Um dos maiores músicos de seu tempo

É possível que eu chame sobre mim a indignação
de muitos dos que acaso lerem estas palavras
se disser que Viana da Mota,
desaparecido ainda não há muito do número dos vivos,
era um artista grande demais para o nosso pequeno meio.
Nós nunca reconhecemos perfeitamente
o que havia de excepcional no músico que ele foi,
e pode dizer-se que, afora meia dúzia de espíritos desempoeirados que,
logo desde o início da carreira do ilustre virtuoso,
tiveram a intuição do seu valor,
nunca a generalidade dos seus concidadãos,
incluindo neles o chamado escol intelectual,
o considerou propriamente um dos
seus.
Fernando Lopes-Graça
(“Viana da Mota” – 1949)

Portugal celebra o sesquicentenário de nascimento do pianista, regente, compositor, pedagogo e musicógrafo José Vianna da Motta, notável e abrangente músico português. Em seu país estão a se prestar dignas homenagens ao seu legado importante para a cultura lusíada e mundial. Certamente é um dos maiores nomes da música de seu tempo em termos mundiais. Houvesse nascido em país com maior visibilidade, outra seria sua projeção post mortem. O mesmo não se daria com Fernando Lopes-Graça, um dos grandes compositores do século XX e pouco interpretado no Exterior? Haveria de existir uma mentalidade Cultural, com C bem maiúsculo, por parte dos governantes e promotores para que tal acontecesse.

Neste espaço fixarei dois aspectos fundamentais relativos à carreira de Vianna da Motta como pianista extraordinário,  mantenedor de um repertório vastíssimo, e as suas nove turnês pelo Brasil, que se estenderam de 1896 a 1926.

Após estudos preliminares no Conservatório de Lisboa e graças a um talento extraordinário, aos 14 anos ei-lo em Berlim, agraciado pelo rei D. Fernando II e sua consorte, a Condessa de Edla. É na Alemanha que Vianna da Motta terá o pleno desenvolvimento. Aos 19 anos estuda com Franz Liszt (1811-1886), que confia em sua ascensão. Dois anos após, com Hans von Bülow (1830-1894). Com afinco estuda composição. Terá pela Alemanha admiração e fidelidade durante toda a existência.

Compositor de reais méritos, Vianna da Motta frequentou vários gêneros, principalmente o piano solo, canto e piano, camerístico com piano, quarteto de cordas, assim como relevantes criações para orquestra, onde desponta a Sinfonia “À Pátria”. Compôs um Concerto para piano e orquestra e uma “Fantasia Dramática” para a mesma destinação.

Musicógrafo, Vianna da Motta legou obras relevantes, entre elas “Música e músicos alemães: Recordações, ensaios, críticas” (Coimbra, Instituto Alemão, 1941) e “A Vida de Liszt” (Porto, Edições Lopes da Silva, 1945). Nesta, sente-se toda a admiração do aluno pelo grande mestre, assim como a teria, sob outra égide, por Hans von Bullow, tendo inclusive colaborado com o livro “The Piano Master Classes of Hans von Bülow” (tradução em inglês – 1993 – do original em alemão – 1896). Inúmeros artigos enriquecem sua bibliografia, mormente sobre as criações de Liszt e Wagner e igualmente a respeito da técnica e interpretação pianística. Exerceu a crítica musical e sua vasta atividade epistolar continua a ser objeto de estudo e investigação por parte de musicólogos.

Pedagogo de grande mérito, formou gerações de pianistas, entre eles Sequeira Costa (1929- ), Helena de Sá e Costa (1913-2006), Nella Maissa (1914-2014) e Fernando Lopes-Graça (1906-1994). Em plena Primeira Grande Guerra fixa residência na Suíça (1915-1917), onde conduziu curso de virtuosidade no Conservatório de Genebra. De 1919 até 1938 dirigirá o Conservatório Nacional de Lisboa, onde morou nesse período.

Creio firmemente que, no universo luso-brasileiro, não tivemos um vulto pianístico à altura de Vianna da Motta. Sim, pianistas excelsos do passado no Brasil são merecidamente cultuados, contudo a abrangência do pianista e músico completo português ultrapassa qualquer avaliação comparativa. Foi, sem a menor dúvida, um dos grandes pianistas de seu tempo.

Como pianista, apresentar-se-ia com o mais retumbante sucesso prioritariamente em Portugal e Alemanha, mas também realizou extensas tournées pela América do Sul, assim como recitais e concertos na França, Inglaterra, Espanha, Itália, Dinamarca, Rússia e Estados Unidos. Privou da amizade dos maiores músicos do período, entre os quais grandes pianistas, compositores e regentes.

Através dos anos, neste espaço tenho salientado a repetição ad nauseam de repertórios, paradoxalmente qualitativos, que infelizmente não têm sofrido oxigenação. A repetição faz-se presente em nosso país e perpetuada por músicos pátrios e famosos intérpretes internacionais ou brasileiros residentes no Exterior. Programas que, passados pouquíssimos anos ou nem tanto, são repetidos sem rubor. A observação é válida se pensarmos nos intérpretes de antanho, entre eles o grande Vianna da Motta. Impressiona a sua maiúscula frequência a um repertório imenso. Seguindo-se sua trajetória desde a adolescência aos últimos anos da existência, verifica-se um acréscimo constante tanto no que tange o piano solo, como o piano camerístico e com orquestra. O musicólogo e crítico musical João de Freitas Branco, que estudou com Vianna da Motta, em sua obra referencial, “Viana da Mota” (1972), escreve, sempre com ênfase, que o pianista interpretava todas as obras de cor, inclusive a célebre “Sonata Kreutzer” de Beethoven (1770-1827) para violino e piano (tendo ao violino o grande Eugène Isaÿe – 1858-1931). Do compositor alemão foi intérprete de basicamente toda a obra: as 32 Sonatas, a integral da música de câmara com piano, os concertos para piano e orquestra. Nesta conformação, Vianna da Motta teve enorme repertório, como se lê em seus programas. Em seu imenso repertório encontram-se as principais grandes criações do período romântico, assim como criações de tantos outros, do barroco à contemporaneidade, das peças das “Ordres” de François Couperin (1668-1733) à “Islamey” de Mily Balakirev (1837-1910). De J.S.Bach vemo-lo executando parte significativa de sua criação para teclado, incluindo o “Cravo Bem Temperado”, Suítes e transcrições realizadas por seu amigo, o insigne Ferrucio Busoni (1866-1924), com quem solou a dois pianos em certa oportunidade. Admirador de Joaquim Bomtempo (1755-1842), corroborou sua divulgação, que teve continuação através da discípula, a ilustre pianista ítalo-portuguesa Nella Maissa.

O grande compositor Fernando Lopes Graça em seu substancioso livro “Viana da Mota” (1949), considera alguns atributos do pianista: “Um dos mais notáveis traços deste conjunto de faculdades virtuosísticas possuídas por Viana da Mota é a sua grande inteligência musical. As suas interpretações são sempre um modelo de clareza e de probidade artística. O seu respeito pelo pensamento dos Mestres leva-o a consultar edições, cotejando-as, criticando-as, depurando-as, até chegar ao apuramento do texto mais consentâneo não só ao estilo mas também às intenções do autor”. Continua: “Na arte de frasear, então, creio o nosso pianista dificilmente ultrapassável. Tenho ouvido os melhores virtuosos contemporâneos: insuperáveis nalguns aspectos da sua arte, nenhum deles, contudo, me parece atingir a perfeição de Viana da Mota neste capítulo importantíssimo da interpretação musical, que é o fraseado”. Após considerações sobre as muitas virtudes de Vianna da Motta, conclui: “Que mais será preciso, pois, para que se reconheça no nosso grande artista, além de tudo o que já está geralmente reconhecido, mais o seguinte, que o deve ainda elevar mais na nossa admiração e no nosso reconhecimento: que ele é, porventura, o pianista mais equilibrado de toda a brilhante plêiade dos grandes pianistas contemporâneos, como comecei a afirmar?”

Intérprete notável da obra para piano solo de Franz Liszt, inclusive os Concertos e a “Totentanz” para piano e orquestra, foi igualmente o revisor de obras importantes do compositor húngaro, juntamente com Ferrucio Busoni, para a editora Breitkopf & Härtel. Confiadas a Vianna da Motta as composições lisztianas: “Années de Pélerinage”, “Harmonies poétiques et réligieuses”, “Consolations”, “Sonata em si menor”, entre outras. Obras de Beethoven e Schumann também mereceram sua atenção com vias à edição, assim como exercícios voltados à técnica pianística a partir da transcendentes composições de Charles-Valentin Alkan (1813-1888).

Nas nove viagens à América do Sul, Vianna da Motta não se repete. Estava sempre a apresentar repertórios renovados. Impossível compreendermos, na atualidade voltada à repetição de programas, a turnê realizada por Vianna da Motta no Brasil e na Argentina em 1902. Em São Paulo, de 29 de Junho a 9 de Julho apresenta-se com o violinista Bernardo Moreira de Sá em seis récitas. Logo após, entre 15 de Agosto a 27 de Setembro em Buenos Aires, na série de concertos históricos, nove recitais solo diferentes com cerca de 100 composições, todas memorizadas, sendo que nos dias 29 de Setembro e 13 de Outubro apresentou-se interpretando concertos para piano e orquestra!!! Durante esse período na região platina toca também em outras cidades argentinas e em Montevidéu. Em alguns de seus recitais interpretava criações suas. Mencionem-se também os concertos realizados no Brasil, Argentina e Uruguai, de 22 de Abril a 22 de Outubro de 1922. Foram cerca de 50 apresentações, principalmente como pianista e camerista, mas algumas vezes como regente. No Rio de Janeiro, São Paulo e Buenos Aires foram cerca de 10 apresentações em cada cidade. Em São Paulo rege sua Sinfonia “À Pátria”. Várias outras cidades do sul do Brasil e outras do Uruguai e Argentina foram visitadas. Essa extraordinária atividade vem sempre seguida pelas mais receptivas críticas.

Considerando-se a imensa distância entre a Europa e América do Sul naquele início de século, quando as viagens eram feitas por navios ou por carruagens a percorrer o continente, é incrível que nas nove viagens ao Brasil, de 1896 a 1926, Vianna da Motta tenha tocado em tantas cidades brasileiras, do norte ao sul do país: Belém (in memoriam de Carlos Gomes), Recife, Maceió, Juiz de Fora, Rio de Janeiro, São Paulo, Campinas, Santos, Porto Alegre, Pelotas!!! Um de seus biógrafos, João de Feitas Branco já se debruçara em Colóquio realizado em Lisboa sobre as visitas de Vianna da Motta no Brasil (1960).

No Brasil privou da amizade de alguns músicos referenciais, entre os quais Henrique Oswald (1852-1931), Alberto Nepomuceno (1864-1920), Arthur Napoleão (1843-1925), Luigi Chiaffarelli (1856-1923), entre tantos. Na revista “Glosas” (publicação do Movimento Patrimonial da Música Portuguesa, número 9, Setembro, 2013), na minha permanente rubrica, escrevi artigo a salientar o relacionamento entre o notável músico português e Henrique Oswald: “Vianna da Motta e Henrique Oswald”. A Sinfonia “À Pátria” foi estreada aos 21 de Maio de 1897 no Porto e teve a primeira audição no Brasil, no Rio de Janeiro, aos 29 de Agosto do mesmo ano. O compositor cedeu a batuta ao amigo e violinista Bernardo Moreira de Sá. No mesmo programa, Henrique Oswald interpretou seu próprio Concerto para piano e orquestra, composto em Florença em 1890. Certamente um evento histórico.

Infelizmente continua-se no Brasil a negligenciar vultos musicais portugueses relevantes. Quando de comemorações de músicos menos influentes, mas estrangeiros não portugueses, por vezes matérias são publicadas, algumas com grande destaque. O centenário de Lopes-Graça em 2006, assim como anteriormente o tricentenário de nascimento de Carlos Seixas (1704-1742), passaram ao largo. Interessa a Portugal divulgá-los com ênfase no Exterior e, ao Brasil, homenagear essas figuras maiúsculas musicais portuguesas? De qual complexo sofre a “intelectualidade” brasileira quando a música de concerto de Portugal está em pauta? Como tem razões Mario Vargas Llosa ao comentar a decadência irreversível da cultura erudita! Apesar de saber que prego no deserto, continuarei. É o que sei fazer.

The post of this week is about José Vianna da Motta (1868-1948), pianist, composer, conductor and teacher, one of the greatest talents of his time in Portugal. He has studied with Liszt and von Bülow and traveled extensively in Brazil and South America, presenting an astonishingly varied repertoire that included some great lesser known classical composers. He died in Lisbon in 1948, leaving an indelible mark in the Portuguese classical music history.