Deve-se buscar as melhores condições
Para o ouvinte,
intérprete e autor são a mesma coisa,
mesmo que acredite distinguí-los.
Na realidade, o ouvinte preocupa-se
minimamente com as intenções do autor.
Basta-lhe o que está a ouvir.
André Souris
(“Conditions de la Musique”)
Em texto basilar, Francisco Mignone (1897-1986) apontava a supremacia da composição sobre a interpretação: “há algo de interessante no concertista; quando ele desaparece, automaticamente desaparece o trabalho que ele fez nesse efêmero período de tempo. O concertista muito raramente é lembrado, ao passo que o compositor é diferente na medida em que ele deixa uma obra. É um patrimônio eterno que ele deixa para a sua Pátria” (“A parte do anjo – auto crítica de um centenário”, São Paulo, E.S. Mangioni, 1947). Palavras sábias de um dos nomes maiores da música brasileira.
No post anterior mencionei a inserção de outra metáfora relativa ao iceberg. O tempo de criação desse “patrimônio eterno” de que nos fala Mignone pode ser, paradoxalmente, muito breve. Bem inferior à dimensão da ponta do iceberg. Consideremos a verve instantânea de compositores como J.S.Bach (1685-1750), Vivaldi (1678-1741), Mozart (1756-1791) ou Schubert (1797-1828) como exemplos da rapidez em que passavam para o papel pautado o jorro da criação. A excelsa composição Quadros de uma Exposição, de Modest Mussorgsky (1839-1881), concebida após choque emocional ao visitar a exposição de aquarelas de seu saudoso amigo Viktor Hartmann (1834-1873), foi criada durante cerca de quinze dias. Recluso em seu quarto, o autor russo compôs uma das obras mais importantes da história da Música. Quanto à interpretação, quantas milhões de horas intérpretes ao piano ou músicos de orquestra (versão realizada por Maurice Ravel) não se dedicaram e não se debruçam sobre a obra para interpretá-la da melhor maneira possível!!! Esse “patrimônio eterno” mencionado por Mignone, exemplificado por milhares de composições que atravessam os séculos, não existiria, considerando-se sua finalidade, sem o intérprete. Ele o recria, como bem diz André Souris na epígrafe do blog anterior. Apenas ele será responsável pela perpetuação. Não se descarte a posição cética, mas real, do grande escritor e poeta português Guerra Junqueiro, que testemunha “Um livro atirado ao público equivale a um filho atirado à roda. Entrego-o ao destino, abandono-o à sorte. Que seja feliz é o que eu lhe desejo; mas, se o não for, também não verterei uma lágrima”. Estou a me lembrar da “redescoberta” da deliciosa Sonatina Mozartiana, de Gilberto Mendes (1922-2016), nos anos 1990. Compusera-a em 1952 e a obra “jazia” dentro de um baú, muito bem embrulhada com outras partituras. Ao abri-lo junto ao compositor, disse-me ele que não se interessava pelas obras daquele início da década e que desde a criação permaneciam nesse limbo. Fui ao piano e a resposta, após minha leitura, veio imediata e acompanhada por vasto sorriso: “Não é que ela é bonita!”. Dedicou-ma sur le tard, interpretei-a em primeira audição, gravando-a posteriormente em Sófia, na Bulgária. A Sonatina Mozartiana, “atirada à roda” a partir daí, já foi gravada no Exterior por vários outros intérpretes, editada na Bélgica e tem figurado em muitos programas de pianistas.
Se a obra sempre prevalece sobre a interpretação, por mais sublime que esta possa ser, considere-se um tema fulcral constantemente aludido em blogs ao longo dos anos, pois o que se vê a cada ano mais acentuadamente é a presença do intérprete, estimulado pela mídia e pela popularidade decorrente, sobrepondo-se à composição, o que denota a aparência da verdade. A transitoriedade do intérprete é fato, mas jamais admitida por quantidade de executantes. Escrevi sobre gestuais exagerados, trajes que revelam histrionismo, mormente da parte de determinadas intérpretes bem divulgadas. Por mais hábeis que possam ser, na essência a obra é um veículo necessário para a consagração ou sua aparência.
A gravação sem vídeo em condições excepcionais de captação é o momento a preservar a herança do intérprete. André Posman, diretor da De Rode Pomp, assim me transmitiu no longínquo 1999. Os microfones, a representar o público invisível, só querem apreender o intérprete em sua plena verdade, sem quaisquer excentricidades. Desnuda-se o intérprete a revelar o de profundis, e mesmo a edição de uma gravação nada mais é do que a busca de uma perfeição sempre inatingível. Pianistas se prolongaram através de muitas décadas unicamente por essa rigorosa transmissão da obra, sendo eles os intermediários a quem é concedida a recriação da composição sem aviltá-la. Impressão digital, pois não há duas interpretações iguais e se, por razões pessoais, o intérprete busca imitar, tem-se então o simulacro.
Entro na Capela de Sint-Hilarius desde 1999 para deixar minha mensagem sonora. Em post bem anterior (vide “A comunhão das pedras”. 3 de Maio de 2007) escrevia: “A parte central de Sint-Hilarius – onde se ergue a torre – e as laterais da capela são em pedra. Maiores ou menores, todas irregulares, mas que, na junção, formam uma simetria assimétrica que emociona o intérprete, ainda mais sabendo que elas estão lá há mil anos, longe da multidão de olhares que se dirigem aos monumentos difundidos. Em sua austera simplicidade, a pedra reunida em Mullem é um apelo à espera do não contágio. Em Citadelle, Saint-Exupéry escreve que a razão da existência da pedra é sua união com outras pedras. ‘O que é a pedra sem o Templo’, pergunta. Agrupadas elas espiritualizam o homem através de outros congraçamentos”. Entendo a capela de Sint-Hilarius como o local perfeito para a mensagem que deve ser transmitida. Sob outra égide vem-me à mente frase exemplar do compositor Pierre Boulez: “É necessário ter diante de uma obra que ouvimos, interpretamos ou compomos um respeito profundo, como o que temos frente à existência. Como se fosse uma questão de vida ou morte”. Essa assertiva compreende a apreensão da fundamental importância do intérprete, mas igualmente de sua rigorosa formação, a evitar trair o espírito do compositor. Não há duas interpretações idênticas. Todavia, um fio condutor transporta o peso da tradição e ela deve ser respeitada. A “transgressão” a princípios básicos de estilo pode levar o intérprete à notoriedade, que tende a perdurar durante certo tempo, mas fatalmente o levará ao ostracismo.
Johan Kennivé, engenheiro de som, é um mestre absoluto. Psiquiatra de formação e especialista em gravação, já gravou em muitos países da Europa. Reside perto de Gent. Com sua van vem-me buscar, passando sempre por volta das 19:00hs. De Gent a Mullen percorremos uns 40 quilômetros. Jantamos tranquilamente, eu a pedir nesses dias sempre um spaghetti à bolonhesa e uma cerveja. Ele me acompanha nessa escolha. Serenamente nos dirigimos à capela, onde o piano vindo da Steinway & Sons de Hamburgo, “0km”, já lá está à espera. Tomada de som, arranjos finais e, por volta da meia noite, iniciamos a gravação, que se prolonga, com várias interrupções, até as cinco, seis ou sete horas da manhã. Preferenciamos o inverno, pois anoitece cedo e amanhece tardiamente. Melros, rouxinóis e outros passarinhos silenciam. Por vezes uma coruja provoca alguma interrupção. Esparsos jatos comerciais cortam os céus da planura flamenga e durante um bom minuto aguardamos que o silêncio se faça. Jamais sofro pressões, como outrora na Bulgária, onde o tempo de gravação era rigoroso e palavras incisivas demarcavam o inexorável término. Johan faz-me respirar. Sinto sempre a tranquilidade para a transmissão por inteiro da mensagem musical. A intuição de Johan é plena. Sabe o momento exato de me interromper e, de sua van, com todo o material e câmara, pede-me para ir até sua cabine tomar uma xícara de chocolate e deliciar-me com uma torta de maçã preparada por sua esposa, Tineke. Percebe necessária essa pausa de uns poucos minutos. Ouço alguns resultados preliminares. Volto revigorado. Jamais me disse “acabamos por hoje”. Sei o momento de parar. Isso feito, estendo-me nos bancos da capela, enquanto Johan desmonta sua maquinaria. Regressamos a Gent para um recomeço às 19:00 horas. Ritual que se prolonga nessas três noites mágicas, desde 1999. Antes de meu regresso a São Paulo, Johan me entrega o material coletado nos três dias de gravação. Na minha cidade-bairro, Brooklin-Campo Belo, realizo nas semanas seguintes a cuidadosa edição, remetendo a Kennivé minhas opções. O tempo escoa e, no momento preciso, Johan me envia o master para uma derradeira escuta. Em 2019 deverei gravar meu último CD na Capela de Sint-Hylarius. O correr da existência assim determina.
É fundamental o amálgama com o engenheiro de som. Johan é um sábio. Perscruta silenciosamente o de profundis do intérprete. Quando da gravação dos “New Belgian Etudes”, para o selo De Rode Pomp, gravei criações expressamente compostas por dez ilustres compositores para o CD, fazendo parte de meu projeto de Estudos Contemporâneos para piano. Ao gravar Adagio Funebre, terceiro dos 3 stukken voor piano, de Roland Coryn (1938- ), a lentidão e o ritmo incisivo da peça impediram-me de me sentir à l’aise nas três vezes que a interpretei. Foi quando Kennivé me chamou. Atravessei o pátio gelado que leva à van e serenamente Johan me disse que eu vinha do país do sol. Continuou a dizer que o enterro nessas pequenas cidades flamengas é rigorosamente sombrio. Uma carruagem, puxada por dois cavalos, transporta a esquife pelas ruelas até o pequeno cemitério. Kennivé havia gravado dias antes em cidade da região uma homenagem prestada ao notável poeta da Flandres Guido Gezelle (1830-1899). Um recitante leu naquela ocasião, na língua flamenga, um poema do padre poeta nascido em Bruges, justamente a ter como tema um enterro naquelas paragens. Com voz grave e lentamente o poema foi lido, tendo ao fundo música incidental em baixa intensidade e ritmada. Ao final, eu disse ter entendido e, numa execução apenas, a obra estava gravada, a transmitir a solidão absoluta. Após, em silêncio, Johan e eu ouvimos o resultado final. Amálgama.
Creio que jamais me habituaria à feérica indústria cultural, a pensar resultados imediatos e lucros consequentes. A gravação, para adquirir aura, necessita da decantação da obra pela mente do intérprete, a preceder o ato final. O compositor e pensador francês François Servenière, ao ler o blog anterior, comenta: “Li com grande interesse o post da semana sobre a interpretação e, sobretudo, sobre a gravação, vertente na qual você é especialista. Entendo sua escolha ao recusar uma carreira internacional sob a égide de agentes, sociedades de concerto e empresas discográficas maiores. Como você, eu percebo a repetição ad nauseam do mesmo repertório colocado no mercado.” Ao privilegiar o repertório de altíssimo valor, muitas vezes ignoto, selaria também minha trajetória, nela instaurando-me conscientemente. O holofote, esse canto das sereias que pode fazer sucumbir o culto à arte, ilumina intensamente, mas pode também ser a “aparência” da verdade.
São tantos os fatores que extrapolam o registro fonográfico! Estou a me lembrar de uma gravação primorosa e única na apreensão de conteúdos. Após um recital que apresentei em Paris em 1960, na Académie Marguerite Long (1874-1966), a lendária pianista e minha mestra ofereceu-me um LP autografado, que guardo carinhosamente. Nele estão obras de Gabriel Fauré (1845-1924) para piano solo e o Quarteto em sol menor, tendo como intérpretes os notáveis Jacques Thibaud (violino), Maurice Vieux (viola), Pierre Fournier (violoncelo) e a própria Marguerite Long. Ela escreve nas notas anexadas: “Uma palavra ainda sobre o Quatuor en sol mineur. Foi gravado no dia 10 de Junho de 1940. De manhã, os alemães entraram na Holanda. Partimos aturdidos para o estúdio. Eu sentia a agonia que se apoderou de Thibaud: seu filho Roger combatia no front. Durante a gravação, nossa emoção estava no limite, e creio que a gravação é a imagem fiel desse estado de espírito. No dia seguinte, Roger Thibaud morria heroicamente”. Entendo não apenas como “imagem fiel”, mas como gravação inexcedível. Mutatis mutandis, a guardar todas as proporções, quatro dias após presenciar a morte de meu querido genro José Rinaldo, aos 29 de Janeiro de 2004, viajava para a Bélgica, a fim de gravar CD dedicado unicamente aos Estudos Belgas Contemporâneos. Gravação que saiu a contento, mas sentia-me no limite de um esgotamento emocional. Na terceira madrugada finalizamos a gravação por volta das 6:00hs. A planura flamenga silenciosa e ainda em plena escuridão. Pedi ao Johan para apagar todas as luzes e deixar acesa apenas uma pequena lâmpada anexa ao altar. Fiz minha prece. Interpretei Jesus Alegria dos Homens, de J.S.Bach, na revisão de Myra Hess. Confesso que verti lágrimas.
A apresentação ao vivo é necessária e perpetua a tradição. Todavia, ela pode carregar fatores extramusicais como gestual, vestes e excentricidades. A mídia valoriza ao extremo vídeos que focalizam essencialmente a figura do intérprete, seja ele regente ou instrumentista. Ciente dessa tomada de imagem, o músico tantas vezes extrapola o gestual e o público é levado à idolatria. Na gravação sem imagem e sem público toda a superficialidade desaparece e a figura humana transfigura-se numa “feitura da ausência”. Só importa o som em sua essência essencial.
Rendo-me à gravação. Prefiro gravar a tocar em público, respeitando-o como sempre o fiz. Desde 1995 submeto-me à longa preparação, sabendo que naqueles três dias na Capela Sint-Hilarius, em Mullem, perdida na planura flamenga, a mensagem ficará fixada sem quaisquer artifícios. Já estou a programar o repertório para 2019. Retorno à infância. Meu último CD visitará obras dedicadas ao universo infantil. Carinhosamente olharei para a criança que eu fui e que, aos nove anos de idade, iniciou seus estudos. Estrada percorrida amorosamente. Dádiva.
The third and last day of the course I’m giving on my recording experiences in Europe will focus on the most important aspects to be considered during the recording process at the Sint-Hilarius chapel in Mullem, Belgium.