Questionamentos que levam à reflexão

Escuta, escuta: tenho ainda
uma coisa a dizer.
Não é importante, eu sei, não vai
salvar o mundo,
não mudará a vida de ninguém -
mas quem
é hoje capaz de salvar o mundo
ou apenas mudar o sentido
da vida de alguém?
Eugénio de Andrade (1923-2005)

Recebi mensagens, telefonemas e conversei com leitores em minha cidade bairro Brooklin-Campo Belo. Quase todos querendo saber mais sobre o processo desde o início do projeto a ter como desiderato a gravação em alto nível.

Afirmei anteriormente minha idiossincrasia em pertencer a uma lista de intérpretes de gravadora de ampla divulgação. Convidado por renomada empresa internacional, recusei. Respeitando os pianistas integrantes das listas, que lá não estariam sem méritos, possuidores do talento para preparar repertório indicado para resolução em brevíssimo tempo, entendo que a raiz do problema está nessa pressa em ter a gravação colocada o mais rapidamente no mercado, nivelada a qualquer outro produto encontrável num supermercado. Fato concreto.

Retorno às gravações do passado. Tinham acesso às gravações poucos grandes intérpretes, majoritariamente gravando repertório que lhes era conhecido desde sempre. Apesar dos recursos técnicos rudimentares, se comparados aos da atualidade, as mensagens tinham a aura da definição de um estilo de interpretação, único, indivisível. Podia-se apreender o âmago do artista na interpretação de uma obra, geralmente a pertencer ao repertório tradicional por ele praticado amplamente. Serviram e servem de modelo até o presente. Considere-se o custo elevadíssimo dessas gravações que eram colocadas no mercado por poucas empresas especializadas.

A proliferação de intérpretes, no caso pianistas, acentuou-se nessas últimas décadas. Só do Extremo Oriente chegam ao Ocidente legiões de pianistas que participam dos concursos internacionais de piano. A imensa maioria, pianistas de extrema habilidade, mas poucos com ideias próprias. Verificamos uma quase pasteurização nessas interpretações límpidas e até acrobáticas, diga-se, mas carentes de personalidade em tantas delas. Vencedores de concursos, haverá alguns que serão convidados para as tais listas, somando-se a outros, oriundos principalmente dos muitos países europeus. Todos estarão preparados para, no momento em que forem chamados, atender às necessidades da empresa e rapidamente estudar as obras propostas, o que ratifica, sob o aspecto fulcral do ensino técnico-pianístico, um avanço. Esses integrantes desincumbem-se bem da tarefa, mas a essência essencial da interpretação fica ao largo, tantos são os exemplos. Verdadeiros “tijolos” de CDs com  dezenas de intérpretes,  a abranger todos os gêneros praticados por um compositor, cuja integral o leigo aprecia ter em sua estante. Verificando-se com acuidade a diferença dos intérpretes e suas reais afinidades com aquele repertório, os vários locais onde foram feitas as gravações, a diversidade dos instrumentos e dos técnicos, chega-se à integral, mas faltará a unidade. As grandes empresas não têm como propósito esse ideal formado pelo trinômio interpretação-qualidade-unidade e sim a grande divulgação. Grande parte dos managers não entende música, mas são ágeis empreendedores.

Ao visitar um bom amigo belga, presente a todos meus recitais em Gent, mas leigo, mostrou-me ele sua coleção de “tijolos”, brique, em francês, como me disse a sorrir. Integrais de J.S.Bach, Mozart, Beethoven e tantos outros preenchiam as estantes. Durante o agradável jantar, em determinado momento perguntei-lhe sobre sua escuta, se era diária, periódica… Meu amigo, com pleno ar de satisfação, observou que ouvira ainda muito pouco do todo, mas que seu prazer maior era saber-se “senhor” de toda aquela rica produção. Retornei a pé até a Neue Brugai Straat, onde estava hospedado, numa noite gélida, a pensar na imensa cadeia de interesses das empresas: lista de intérpretes, necessidade de  visualizar o “tijolo” no mercado e, como finalidade, o lucro.

Longe estamos das integrais que eram realizadas por um só intérprete. Se elas ocorrem mais recentemente, são minoritárias. Exemplificando sucintamente o passado longínquo ou menos distante, menciono as Sonatas de Beethoven, por Arthur Schnabel (1882-1951); Debussy, Ravel e Mozart, por Walther Gieseking (1895-1956), Schubert, por Friedrich Wührer (1900-1975), os 27 Concertos de Mozart, incluindo as cadências compostas pelo pianista Géza Anda (1921-1976), e tantas outras integrais, muitas delas particularizando segmentos essenciais de um compositor. Nestas últimas décadas, obras completas foram gravadas unitariamente. Contudo, tornam-se mais raras, preferindo as grandes empresas compartimentá-las, o que representa uma abertura de mercado para quantidade de intérpretes. A minha geração conheceu bem essas integrais que se tornaram referência, pois interpretadas por pianistas extraordinários. Tínhamos um modelo que não era para ser imitado, mas servia como base sólida para preservar a boa tradição. Penso eu que as novas gerações, ao ouvir esses “tijolos” interpretados por diversos pianistas, podem ficar à deriva. Um jovem talentoso perguntou-me recentemente sobre determinado compositor que havia sido privilegiado com a integral compartimentada: “quais dos pianistas são os melhores?”.

Sob outro aspecto, o da apresentação ao vivo, era comum um grande intérprete ficar um bom tempo em uma cidade, a fim de apresentar a integral de um segmento da criação de um autor. Há décadas as agendas das sociedades de concerto – preenchidas com anos de antecedência nos grandes centros -, optam pela diversidade de intérpretes nas temporadas de música. A necessidade imperiosa, ditada pelo mercado, forçando a pluralidade, está a impedir a prática, tão usual no passado, das integrais ao vivo por apenas um intérprete. E só de pensar que a integral das Sonatas de Beethoven, nas várias vezes que foi interpretada pelo pianista Fritz Jank (1910-1970), teve afluxo pleno no Theatro Municipal de São Paulo, assim como mereceu grande recepção Friedrich Gulda (1930-2000), o extraordinário pianista austríaco que também interpretou as 32 Sonatas em nossas terras. No início do século XX, tivemos Vianna da Mota (1868-1948), notável pianista português, executando esse conjunto monolítico de Beethoven em tournée pela América do Sul, assim como os dois livros do Cravo Bem Temperado de J.S.Bach. Nas várias passagens pelo Brasil, apresentou parte de seu imenso repertório. Acrescente-se que foi notável compositor. Atualmente, devido ao calendário intenso, os intérpretes mais ventilados normalmente repetem repertório, majoritariamente privilegiando obras que integram a ponta do iceberg.

Estávamos em 1977. Ao recital que apresentei no Sesi São Paulo, com obras de Alexandre Scriabine (1872-1915), compareceu o saudoso pianista Roberto Szidon (1941-2011). Após a apresentação, fomos direto à TV Cultura para gravar programa ao vivo conduzido pelo Maestro Walter Lourenção, focalizando o compositor russo Alexandre Scriabine. Szidon gravara para a Deutch Gramophone as dez Sonatas para piano do compositor russo e eu, meses antes, apresentara no MASP  a integral dos Estudos. Revezamo-nos ao piano executando várias criações scriabianas. Findo o programa, dei-lhe carona até a morada de seus tios nas cercanias da Universidade Mackensie. Conversamos ainda longamente. Fazia-se madrugada. Disse-me Szidon que bem cedo viajaria para o Rio de Janeiro, a fim de gravar um  LP com obras de Radamés Gnatalli. Fiquei estupefato, pois a partir das dez horas da manhã a gravação começaria. Perguntei-lhe se conhecia bem essas composições. Respondeu-me que as aprendera  naqueles dias. Szidon lia uma partitura como jamais vi. Era instantânea a sua leitura à primeira vista. De regresso, fiquei a pensar a respeito da captação da mensagem em sua integralidade. Certamente a gravação deve ter saído a contento, mas o espírito da obra lá estaria? Impossível apreendê-lo açodadamente. Roberto Szidon, imenso pianista que nos deixou precocemente. Mencionei, em post bem anterior, que a notável pianista Guiomar Novaes (1894-1979) confessou-me em 1956-7, após ter tocado para ela um Improviso de Schubert e segmentos do Carnaval de Viena, de Schumann, que as obras sofreriam um longo amadurecimento durante minha existência e, que, só recentemente (àquela época) entendera realmente a mensagem do Carnaval op. 9 deste último, criação que ela tocava desde a adolescência!!!

Acredito que um retorno às prerrogativas do passado são impossíveis. Haverá, nessa avalanche a buscar a exumação de “todo” repertório, um final não promissor. Açodamento não é exemplo de seriedade de propósitos. Espalhados pelo mundo ocidental, pesquisadores têm realizado trabalhos meritórios, redescobrindo, editando e propiciando a intérpretes conscientes realizarem o ato final da descoberta, a execução e gravação. Esses intérpretes pertenceriam a uma outra categoria, cônscia da qualidade da pesquisa. A grande gravadora não estaria preocupada com a qualidade das partituras, muitas por elas preparadas precipitadamente. Só de pensar que a edição crítica das obras de Hector Berlioz já dura decênios, assim como a de Claude Debussy!!! Exemplo a ser seguido? Está-se a viver num mundo pasteurizado. A qualidade virou um pormenor. O imediatismo é a antítese do aprofundamento. Nada a fazer.

This post, the last on my recording experiences in Europe, addresses the contrast between works by independent music artists (independence offers more freedom of choice) and those by major label artists, who hardly have time to study the works they are going to record, what may result in music that is flat and emotionless.