Iniciativa louvável da pianista Eudóxia de Barros

Escrevi sempre música brasileira,
não por uma atitude deliberada e consciente,
mas por um impulso espontâneo e incoercível.
Osvaldo Lacerda
(depoimento a Vasco Mariz)

A edificação da integral de um compositor é tarefa árdua. Para os que cuidarão do mister, o post mortem de um autor implica um aprofundamento para que nada falte na seleção e avaliação do material. Quando de um segmento extenso da opera omnia, o trabalho tem que se ater também ao nível comparativo com outros gêneros frequentados pelo compositor. Num aspecto mais amplo, a integral possibilita a constatação do desenvolvimento escritural do compositor: assimilação dos ensinamentos recebidos de mestres cultuados presentes em compartimentos da obra, gêneros musicais preferenciais, identificação de modelos recorrentes ou modificados, idiossincrasias relativas a outras tendências coetâneas, ideologia e, como ápice, a detectação do estilo. Um compositor de talento tem seus procedimentos escriturais e, se o passar das décadas possibilita o distanciamento de determinadas “fórmulas”, há sempre elementos que permitem detectar o estilo de um autor qualitativo. Frise-se, o estilo inalienável, atributo detectável em um compositor de mérito, inexiste se faltarem talento e criatividade, pois o conjunto da obra remeterá por consequência à lembrança de tantos outros autores. A partir dessas premissas, reitero posição que defendo, a considerar que o compositor qualitativo deixa suas impressões digitais sobre cada criação. Mutatis mutandis, o mesmo ocorre com a interpretação musical.

O compositor Oswaldo Lacerda (1927-2011) pertence à linhagem que, desde as primeiras décadas do século XX, batalhou pela implementação no país de ideais voltados ao nacional. Música, literatura, artes plásticas aderiram ao movimento nacionalista, obtendo resultados tantas vezes surpreendentes. Na música de concerto, clássica ou erudita, compositores voltaram-se às fontes oriundas das manifestações musicais populares urbanas ou campesinas e apreenderam determinadas constantes existentes na dança, na canção, na rítmica e nos vários gêneros praticados no país, tantos tendo nascedouro n’outras terras. Na efervescência do movimento nacionalista, compositores do passado foram anatematizados. Se os pertencentes ao período colonial, apesar de qualitativos, mantinham-se basicamente defasados quanto ao que se estava a escrever na Europa, foi apenas na segunda metade do século XIX, quando músicos brasileiros viajaram à Europa para aperfeiçoamento, que tivemos uma equiparação com a linguagem musical corrente na Europa (Vide no menu de meu site – www.joseeduardomartins.com -, item Artigos: “Viagem à Europa e a atualização do compositor brasileiro no Segundo Império”). Contudo, todo movimento emergente, em quaisquer áreas, para a eclosão tem necessidade de “eclipsar” a corrente anterior. É dado histórico que sempre se repetiu. Foi apenas a partir do início da segunda metade do século XX que tendências musicais já sedimentadas no hemisfério norte tiveram penetração mais acentuada no Brasil. Não obstante o “choque” das tendências composicionais, a música brasileira continua sua trajetória, a evidenciar autores de mérito nos várias processos criativos.

Considerando-se figuras exponenciais do movimento em prol de uma música voltada ao nacional, tivemos, como exemplos, Heitor Villa-Lobos (1887-1959), Francisco Mignone (1897-1886), Camargo Guarnieri (1907-1993) e Cláudio Santoro (1919-1989). Dos compositores mencionados, Villa-Lobos, um dos grandes mestres do século XX em termos mundiais, teve a seu favor uma característica pioneira em termos da música de concerto no Brasil. Nenhum outro soube desenvolver uma ligação tão ampla com a mídia. Se sua obra persiste no Exterior pela qualidade, muito se deve à sua maneira de saber ser notícia. O mesmo não ocorreria com Mignone, Guarnieri e Santoro.

Camargo Guarnieri formaria uma plêiade de alunos de talento que professaram posteriormente seus ensinamentos, adaptando-os às suas próprias linguagens, mas conservando o culto ao nacional. Foram muitos os que seguiram carreiras meritórias. Dentre eles, destacaria Almeida Prado (1943-2010), que deve a Guarnieri a sólida formação, mas que singraria outras tendências, mormente após estudos em Paris com os notáveis Olivier Messiaen e Nadia Boulanger. Osvaldo Lacerda foi certamente o discípulo mais fiel, a dar continuidade aos princípios apreendidos de seu grande mestre, Camargo Guarnieri, um dos maiores compositores das Américas. Lacerda permaneceu durante toda a existência confiante na causa direcionada à música brasileira, nessa investigação sem tréguas às raízes pátrias. Um de seus atributos foi a coerência, característica inalienável que o levou a jamais se desviar de preceitos em que acreditava. Sob outra égide, foi teórico e professor conceituado.

Osvaldo Lacerda se reservou o direito de não buscar publicidade. O seu distanciamento dos holofotes, mercê igualmente da figura humana desprovida de presunção, tornaria a divulgação da obra bem mais econômica. Mario Vargas Llosa observa no livro “La Civilización del espectáculo” que, sem a mídia, a manifestação artística tem sérias dificuldades.

A pianista Eudóxia de Barros (vide blog “Valeu a pena?”, 19/11/2016) pautou sua brilhante carreira no resgate incessante do repertório pátrio. Fê-lo através de inúmeras gravações e centenas de recitais pelo Brasil. Viúva do compositor Oswaldo Lacerda, Eudóxia elaborou longo projeto visando à gravação da integral para piano do compositor (“Obra integral para piano de Osvaldo Lacerda”. São Paulo, Instituto Alberione, 2017). São seis CDs interpretados por sete pianistas.

Escolhidos os intérpretes, a cada indicado ficaram reservadas obras esparsas de diversas coletâneas, por vezes em peças sequenciais. Eudóxia contemplou igualmente para a integral a produção para piano a quatro mãos. Foram convidados para o projeto: Maria José Carrasqueira, Paola Tarditi, Paulo Gori, Renato Figueiredo, Sylvia Maltese e Valdilice de Carvalho. Eudóxia de Barros tem participação em um número bem maior de obras por motivos claros, pois foi a intérprete essencial de Osvaldo Lacerda, apresentando suas criações por todo o território brasileiro.

Das coletâneas tem-se Brasilianas, peças de média dificuldade cujo cerne é a visita aos mais variados gêneros musicais brasileiros. São 48 pequenas composições muito bem elaboradas, divididas em 12 cadernos de quatro, escritas para piano solo, sendo 12 para piano a quatro mãos. Cromos é outra coletânea constituída por 20 peças, compartimentadas em cinco cadernos. Há, por parte de Lacerda, preocupação igualmente didática, mas em Cromos o compositor busca despertar a imaginação do pianista. Sonatas para cravo ou piano (versão pianística), Sonatas em homenagem a Scarlatti e Sonatinas pertencem a outro segmento. Ponteios, tão a gosto de seu mestre Camargo Guarnieri, pertencem ao catálogo, assim como Valsas, Prelúdios, Toadas, Suítes Miniaturas, Suítes e peças características para o ensino elementar, Estudando piano. Invenções a duas vozes e uma série de outros grupos de peças compõem a produção para piano.

Se basicamente todas as criações mencionadas têm um cunho didático, considere-se que Osvaldo Lacerda, nos 12 Estudos, demonstra o absoluto domínio do técnico-pianístico. Todo o conjunto esteve sob a interpretação competente e transcendente de Eudóxia de Barros, que mantém em seu repertório a importante coleção.

Osvaldo Lacerda compôs três obras que ratificam seu domínio escritural: Cinco variações sobre Escravos de Jó, Oito variações e fuga sobre um tema de Camargo Guarnieri e Variações sobre Mulher rendeira. A segunda, sobre o tema inicial da Dança negra, de Guarnieri, é de cuidada construção e magnificamente interpretada por Sylvia Maltese. Igualmente, as Variações sobre Mulher rendeira têm um tratamento contrastante e diversificado, sendo executadas também com plena qualidade por Renato Figueiredo. Pormenorizo-me na forma Tema e Variações pelo fato de que estudei com Camargo Guarnieri suas Variações sobre um tema nordestino para piano e orquestra, em 1958. Disse-me o ilustre mestre que a forma tema e variações era uma das mais complexas e nela revelava-se por inteiro a qualidade de um compositor. Logo após viajava para Paris e acabei não tocando essa excelente obra, que conservo e que me foi presenteada por Guarnieri numa dupla cópia heliográfica, pois a orquestra está reduzida para um segundo piano. Contudo, já em Paris, acompanhei no segundo piano por duas vezes a notável pianista, colega e amiga Yara Bernette (1920-2002), que estudara também com meu professor José Kliass, pois a pianista solaria a composição nos Estados Unidos e ainda não a apresentara anteriormente. Camargo Guarnieri escreveu-me a respeito da passagem de Bernette por Paris para essas repetições, antes de estrear as Variações… em Rochester, nos USA, aos 27 de Abril de 1961.

Após essa “variante”, destaque-se a participação expressiva do duo pianístico formado por Sylvia Maltese e Paola Tarditi. Absoluto entendimento das 12 Brasilianas para piano a quatro mãos. Uma interpretação referencial.

Maria José Carrasqueira, Paulo Gori e Renato Figueiredo têm atuação marcante na integral em criações diversificadas das várias coletâneas, assim como, em um menor número de peças, Valdilice de Carvalho.

A obra para piano de Osvaldo Lacerda tem importância na formação básica de um jovem pianista brasileiro. De média dificuldade e com finalidade basicamente didática, ela apreende os principais gêneros, ritmos, danças, canções e folguedos pátrios, imprescindíveis para o conhecimento maior de nossas fontes musicais. Os 12 Estudos e os Temas e Variações têm outro nível de dificuldade e destinação, ratificando para a opera omnia para piano um conjunto harmonioso.

Apenas uma ressalva, que não desmerece o hercúleo projeto e as participações dignas dos pianistas. As muitas coletâneas, algumas seccionadas, poderiam estar, separadamente, sempre a cargo de um só intérprete, pois teríamos maior unidade. Todavia, a presente integral despertará certamente interesse por parte de estudantes, pianistas e estudiosos.

Eudóxia de Barros e todos os pianistas que compreenderam a extensão do projeto, e a ele se dedicaram com afinco, desprendimento e afeto, estão de parabéns. Não há melhor condição para se conhecer a trajetória de um compositor, sua evolução e seu estilo do que o conhecimento da opera omnia. Nas últimas décadas tem sido esse o caminho traçado no hemisfério norte no que concerne às integrais. Elas são determinantes para quaisquer avaliações mais acuradas. Sob outra égide, a complementar o projeto, o substancioso e longo texto que enriquece o conhecimento da integral para piano e o pensamento de Osvaldo Lacerda. Preciso, didático e analítico ao abordar cada peça de todo o conjunto, constituído pelos seis CDs. Um belo contributo. Deve-se a elaboração a Antônio Ribeiro, compositor e ex-aluno de Osvaldo Lacerda.

This post addresses the recording of the Brazilian composer Oswaldo Lacerda’s complete works for piano, a box with six CDs. Throughout his life, Lacerda (1927-2011) remained faithful to musical nationalism, exploring Brazilian musical genres, rhythms, dances, songs and harmony, using them as inspiration to create a sound of his own as a composer. The gigantic task of recording his opera omnia for piano was coordinated by his widow and also pianist, Eudóxia de Barros, who invited other six pianists: Maria José Carrasqueira, Paola Tarditi, Paulo Gori, Renato Figueiredo, Sylvia Maltese and Valdilice de Carvalho. An album to be celebrated, since it keeps alive for the Brazilian culture the valuable contribution of this important composer.