Quando a história sofre interpretação “atualizada”
Na estrada por que vou
Não fujo do meu norte.
Edmundo Bettencourt
No blog anterior fiz um balanço de minha relação com a obra para piano de Claude Debussy. Recebi número considerável de mensagens sobre o levantamento realizado. As décadas foram testemunhas confiáveis.
Li na imprensa estrangeira uns poucos artigos lembrando o dia do centenário da morte de Debussy, 25 de Março. Abordavam preferencialmente a vida do compositor e menos suas criações. É compreensível. A força da mídia está sempre propensa a revelar as entranhas das vidas de mediáticos que, divulgados ad nauseam, propiciam pautas diárias nas colunas de entretenimento de jornais, revistas e substancialmente, sob outra égide, nas redes sociais.
Por motivos óbvios percorri, ao longo das décadas, não apenas as composições, como igualmente a ampla literatura sobre Debussy e sua imensa atividade epistolar. Quanto às biografias, as de Léon Vallas, Edward Lockspeiser, Marcel Dietschy e, sobretudo, aquela que entendo a mais preciosa, “Claude Debussy”, de François Lesure, mencionada no blog anterior, possibilitam apreender o perfil da trajetória do compositor.
Tenho sempre certa cautela ao ler textos sobre autores em datas comemorativas. Muitas vezes, articulistas não especializados e sem o debruçamento necessário sobre tema proposto, mas impelidos pelo imediatismo, escrevem suas apreciações a partir de biografias internéticas e outras mais encontradas em enciclopédias ou nas histórias de determinadas áreas. Retiram o que lhes convém e passam ao leitor a “homenagem atualizada”. As matérias que li sobre a vida de Debussy atêm-se aos costumes, amores, superficialidades, dificuldades financeiras e um certo mundanismo. Essa hedionda “atualização” tem em conta, na mente dos articulistas, a visão de Debussy homem como se vivesse hoje, orientando-se o escriba pelos valores atuais, transplantando o período preciso vivido por Debussy para o presente. Qual a razão de transmitirem ao leitor os envolvimentos amorosos, o cotidiano bem próximo ao da maioria dos homens e tantos outros episódios da vida de Debussy sob visão não aprofundada? Importa para a empresa à qual está ligado o articulista tornar palatável e até excitante o que deve ser publicado. O mais grave é que articulistas realizam essas “atualizações” sem rubor. Opinam e o leitor que tire suas conclusões. O leigo absorve o que lê e todo o equívoco sedimenta-se. A mídia camufla a essência, doravante transfigurada, e vende a imagem que deve ser consumida. O compositor e pensador François Servenière, em mensagem recente, observa: “Os jornalistas não especializados na área musical são incapazes de fazer a crítica musicológica, restando-lhes a crítica social ou de costumes, em suma, aquela que ele vivencia”. Se atentarmos a uma outra área, o cinema, a vida de Jesus Cristo é “vivida” de acordo com as circunstâncias e os costumes do momento e o livre arbítrio de diretores. Jesus Cristo já foi retratado em situações constrangedoras, por vezes infamantes (sic). A mídia, como sempre o faz, a depender dos interesses, incensa a versão que causará impacto e a malta comparece para constatar a nova versão.
Não são poucos os articulistas que, ao penetrar na apreciação da obra de um autor, navegam em mares desconhecidos e só escrevem o óbvio, pois sem o embasamento para apreciações ao menos palatáveis, redigindo seus textos a partir de excertos espalhados pelas mais diversas fontes, hoje acessíveis na internet. Na precisa área musical consideremos no passado os artigos ou críticas sob as penas de compositores, musicólogos, professores de música com aptidão para a escrita literária. Podia-se confiar nas avaliações, pois era certo que essas tinham origem sólida, tantas vezes de profunda originalidade. Tenho reiterado inúmeras vezes em meus blogs que, em termos brasileiros, o soi disant crítico tem no máximo um verniz musical. No campo da análise, mostram-se perdidos, pois, desconhecendo as teorias do passado, fazem a leitura de obras analíticas das últimas décadas, que sequer entendem, “ex-catedra”. Aliás, a grande maioria dos músicos também não decifra as análises hodiernas. Estive em Congressos no Brasil e no Exterior e acentuam-se as análises de composições a partir da era tecnológica, com a mostragem de gráficos e mais gráficos. Comentava com um expositor em Londres sobre sua análise plena de gráficos. Verifiquei que intérpretes presentes nada entendiam. Ao final afirmei-lhe que, para mim, aquela apresentação afigurava-se-me como um exame cardiológico, sem coração. Durante concerto camerístico que se seguiu, observei que os poucos participantes que haviam exposto quantidade de gráficos não estavam presentes. Será que realmente gostam de Música? Tenho minhas dúvidas. Sobre Debussy há livros obedecendo esse caminho pleno de gráficos, com explicações anexas ininteligíveis até para músicos experientes. Aprisionam nesse grafismo o que há de fundamental na obra de Debussy, pois negligenciam a essência da busca do som, do timbre e essa qualidade das proporções sonoras que leva ao desvelamento e faz entender o estilo do compositor. O notável François Lesure tinha a maior reserva com essas muitas tendências a partir da tecnologia, assim me confessou. Acolhia-as quando especialistas as apresentavam, mercê de sua generosidade proverbial. François Servenière observa em sua mensagem que “as análises atuais, feitas pelas máquinas, entendo-as como enfadonhas. Stravinsky tinha razão ao falar do díptico compositor / intérprete como únicas entidades. Mas, temos de considerar o tríptico representado pelo público”.
Perguntaria, qual a razão explícita de não se ter em conta o corpus composicional único de Debussy, propiciador de uma nova perspectiva sonora baseada na dinâmica, na agógica e na acentuação? De maneira palatável ela pode ser transmitida ao leitor. Essa é a razão precípua da perpetuação de um autor de mérito.
A revolução, empreendida naturalmente por Debussy, essencialmente está ligada a uma outra consciência sonora. Não seria na forma, majoritariamente utilizada através de moldes vigentes, que iríamos encontrar essa revolução, tampouco na harmonia. A música de Debussy nos envolve através de uma inefável qualidade escritural a serviço do resultado sonoro, que é possível apreender desde suas criações do final do século XIX. Seu estilo é único, inconfundível, tantas vezes apreendendo sons, timbres, escalas e moods de outros povos. Suas melodias (canto e piano) contêm o mais apurado requinte, a ópera Pélléas et Mélisande, marco divisório que possibilitaria aos pósteros, doravante, novas abordagens. A totalidade da obra para piano, sem apresentar determinados arrojos virtuosísticos encontrados em Maurice Ravel, seu contemporâneo, abre um campo ilimitado nessa busca dos timbres e das sonoridades inusitadas. Diria que, para o pianista, processos técnico-pianísticos, como legato, controle das intensidades, notas que merecem toques especiais, pedalização acuradíssima em tantas gradações, seriam alguns dos atributos necessários.
Apenas mais uma observação. Porventura a página inicial do Google, que rende tributo nas efemérides a figuras bem menores, por vezes diminutas, lembrou-se de Claude Debussy no dia 25 de Março? Ou ainda, como olvidos habituais, de tantas figuras basilares da história da humanidade? Não haveria alguém que pudesse lembrar à imensa empresa datas realmente importantes? Esquecer figuras proeminentes é o resultado de uma sensível queda da cultura erudita dos mentores de organizações que deveriam buscar educar essencialmente através de exemplos do passado. Nada a fazer, pois mentalidades estão enraizadas.
In this post I reflect on some articles I read on Debussy in foreign publications in the week we celebrated his death centennial, noticing that such articles contain a series of commonplaces — things easily found on the internet — viewed from a present-day perspective. I believe music journalists without music knowledge are incapable of musical criticism, confining their articles to accounts of social conduct and trivia.