Princípio primeiro: gostar da atividade

Faz-se necessário salientar fato elementar,
pois o intérprete detém o poder essencial.
É através dele que a música existe realmente.
Ao negligenciar essa evidência
corre-se o risco de distorcer todos os problemas da criação musical.
Andrés Souris
(“Conditions de la Musique”)

O workshop que será a apresentado na Sociedade Brasileira de Eubiose nos dias 6, 8 e 13 de Março tem como propósito expor as condições ideais para que uma gravação tenha êxito qualitativo. Expus no blog anterior a premissa dessas três palestras, enfatizando desde as gravações “heroicas” em LPs gravadas no Brasil, tantas vezes em situações técnico-acústicas precárias, apesar da dedicação dos envolvidos, como o passo decisivo que me levou a apenas gravar na Europa em condições excepcionais.

Em quase todas as áreas ocorre o problema da defasagem entre o que realizamos no Brasil e o que é concretizado em países denominados de ponta. Não é demérito constatar a evidência. É realidade. São tantos os fatores endêmicos!!! Nos esportes, na área empresarial, na mídia como um todo, nas artes. Há defasagem em toda a América Ibérica e, se a qualidade excelsa tem de ser buscada, ultrapassar as fronteiras torna-se um imperativo. Quando menciono os esportes, basta verificarmos a falta de apoio de nossas entidades esportivas para com os heroicos atletas brasileiros que lutam, tantas vezes à míngua, para a realização de sonhos quase sempre impossíveis de serem realizados, mercê da incompetência e por vezes desvio de conduta de dirigentes. O futebol brasileiro, hoje ridiculamente realizado em solo pátrio, tantas vezes com público irrisório, nada mais tem a ver com a qualidade ímpar dos grandes times europeus, eivado de jogadores brasileiros talentosos que buscaram plagas melhores.

O mesmo ocorreria com as gravações. Sob outra égide, a busca sempre incessante pela qualidade é traduzida pela necessidade sine qua non de os intérpretes estarem rigorosamente preparados para o mister. Não é apenas gravar, mas sim pensar no resultado final como algo que permanecerá pelo extremo cuidado durante todo o processo, assim como pela divulgação em países afins. Qualidade atrai qualidade. A experiência gravando em três países europeus, distintos culturalmente, faz com que, nessas três palestras que serão apresentadas, métodos, espaços e técnicas diferenciadas durante o processo de gravação caminhem para um único objetivo, atingir-se o melhor nível possível.

Após a gravação da integral para violino e piano de Henrique Oswald com Paul Klinck ao violino, registro realizado na Rádio de Bruxelas em 1995 para o selo PKP, foram três outras gravações em Sófia, na Bulgária. Primeiramente os dois Concertos para dois cravos de J.S.Bach (pianos, no caso) e orquestra de câmara, a fim de completar a integral para o instrumento solo realizada por meu irmão João Carlos. Gravamos na Sala Bulgária com a direção segura de Plamen Djurov. Em pleno inverno de 1996, a temperatura chegou aos -15º. A seguir recebi o convite de Heiner Stadler, diretor do selo Labor, para o primeiro CD de uma série (“Musik of Tribute”) com vários intérpretes, toda lançada pelo selo nos Estados Unidos. Assim, gravei no verão do mesmo ano “Music of Tribute” – vol. 1, com obras de nosso grande compositor Villa-Lobos e outras de autores consagrados, que lhe dedicaram homenagens pela passagem do centenário de nascimento em 1987, e que resultaram num caderno com as partituras que eu editei na Universidade de São Paulo no ano em pauta.

A gravação de “Music of Tribute” levou à seguinte, realizada no verão de 1997, com a integral de Jean-Philippe Rameau para teclado em dois CDs. Tendo chegado três dias antes, devido à defasagem horária acentuada, preferi ficar recluso em meu quarto no Hotel Bulgária. Para tanto levei meu teclado mudo e nele estudei minhas horas antes da gravação. O primeiro piano de fato após essa preparação foi um magnífico Steinway & Sons durante as gravações, que se estenderam por três noites. Heiner Stadler, em sua vasta experiência, testou várias salas europeias para as gravações de João Carlos em torno de Bach. A Sala Bulgária, em Sófia, teve de sua parte a plena acolhida. Toda revestida de madeira e com poltronas do mesmo material. A extraordinária acústica dessa grande sala abrigou a integral de Rameau com suas harmonias ousadas, a elegância dos contornos melódicos, a magistral organização formal e… os quase 5.300 ornamentos da fantástica obra ramista. O saudoso engenheiro de som Atanas Baynov, um especialista hors concours.

Entendo o ato de gravar como uma missão. Foi André Posman, diretor da De Rode Pomp, na Bélgica, que, após dois ou três recitais em anos sucessivos em sua temporada musical na cidade de Gent, chamou-me à sua sala e disse-me “professor, chegou o momento de o senhor deixar a sua herança”. Uma relação que dura até o presente me ligaria decididamente à cidade de Gent, sede da extinta De Rode Pomp, empresa responsável pela série ininterrupta de CDs que gravaria de 1999 até 2009, sendo que outras se prolongariam até 2015 para outros selos. Em 2019 penso gravar meu último CD. Sempre lembro o grande escritor e poeta português Guerra Junqueiro: “o tempo é insubornável”. Houve apenas uma exceção durante esse longo período, a gravação do CD “Viagens na Minha Terra”, unicamente com obras do notável compositor português Fernando Lopes-Graça. Gravei-o em 2003 na bela e lendária Leiria e o CD saiu sob a égide do selo Portugaler.

Num sentido abrangente consideraria três tipos de intérprete frente à gravação. Há aquele, que durante a trajetória, perpetuou o repertório por ele visitado desde os anos de aprendizado, incorporando inúmeras outras composições, todas pertencentes à tradição vigente, que remonta à segunda metade do século XVIII, mas estancando suas preocupações a partir do que foi escrito basicamente na segunda metade do século XX. Desafio sim, todavia parte considerável desse repertório já foi gravada dezenas de vezes, quiçá centenas, tantas dessas gravações realizadas por pianistas excelsos. É fato. Temos também o pianista que faz parte da lista de intérpretes das grandes gravadoras. Nesse caso, não são poucas as vezes em que ele aceita gravar repertório imposto pela empresa. Creio já ter narrado que, por volta de 2005, dias antes de uma gravação pelo selo belga De Rode Pomp, dei recital, como habitualmente fazia, com o programa que seria registrado fonograficamente na Capela Sint-Hilarius, em Mullem, que remonta ao século XI. Depois do recital, jantava com músicos belgas no restaurante da De Rode Pomp, quando fui apresentado a um agente de uma das mais prestigiadas gravadoras do planeta. Esse emissário veio de Bruxelas. Assistiu ao recital e viu nas prateleiras da sede da instituição cultural de Gent a série de meus CDs. Disse-me que gostaria que eu estivesse na lista de pianistas da organização. Agradeci, mas fiz-lhe três perguntas concernentes à atuação: poderia escolher o repertório, o local da gravação e escrever o texto incorporado à caixa do CD? A resposta foi sempre não, pois a organização determinava o repertório, o local da gravação em algum ponto do planeta e o texto era da responsabilidade da empresa. André Posman, diretor da De Rode Pomp, passava pelo local, logo após essas negativas. Levantei-me, dei-lhe um beijo na face e disse – ambos sorrindo – “pour l’eternité”. Conto esse episódio pelo fato de que é fácil detectar – consideremos a grande qualidade desses intérpretes, frise-se – nesse repertório preparado açodadamente, gravado e colocado no mercado, o pouco envolvimento do contratado, mesmo que habilmente executado. Não houve a decantação necessária, o debruçar lento que leva à integração com a obra executada. Como dizia um amigo músico belga, “execuções planas”. Sob outro aspecto, é difícil para o ouvinte leigo diferenciar interpretações. Essas grandes organizações estão há tempos repertoriando integrais e para tanto têm de manter entre seus artistas aqueles confiáveis. O único problema é que, na maioria dos casos, o dirigente, big boss, durante sua trajetória como empresário de sucesso, pode ter dirigido anteriormente uma empresa voltada à alimentação, aos produtos de perfumaria, à automobilística ou sabe-se lá quais entidades de outras áreas. Importa-lhe o mercado. Uma terceira categoria, na qual me incluo, esteve ou está ligada às microgravadoras seletivas que, logicamente, lançam pequena quantidade de CDs. Na De Rode Pomp, jamais André Posman impôs programa a ser gravado. Preferenciam o repertório pouco frequentado. Para o selo gravei 12 CDs, sempre a ter como engenheiro de som Johan Kennivé, um dos mais importantes da Europa. Outros sete para selos diversos foram gravados por Kennivé, sempre na Capela Sint-Hilarius. Sobre a mística capela escrevi vários posts ao longo de onze anos de blogs ininterruptos, completados presentemente.

Quanto a essa terceira categoria, há mínima guarida por parte da mídia. Na prática, ela menospreza o desconhecido e, como a massificação é fato inconteste, quanto mais o que está a agradar perdura, mais ela divulga. Na música dita de concerto, o repertório super ventilado; na música popular, o sucesso de plantão é exaltado ad nauseam. No meu livro “José Eduardo Martins – un pianiste brésilien” (série Témoignages, Paris Sorbonne, 2012) comparava o repertório extraordinário pouco ou nada frequentado com a parte submersa de um iceberg. O grande público conhece essencialmente a ponta desse iceberg e a cultua. Juan Carlos Paz (1901-1972), notável músico e crítico argentino, era extremamente cáustico em relação a esse apego desmesurado à ponta do colossal bloco de gelo, como assim denomino. Escreve: “nefasta disciplina geradora de virtuosos que, durante trinta anos ou mais, passearam os seus repertórios chopiniano, lisztiano, beethoviniano diante de esclerosados, estáticos e estúpidos auditórios que desejam ouvir a cada dia as mesmas obras e a quem só interessa o espetáculo desportivo com que os brinda o pianista favorito”. Sua posição extrema revela contudo a perpetuação do repertório sempre repetido. Diria que as sociedades de concerto fazem esparsamente concessão (remorso inconsciente?) ao passado olvidado.

Atraiu-me, desde os anos 1970, o repertório magistral pouco ventilado ou nada frequentado. Dos 12 CDs gravados para o selo De Rode Pomp, se exceções há, como os “Quadros de uma Exposição” de Moussorgsky ou a “Humoresque” de Schumann, magistralmente gravados por pianistas relevantes, foi pelo fato de integrarem um núcleo específico, pois em contexto definido, uma ideia a entender essas obras como pertinentes a um projeto.

No terceiro e último post tratarei de aspectos interessantes que fixei na memória durante os 22 anos a gravar no Exterior. Nele destacarei a importância fulcral do engenheiro de som. Johan Kennivé, técnico inexcedível, é igualmente psiquiatra. Amalgamamo-nos. Uma segunda metáfora a lembrar o iceberg também estará em pauta.

Resuming the subject of the forthcoming talks I will give on my recording experience in Europe, I plan to comment on performers that play the same repertoire over and over again and on my choice of promoting new masters instead of offering the same alternatives year in, year out, not forgetting to mention that every choice must be paid for.