Navegando Posts publicados em novembro, 2017

Um caminho sem volta

Há hoje quem esteja plenamente convencido
de que nasceu mais engenheiro do que homem;
como se já estivéssemos naquele tempo de pesadelo
em que se fabricariam homens-máquinas

de servir máquinas de servir homens-máquinas.
Agostinho da Silva

Vivemos na era das especializações em praticamente todas as áreas. Ao ler artigo publicado aos 19 de Novembro deste ano em Contrepoints, sob o título “Télémédicine c’est pour demain… ou après-demain” (artigo do The Conversation assinado por Roxana Olegeanu-Taddei e David Morquin, ambos da Universidade de Montpellier), mais acentuadamente fica exposta a necessidade imperiosa de adequação às tecnologias e à especialização daqueles que se dedicam a essa área em evolução, assim como, por parte do Estado, uma atenção maior. Ainda no campo da medicina – e em praticamente todas as áreas – a especialização tem sido quase absoluta. O denominado médecin géneraliste em França e clínico geral na língua portuguesa está a se tornar raridade. Em minhas primeiras décadas lembro-me do Dr. Semi Sauda que nos visitava e que mui raramente seu diagnóstico falhava. Auscultava meus irmãos e nossos pais e prognosticava qual caminho tomar. Cirurgiões daquela época, majoritariamente precisos, apesar dos recursos técnicos menos avançados, realizavam não apenas uma modalidade cirúrgica. Estou a me lembrar do dileto amigo Gabriel Meirelles de Miranda, médico em Pouso Alegre, Minas Gerais. Atendia em seu consultório pacientes com os mais variados males, sendo igualmente cirurgião seguro nas mais diversas especialidades (vide blog “Amizade que desafia tempo e distância – Gabriel Meirelles de Miranda”, 14/03/2015). A super especialização da medicina atual, amparada nos avanços extraordinários da tecnologia e da pesquisa científica, implicou também o custo por vezes estratosférico de determinados procedimentos. No âmbito individual, pacientes de muitos afamados especialistas sabem disso na hora do acerto. Estou a pensar numa piada que ouvi anos atrás. Paciente que visitava um otorrino disse-lhe que estava com dor em seu ouvido direito, recebendo pronta resposta do médico: “sou especialista do ouvido esquerdo”.

Sempre que tema faz-me lembrar leitura de Agostinho da Silva, recorro aos textos do filósofo, ensaísta e poeta português (1906-1994). São vários os escritos do autor sobre especialização e especialistas (Agostinho da Silva. “Citações e pensamentos”. Organizador: Paulo Neves da Silva. Alfragide, Casa das Letras, 2009). Argutos, precisos, os textos de Agostinho da Silva atingem aspectos fulcrais do tema, tanto positivos como contrários. Quantas não foram as epígrafes que retirei desse e d’outros livros do notável pensador?

O autor tem consciência clara de que seria inútil negligenciar a civilização de especialistas. Engloba o homem das artes, das ciências e das técnicas. Faz-se necessário o especialista capaz de lançar luzes para gerações futuras. Haveria contudo em seu pensamento uma crítica à face do especialismo que, se “favorece aquela preguiça de ser homem que tanto encontramos no mundo, permite ele, por outro lado, aproveitar em tarefas úteis indivíduos que pouco brilhantes seriam no tratamento de conjuntos”. Estende seu pensamento às lideranças, que necessariamente têm de possuir a ideia do conjunto. Ampliando o leque, à cultura geral indispensável. Menciona o comandante em suas estratégias de guerra e na ação psicológica voltada à condução de seus homens que, “na maior parte das vezes, mal sabem por que se batem”. Não falta a menção ao desejo do homem e o seu ingresso na vida política. Agostinho da Silva comenta: “… paga-o o indivíduo quando, no cumprimento de uma missão fundamental para os destinos do mundo, se arrisca a ser político e sofre todos os habituais ataques dos especialistas de um outro campo que se não lembram de que o defeito para o político não é o de não ser técnico, mas o de não ouvir os técnicos e não lhes dar em troca, a eles, o sentido largamente humano que tantas vezes lhes falta. E, mais grave, paga-o de um modo geral a própria natureza humana, que, embora gostosamente embalando a sua preguiça nas delícias do especialismo, sente ainda, mais fundo e constante, o remorso de o ser”.

Se a abrangência faz-se necessária, nas áreas das Ciências Humanas ela pode ter ramificações. Considerando-se, pode um estudioso dedicar-se décadas a um só período histórico e nele se debruçar, assim como especializar-se em um só autor, exaurindo as fontes possíveis para o desvelamento mais preciso. Seria plausível supor que a expansão do conhecimento, ao ampliar horizontes, possibilita uma maior visão da “especialidade” a ser estudada. Ao longo desses dez anos tenho salientado a necessidade imperiosa da Cultura Geral como ferramental para o aprofundamento de qualquer pesquisa nessa vasta área das Ciências Humanas.

Agostinho da Silva questiona e responde: “Em que trai o homem, sendo especialista, a sua verdadeira missão de homem? Creio que em vários pontos. Um deles seria, por exemplo, no que respeita a fraternidade humana. Impedido pela especialização, pela compartimentação do saber, pelo emprego até de uma linguagem que se torna incompreensível para quem não andar exactamente pelos mesmos caminhos, de estabelecer relações com os outros em plano verdadeiramente elevado, o especialista tende ao ideal de uma civilização em que cada minhoca fosse paciente e forçadamente cavando a sua galeria…”.

Em dois posts abordei obras que apontam malefícios da especialização quando seus praticantes miram outros interesses. Russell Jacoby (vide blog “Os últimos intelectuais”. 21/03/2009) aponta a ininteligibilidade da escrita em revistas universitárias visando ao carreirismo e ao agrado dos pares: “Artigos que outrora eram legíveis, ou pelo menos interessantes, tornaram-se absolutamente herméticos e enclausurados”. Por sua vez, afirma Victor J. Rodrigues (vide blog “Teoria Geral da Estupidez Humana” e “A Nova Ordem Estupidológica”. 14/08/2010): “De qualquer modo, vale a pena realçar a postura básica subjacente à estupidez epistemológica: fechar a mente e a consciência a tudo o que não esteja de acordo com as ideias e metodologias pelos senhores das capelinhas do saber consideradas. Isto é feito pelo recurso militante à escolástica universitária, ou seja, a um corpo de teorias, ideias epistemológicas e autores cuja autoridade não pode ser contestada pois isso é tomado como ofensa directa ao senhores feudais que acreditam nelas”.

Individual ou seletivamente coletiva, a especialização é fato irreversível. Agostinho da Silva bem afirma: “Fomos todos obrigados a ser especialistas. Logo de princípio e nos termos mais gerais”. Reitera problemas advindos: “O que há de ruim no especialismo é o ser cada um o especialista de um domínio ainda vasto demais; o mal vem aqui, como em muitos outros pontos, de se ficar em meias medidas, de se não fazer até ao fim com inteireza lógica aquilo que uma vez se começou; temos de reduzir a especialidade a um domínio tão estreito que o trabalhador possa não só apreender o que já se fez com um gasto mínimo de tempo, como ainda com o mínimo de tempo manter-se a par do que se faz pelo mundo em sua especialidade e contribuir para que ela avance”. Como não pensar na obra-prima de Charles Chaplin, “Tempos Modernos”, de 1936? A essência do fenômeno está exposta de maneira tão clara!

A especialização é fato. Ascendente, sempre. Não nos deveríamos esquecer contudo do coletivo e do caminhar do homem pela História. A visão ampla ainda se mostra como via em direção à harmonia, pois há que se pensar no amálgama das tendências.

This post considers the pros and cons of specialization in the modern world according to the Portuguese philosopher, essayist and writer Agostinho da Silva (1906-1994).

 

Considerações sob outra égide

A paz é árvore que leva tempo a crescer.
Como acontece com o cedro,
há que se aspirar muito cascalho para fundar sua unidade.
Antoine de Saint-Exupéry
(Citadelle, Cap. XVII)

As opiniões divergiram. Unânimes na qualidade exemplar do livro “Guerra e Poder na Europa Medieval”, divergiram na avaliação da essência da Guerra, das incontáveis mortes e destruição, mas também da salvaguarda das liberdades. Atento à recepção de tantas mensagens, busco no presente texto considerar a dedução de uma conversa descontraída que mantive com o amigo Marcelo, durante um curto num café de minha cidade bairro, Brooklin-Campo Belo.

Preliminarmente menciono segmento de e-mail do arquiteto Marcos Leite que bem reflete a mentalidade generalizada, a entender as Cruzadas de uma maneira plena de romantismo, pois minha geração foi formada por narrações poéticas das guerras na Terra Santa entre cristãos e muçulmanos. Marcos traduz bem aquela realidade: “Tema apaixonante este das guerras medievais. Nossa imaginação tende sempre a romancear esse período da história, levado talvez pelas cenas cinematográficas da Távola Redonda, Excalibur, Ivanhoé e seus corações de leões batendo no peito protegido por luzentes armaduras, cobertas pelo manto branco com a cruz vermelha que caracterizava os cruzados, montados em brancos e enormes cavalos. Lindas imagens dessas figuras galopando em verdejantes prados ao encontro de donzelas perfumadas e bem penteadas. Lindas até pararmos um pouco para pensar na dureza desses tempos idos”. Marcos desfila algumas adversidades: “saúde, ou se der certo, sobrevivência; alimentação, seja a qual for, agradeça a Deus; inexistência de vestuário condizente com as condições climáticas e… o total desconhecimento da palavra higiene. E os odores após batalhas, graças às decomposições e incinerações de corpos de homens e animais… Fiquemos nas telas e nos livros…”.

O compositor e pensador francês François Servenière, a viver realidade na França atual, onde a população muçulmana cresce acentuadamente – natalidade, imigração desordenada -, envia-me uma série de artigos publicados no país e na Inglaterra. Preocupante, é o mínimo que podemos considerar.

Voltemos à conversa com Marcelo. A certa altura, pergunta-me o porque de, paralelamente à história real tão bem expressa no livro mencionado, enriquecida pelas narrativas de cronistas que presenciaram as batalhas sangrentas, não há comentários que se concentrem no “conteúdo”, estendendo-se à razão das mortes, às lições apreendidas de tantas carnificinas e destruição, à salvaguarda de gerações futuras. Disse-lhe que os notáveis historiadores não podem fugir da realidade dos fatos, consequência também da busca criteriosa às fontes fidedignas. Contudo, fiquei a pensar e lembrei-me de Antoine de Saint-Exupéry (1900-1944), escritor, poeta, repórter e aviador francês, que em várias situações de sua obra maior, Citadelle, aborda a temática. Segundo Simone de Saint-Exupéry, irmã do escritor, “essa obra densa e profunda aborda todos os problemas do destino humano e do condicionamento do homem”.

O narrador dos textos que constituiriam Citadelle é filho e herdeiro do Mestre do Império, situado num espaço indefinido, em algum lugar do vasto deserto. Em incontáveis vezes o agora senhor berbere faz alusão ao pai como mentor. Tornar-se-ia, por sua vez, Mestre do Império, e a narração concentra-se naquilo que pode levar seu povo ao fervor ou à degeneração. O estilo recitativo, poético, espiritual e filosófico de Citadelle já foi observado por estudiosos como tendo contornos bíblicos.

Observa o autor: “Todos os anos nascem aqueles que afirmam serem as guerras impossíveis, pois ninguém deseja sofrer, abandonar mulher e filhos, ganhar um território que não será desfrutado, para enfim morrer ao sol sob golpe de mão inimiga e receber calhaus ferventes no ventre. Sim, você pede a cada um de seus homens a sua escolha. E todos recusam. Não obstante, no ano seguinte o império novamente pega em armas, e todos aqueles que recusavam a guerra, inaceitável no seu linguajar simples, unem-se numa moral informulável para efetuarem uma abordagem sem sentido para eles. Constrói-se uma árvore que se ignora, apenas reconhecida por aquele que se faz profeta na montanha”.

Em Citadelle há um universo metafórico. Todavia, Saint-Exupéry tem seu idiomático nessa área. Em torno dele edifica sua narrativa. São tantas as alusões à árvore, desde a semente à plenitude, que ultrapassam gerações. Água a correr e pedra como eternidade também preenchem esse universo, assim como tantos outros aspectos integrantes da natureza.

Em outro préstimo que faz à metáfora: “Vocês perdem a guerra por nada desejarem. Não colaborando, vocês se destroem uns aos outros com decisões incoerentes. Olhem o peso da pedra. Ela rola e desce ao fundo da ravina. A pedra é a colaboração de todos os grãos de poeira que a formaram, contribuindo todos para o mesmo fim”. Em situação outra, Saint-Exupéry alude que a reunião de pedras irregulares formará o Templo e que, só, ela é apenas uma pedra. Continua: “Olhem a água de um reservatório. Apoia-se contra as paredes no aguardo das ocasiões, e elas surgem. Noite e dia ela incansavelmente pressiona as paredes. Aparentemente adormecida, ela vive. À mínima rachadura ela escorre, insinua-se, contorna obstáculos e reencontra aparentemente o sono se o caminho estiver interrompido, até que nova rachadura a faça deslizar. Ela não desperdiça a oportunidade. De maneira indecifrável para qualquer avaliador, basta uma simples pressão e o reservatório de água estará sem suas provisões. O seu exército é semelhante ao mar, que não pressiona o dique. Vocês são massa sem fermento, terra sem semente, multidão sem aspirações. Administram, ao invés de conduzir. Vocês são testemunhas estúpidas. As forças obscuras que forçarem as paredes do império não se importarão com os administradores e os afogarão sob suas marés”.

Preocupa-se Saint-Exupéry com a não firmeza de generais na condução de seus exércitos, quando sujeitos a opiniões oportunistas: “Destituo aquele general, coloco-o na prisão e não me preocupo em não o alimentar, pois dispôs seus exércitos, ponderou suas chances, sentiu o vento, escutou dormir o inimigo, mediu o peso do despertar dos homens, mas após mudou seu planejamento, substituiu seus capitães, modificou a marcha dos exércitos e improvisou sua batalhas pelo fato de ter ouvido uma pessoa preguiçosa que passava e que, durante cinco minutos, proferiu um ridículo sopro de palavras disposto em silogismos”.

Na condução do império, o senhor berbere considera que não é apenas o exército que pode salvaguardar o império, pois “quando o fervor se extingue ainda assim o império pode subsistir através dos seus guardas. Contudo, se esses sozinhos não puderem salvá-lo, é pelo fato de que o império já está morto”. A retomada da metáfora relacionada ao cedro, constante em Citadelle, ajuda Saint-Exupéry em suas reflexões: “Gostaria que fizéssemos a guerra contra qualquer coisa? O cedro que prospera e destrói a moita pouco se importa com ela. Desconhece-a. O cedro faz a guerra para o cedro e transforma em cedro a moita”. E sobre a morte sempre à espreita: “Quem quererá morrer? Queremos matar, não morrer. Ora, a aceitação da guerra é a aceitação da morte e este aceitar só é possível se você realiza essa sua troca por qualquer coisa. Portanto, pelo amor” (tradução: JEM). As considerações do senhor berbere, sempre a mencionar ensinamentos recebidos de seu pai, mestre do império, entenderiam possível o sacrifício de uma geração de combatentes, pois são esses que, ao morrer, garantirão a sobrevivência das gerações que estão por vir.

Saint-Exupéry idealiza a guerra. Necessária em tantas situações de impasse, a essência de seu pensamento será sempre o ser humano e o que ele tem de fulcral: a família, a responsabilidade, o fervor, o congraçamento. Em plena Segunda Grande Guerra, aos 31 de Julho de 1944, Saint-Exupéry, piloto, realizou seu último voo de reconhecimento na região de Grenoble e Annecy. É possível que tenha sido abatido por um ataque de caças alemães.

Saint-Exupery’s view of the war as expressed in his masterpiece Citadelle (translated into English as The Wisdom of the Sands), a collection of the writer’s reflections about humanity through a series of parables.

 

“Das Cruzadas à Guerra dos 100 anos”

A História constitui:
testemunha dos tempos,
luz da verdade, vida da memória,
mestra da vida e mensageira do passado.
Marco Túlio Cícero

…we will have no choice but to totally destroy North Korea.
Donald Trump

O estudo aprofundado das grandes guerras desde a Antiguidade revela procedimentos extraordinários por parte dos comandantes dos exércitos envolvidos. Vitoriosos e derrotados desenvolveram estratégias que se tornaram rico manancial para debruçamento dos especialistas na “arte” militar. Muitos relatos dos confrontos foram transmitidos por participantes dos combates. Equívocos dos comandantes, motivados por soberba e desconhecimento do poderio adversário, do território onde tropas se conflitaram, da meteorologia imperiosa, da não previsibilidade de armamentos e de provisões, despertaram a narrativa de cronistas através da história. Em post deste ano (vide blog “Berezina”, 10/06/2017) abordava o livro de Sylvain Tesson, no qual o escritor francês narra sua aventura em sidecar em 2012: o trajeto Moscou-Paris em pleno inverno, a lembrar os 200 anos da catastrófica retirada de Napoleão Bonaparte e de seu exército formado por tantas centenas de milhares de combatentes pertencentes a vários povos. Umas poucas dezenas de milhares retornaram. Erros monumentais de estratégia do Imperador vitorioso em tantas batalhas anteriores.

Acostumamo-nos a assistir ao desenrolar das guerras atuais, nas quais o poderio militar das potências maiores pode destruir com facilidade o adversário menos preparado. Ataques aéreos, como o ocorrido na invasão ao Iraque, assistido ao vivo, com milhares de rajadas aéreas mais parecendo fogos de artifício, têm como única “estratégia” a supremacia bélica absoluta.

Recebi das mãos de meu dileto e ilustre amigo João Gouveia Monteiro, Professor da Faculdade de Letras de Coimbra, o livro “Guerra e Poder na Europa Medieval – Das Cruzadas à Guerra dos 100 Anos” (Coimbra, Imprensa da Universidade de Coimbra, Agosto 2015), compêndio coordenado por Gouveia Monteiro e a ter como preciosos colaboradores os especialistas em História Medieval Miguel Gomes Martins e Paulo Jorge Agostinho. Estende-se a temática de 1187 a 1415.

João Gouveia Monteiro ministra aulas sobre história da Antiguidade e da Idade Média e história militar europeia, sendo autor de mais de uma centena de trabalhos científicos sobre temáticas daquelas especialidades. Anteriormente resenhei seu livro “Crónicas de História, Cultura e Cidadania” (Coimbra, Imprensa da Universidade de Coimbra, 23/12/2011).

As batalhas travadas na Idade Média, contrariamente ao que ocorre no presente, são precedidas pela “arte” da estratégia e pela “arte” improvisada no calor dos combates. “Guerra e Poder na Europa Medieval” salienta com agudeza o histórico preliminar de uma batalha, o combate a as consequências advindas. O livro está dividido em quatro capítulos, a abordar batalhas que se perpetuaram pela maestria de seus comandantes: “A batalha de Hattin (1187): o dia em que Saladino esmagou os Cruzados” (João Gouveia Monteiro), “Las Navas de Tolosa (1212): a batalha dos quatro reis” (Miguel Gomes Martins), “A batalha de Courtrai (1302): ‘apanhados como lebres numa armadilha’ ” e “A batalha de Agincourt (1415): o triunfo improvável de um ‘bando de irmãos’ ” (Paulo Jorge Agostinho). As duas primeiras relacionadas aos conflitos entre cristãos e muçulmanos no Oriente Médio e na Península Ibérica, respectivamente.

A batalha de Hattin é emblemática no contexto dos grandes combates militares da Baixa Idade Média. Gouveia Monteiro traça inicialmente, com pleno domínio da matéria e vocação didática, a história das Cruzadas, que se iniciaram em 1095 após o Concílio de Clermont-Ferrand, durante o papado de Urbano II (1042-1099). Ao todo foram oito Cruzadas mais significativas na Terra Santa, que se estenderiam até 1270. Considere-se que o papa tinha entre suas metas a luta contra os infiéis que se apoderaram de terras antes pertencentes ao Império Bizantino. Sob outra égide, valorizava a cavalaria medieval. Suas ideias iam ao encontro de um desenvolvimento econômico que se fazia sentir na Europa Ocidental.

Em subcapítulo, Gouveia Monteiro aborda a situação muçulmana no período das Cruzadas e salienta a figura emblemática de Salah al-Din (1138-1193), que se tornaria sultão do Egito e da Síria. O autor percorre a trajetória de Saladino e edifica o personagem estrategista, que soube com astúcia galgar os postos mais elevados do universo muçulmano. O relato de Gouveia Monteiro apreende características de Saladino e a preparação empreendida pelo sultão para o decisivo confronto,  que se daria na célebre batalha de Hattin. A fim de documentar melhor suas argumentações, apresenta uma série de depoimentos de época dos dois lados conflitantes, fato que conduz o leitor a participar da trama narrativa, pois Gouveia Monteiro observa que “Saladino utilizou uma estratégia de tal maneira ardilosa que conseguiu forçar o seu adversário a combater onde, quando e como mais desejava”. O exército comandado por Guido de Lusignan (1150-1194), Rei de Jerusalém,  foi  destruído.  O notável professor enriquece a envolvente narrativa ao apresentar mapas dos Estados Latinos do Oriente (1140 e 1187), dos Castelos dos Cruzados na Terra Santa, assim como outros mapas em torno da Batalha de Hattin.

A segunda batalha,  “Las Navas de Tolosa”, é estudada pelo especialista Miguel Gomes Martins. O prefácio aponta “Las Navas” como uma das mais documentadas batalhas travadas na Europa no século XIII, pois cerca de 117 cronistas, analistas e trovadores se debruçaram sobre o tema. Deu-se em 1212. Gomes Martins traça um histórico preliminar claro e didático da invasão islâmica e a consequente expansão muçulmana na Península Ibérica (711-716), iniciada através dos comandados de Tarik ibn Zihad (670-720). Oriundos do norte da África, derrotaram Rodrigo (? – 711), rei Visigodo da então Hispânia, que morreria na batalha de Guadalete naquele primeiro ano. Resistentes refugiaram-se ao norte na região onde seria fundado o reino das Astúrias. Expansionistas, os muçulmanos projetaram seus triunfos pela Península Ibérica. Avanços e recuos dos cristãos prolongaram-se através dos séculos e são pormenorizadamente expostos pelo autor. O domínio muçulmano, que visava à expansão para o norte da Europa e que se estabeleceu na Península durante mais de sete séculos, viu-se comprometido através da união de forças dos vários exércitos Cruzados.

Amparando-se em abundantes fontes, Gomes Martins pormenoriza-se na célebre batalha “Las Navas de Tolosa”. Tem-se desde a preparação e as dimensões das conflitantes hostes dos Cruzados e dos Almóadas até as estratégias para os combates, que tiveram aproximadamente 12 horas de duração. Impressiona o posicionamento relacionado à vitória durante os combates, tanto por parte dos cavaleiros e da infantaria cristã como das tropas do califado. Por fim, o rei Afonso VIII de Castela, coligado aos reis Sancho VII de Navarra, Pedro II de Aragão e mais cavaleiros de várias ordens, ao saber das sérias dificuldades que suas hostes sofriam, ordenaria o envio de tropas de elite, que não só dizimaram os opositores em campo de batalha como perseguiram-nos, massacrando-os. Milhares de combatentes sucumbiram, majoritariamente muçulmanos. Essa batalha foi um marco para a Reconquista, que seria definitiva em 1492, ano em que os muçulmanos foram expulsos da Península Ibérica pelos reis católicos Fernando e Isabel. Inúmeras ilustrações exemplificam as táticas da batalha “Las Navas”, pormenorizando-as.

Numa outra conjuntura, o Professor Paulo Jorge Agostinho analisa a batalha de Courtrai (1302) ou batalha das esporas douradas , que teve como mandatários conflitantes Filipe “o Belo” (1268-1314), Rei da França e Guy de Dampierre (1226-1305), conde de Flandres. Situada nos Países Baixos, a região flamenga, com suas indústrias em desenvolvimento, despertara a cobiça do Rei de França e suas intenções de aumentar seu poderio sobre a rica região. Paulo Jorge Agostinho, após relatar as fontes que serviram ao seu estudo, descreve com clareza a histórica “arca de Courtrai”  ou “arca de Oxford” que traduz cenas da batalha esculpidas em alto-relevo. A magnífica peça de mobiliário em carvalho data do século XVII, mas é cópia da original do século XIV. Foi encontrada nos arredores de Oxford no início do século XX.

O crescimento do Estado francês, que absorvera a Normandia, a Champagne e o Anjou, despertaria ainda mais a ambição voltada à Flandres, uma das regiões mais promissoras da Idade Média. Agostinho Martins detalha todas as entranhas históricas que levariam Filipe “o Belo” a investir sobre a Flandres. Com soberba, o belicoso Rei envia à região um exército constituído por dignatários, nobres e cavalaria altamente capacitada. Tinha como certa a vitória. Não contava, contudo, com a capacidade e as artimanhas dos vários agrupamentos de combatentes flamengos apeados, que souberam escolher o local para a recepção dos franceses. “Entrincheirados” em locais alagados do rio Lys e armados preferencialmente com lanças, goedendags, após escaramuças atraíram os cavaleiros franceses para os campos encharcados e os massacraram. Mais de mil nobres cavaleiros franceses sucumbiram, assim como inúmeros grandes senhores. Crônicas coevas apontam cinco ou seis mil mortos do lado francês e algumas centenas de guerreiros flamengos.

As guerras futuras teriam em conta o papel importante da infantaria apeada. A batalha de Courtrai é o despertar da independência e do sentimento nacional flamengo. Tão profundamente a data de 11 de Julho de 1302 é lembrada, que a Flandres a tem como data regional. Em 1995 presenciei em Gent, na Bélgica, um festejo comemorativo extraordinário. Com orgulho os flamengos comemoram a data, não faltando balonismo tripulado sobre a cidade, rica culinária a preponderar a batata frita – reivindicada como “invenção” gantoise -, muita cerveja, danças e alegria.

O Professor Paulo Jorge Agostinho assina também o último capítulo do livro. Trata-se de “A batalha de Agincourt (1415): O Triunfo improvável de um ‘bando de irmãos’ “. Insere-se o combate no cerne do conflito mais emblemático da Europa Medieval a envolver diplomacia, política e ação militar, a Guerra dos 100 anos (1337-1453). Tem-se nessa decantada batalha de Agincourt a possibilidade de estudo de duas distintas concepções estratégicas. Há certa semelhança na auto confiança inicial, tanto em Courtrai como em Agincourt. “Vencedores” iniciais nos combates, certos do triunfo, os franceses negligenciaram estratégias das tropas adversárias e sucumbiram. Paulo Jorge Agostinho percorre a História das batalhas envolvendo ingleses e franceses, aborda escaramuças durante o longo período dos 100 anos, penetra no cerne das motivações que levaram ao confronto dos dois povos na batalha de Agincourt, salientando a unidade das tropas inglesas sob o comando do Rei Henrique V (1387-1422), a contrastar com a divisão diretiva das tropas franceses, pois o exército francês não tinha a dirigi-lo o seu rei adoecido, Carlos VI (1368-1722), um dos fatores para ordens contraditórias. Sob outra égide, os arqueiros ingleses se mostraram eficazes contra as tropas francesas, que mantinham considerável cavalaria. Após a batalha, segundo relatos de narradores mencionados pelo autor, prisioneiros franceses foram executados por ordem de Henrique V para que não se juntassem aos seus compatriotas, pois o monarca temia represálias e seus homens ainda tinham de chegar a Calais, daí retornando à Inglaterra. William Shakespeare imortalizaria a batalha e a ação do monarca na peça “Henrique V”.

Os três ilustres professores sintetizam no prefácio a importância dos estudos aprofundados a que se propuseram: “Não vamos discutir aqui se estas batalhas podem ou não ser consideradas, tecnicamente, como ‘decisivas’ para a história do continente europeu. Provavelmente, nem todas. No entanto, uma coisa é certa: à sua maneira, todas deram um contributo relevante para a fisionomia da Europa nos séculos finais da Idade Média, e todas ajudam a explicar a civilização que hoje temos, as atuais fronteiras políticas, culturais e religiosas, e alguns dos mais complexos problemas do nosso tempo, a começar pelo diálogo entre o Cristianismo e o Islã. Daí a sua surpreendente modernidade”.

Guerra é sempre temática a envolver o não entendimento entre os homens. Milhares de jovens soldados e de combatentes experientes sucumbem por uma causa que lhes é transmitida por líderes. Em tantos relatos através da história é possível detectar a crença absoluta no Lider em detrimento da própria causa. Essa assertiva sempre existiu e faz parte da persuasão do “demiurgo” frente a seus comandados. Títeres ou não têm ambições, fator igualmente essencial para que as Guerras aconteçam. Contudo, apesar da temática ser “dolorosa”, há a Arte da estratégia que tão mais eficaz se mostra quão mais excepcional for o comandante.

Após essas breves considerações, entendo a leitura de “Guerra e Poder na Europa Medieval” apaixonante.

The post of this week addresses the book “Guerra e Poder na Europa Medieval – das Cruzadas à Guerra dos Cem Anos”(War and Power in Medieval Europe – from the Crusades to the Hundred Years’ War), written by the Portuguese experts in Medieval history João Gouveia Monteiro, Miguel Gomes Martins and Paulo Jorge Agostinho. The book covers the battles of Hattin (1187), Las Navas de Tolosa (1212), Courtrai (1302) and Agincourt (1415), with details of tactics and weapons used in combat, the role of cavalry and infantry, great commanders, the impact of geographic factors. As the authors say in the preface, such battles help explain the world today, its political, cultural, religious boundaries and some of the most complex problems of our time, hence their astonishing modernity.