferenciadas, há em João Carlos e Maury Buchala vontade, entusiasmo, determinação e, a preponderar, talento. Sob outra égide, a degradação cultural em todo o mundo, tão ventilada por Mario Vargas Lhosa em “La civilización del espectáculo”, não poderia ser uma das causas da aproximação mencionada erudito-popular, como uma estratégia de sobrevivência da música de concerto?

A próxima apresentação com Maury Buchala regendo a orquestra sinfônica de Americana dar-se-á no dia 3 de Setembro no SESC Campo Limpo, às 18:00hs. Quanto a João Carlos Martins, acaba de entrar em cartaz o filme “João, o Maestro”, narrativa em torno da vida de meu irmão.

Upon reading about conductor Maury Buchala’s performances in São Paulo working-class neighborhoods, the French composer François Servenière has sent his views on democratization of culture, contemporary trends in classical music composition in France,  freedom of artistic expression against state controlled media.  Worth reading as usual, his reflections are the post of this week.