Considerações de Gisèle Brelet

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Um grande artista nos dizia que sua alegria de gravar era a alegria
de não mais sentir a hostilidade latente,
obscuro sadismo do público –
o qual, assistindo a um concerto
como a um espetáculo de circo,
espera secretamente ver “o domador devorado”.
Gisèle Brelet
(“L’Interprétation Crétrice” – vol.II)

Não poucas vezes mencionei meu amigo Marcelo, que encontro por vezes a frequentar a mesma feira-livre que há décadas visito com imenso prazer. Curiosamente, sempre após saudações habituais vem pergunta, para meu gáudio, sobre os blogs que lê com assiduidade. “Qual a maior diferença que você encontra entre apresentar-se em público e gravar?”. Respondi-lhe de imediato que em vários posts abordei o tema, sem contudo pormenorizar-me mais profundamente. Disse-lhe que dedicaria um blog a respeito. A pergunta foi feita após meus derradeiros blogs sobre o CD “O Romantismo de Henrique Oswald”, lançado pelo selo SESC, e os recitais que dei ligados à divulgação do registro.

A pergunta de Marcelo vem ao encontro de leitura que estou a fazer do segundo volume de “L’Interprétation Créatrice – L’Éxecution et l’Expression” (Paris, Presses Universitaires de France, 1951)  de Gisèle Brenet. Já tecera comentários em blogs dedicados ao primeiro volume (vide blogs “L’interprétation Créatrice – L’Éxecution et l’Oeuvre”, 13 e 20/04/2019).

Temos dois approaches distintos, sendo que o concernente à apresentação ao vivo pode vir acompanhada de gravação em áudio ou, também, com o acréscimo da imagem.

Primeiramente há a questão mental, que influenciará as duas posturas. O recital pressupõe um preparo psicológico indispensável para que a récita se processe sem percalço. Mesmo assim, o intérprete pode ter o público como estímulo não apenas para a performance, o que implica, muitas vezes, simultânea ação coreográfica, mormente em décadas recentes. Outros executantes têm na concentração absoluta o elo decisivo que o liga ao público atento. Todavia, há aqueles, tantos notáveis intérpretes, que entram em cena tensos, receosos do erro, mas, tão logo a comunicação com a plateia se faz, a tendência à interação se instaura. Em entrevista recente ao “Estadão” (22/01/2019), concedida a João Luiz Sampaio, a pianista portuguesa Maria João Pires comenta o motivo de, aos 75 anos, abrir mão dos concertos: “Mas o modelo do concerto, com teatros enormes, frios, para os quais o público vai apenas para assistir a um ‘grande nome’ não me atrai. As pessoas estão enganadas, pagam para ver um artista. Não deveria ser assim que funciona. Eu não toco para as pessoas, eu toco com as pessoas. Tocar e ouvir são atividades criativas, é a mesma coisa. Arte é algo que se partilha”.

No que concerne a gravação, a busca da perfeição, sempre inatingível, reveste-se de outras especificidades. Se cinco LPs que gravei no Brasil foram lançados nas décadas de 1970-1980, nas condições impostas pela tecnologia “precária” do período, apesar do empenho de técnicos no mister, somente a partir de 1995 iniciei  gravações no Exterior, num momento em que avanços consideráveis na área tornavam imbatível a qualidade da tomada de som em locais com acústica superlativa, fora de estúdios convencionais. Estou a me lembrar das gravações que realizei em 1996-1997 na Sala Bulgária, em Sófia. Toda ela revestida de madeira, desde as poltronas às paredes. Extraordinária acústica, que encontraria também no meu templo mágico, a Capela Saint-Hilarius em Mullem, na Bélgica Flamenga, Templo tão comentado e ilustrado ao longo dos anos em meus blogs. Nesta, o grande engenheiro de som Johan Kennivé coloca o piano embaixo da torre milenar de pedra, instala os microfones em lugares estratégicos, ficando a mim reservada a missão de transmitir a mensagem musical. Foram 20 anos de um convívio inefável entre o mágico dos sons e o intérprete.

Causa-me forte impressão a leitura reflexiva de Giséle Brelet a respeito da gravação e da interpretação ao vivo. Seus livros sobre interpretação datam de 1951, quando a realidade era a gravação destinada ao LP com toda a problemática, com o acréscimo do atrito da agulha sobre o acetato. Comenta: “Diante do disco o intérprete está só e luta contra a solidão; e seus gestos, doravante invisíveis, têm tendência a se atrofiar, enquanto que esses estariam vivificados se a transmissão de uma mensagem fosse visível e audível. Sem dúvida, o executante deve saber se adequar às exigências da gravação e triunfar, a fim de confiar ao disco uma execução viva, plena e sustentada pelo élan da duração musical. Se necessário for repetir e interromper, tocar por fragmentos, que ele viva cada instante como parte essencial do conjunto, não deixando jamais quebrar-se a espiritualidade, esse élan temporal – o qual pode subsistir, apesar de a interpretação ser materialmente interrompida”. Gisèle Brelet considera que cabe ao intérprete imaginar da maneira mais intensa a presença do público ao qual sua execução é destinada. Todavia, observa: “não basta acreditar que o executante toque diante do microfone como se estivesse em concerto. Se o público de concerto apresenta um caráter determinado, criando uma atmosfera particular, compartilhando com o intérprete um comércio direto e familiar, o público imaginário ao qual ele se projeta em um disco é infinitamente vasto, anônimo e, na realidade, eterno e ideal: é um público de todos os países e de todos os tempos, tendo exigências exorbitantes. Seu julgamento surpreende o executante. Enquanto num concerto ele se comunicava com o público no instante do acontecido, ao tocar diante de um microfone ele sabe que sua execução se imobiliza sobre a cera (tempos dos LPs) e ficará para sempre aquilo que foi gravado”. Continuando suas reflexões, Brelet escreve: “A execução gravada torna-se semelhante a toda obra de arte, diga-se, inscreve-se no eterno, distancia-se de seu artista, despe-se da sedução que exerce o toque atual, visível e vivo do virtuose para se apresentar tal qual em sua nudez”.

A autora se pormenoriza sobre a atitude do intérprete frente à gravação em concerto, a considerar que a estética da execução gravada não é a mesma daquela que entendemos em concerto. Brelet afirma: “Não somente as condições do concerto não são favoráveis à gravação – é fácil perceber -, mas a mesma interpretação, que parece viva e perfeita no dia do concerto, parecerá imperfeita e desprovida de rigor uma vez escutada através do disco – e essas imperfeições se acentuarão na medida de escutas outras. A verve fantasista e a espontaneidade – independentemente do querer – podem levar a uma certa desatenção, alguma imperfeição técnica que, se sob um aspecto dão vida a essa execução em concerto, desaparecem na gravação ao vivo, pois o encanto que seduz à primeira escuta, na repetição pode oferecer apenas a caricatura.

São inúmeras outras reflexões sobre o ato de gravar na solidão e a do se apresentar em público, com ou sem gravação denominada ao vivo. Mencionaria uma consideração admirável e profundamente detectada na interpretação de grandes mestres do teclado. Escreve a autora: “A execução depositada num disco (hoje CD e aplicativos vários) é mais abstrata. Deve ser ideal e se elevar em direção à essência. Precisamente a gravação tem esse maravilhoso poder de reduzi-la à sua essência essencial”. Escreve-nos sobre a importância do tempo rubato naturalmente sentido pelo intérprete alerte e inspirado, mas a servir de armadilha igualmente: “É privada de vida a execução gravada por intérpretes que se abandonam ao rubato, aos acasos de uma fantasia arbitrária, enquanto que é supremamente viva a execução daqueles que se fundamentam em um sábio rubato, esposando a estrutura da obra, buscando a essência temporal da música e da execução musical”.

As gravações que realizei no Exterior, mormente na Bélgica, de 1995 ao presente, levam-me a considerar a expressão arguta de Gisèle Brelet sobre o ato de gravar. Fala-nos da solidão. Ela existe, mas é benéfica e inspiradora. Revela-nos a impecabilidade, que deve ser soberana. Acrescentaria nos tempos atuais que local, instrumento e qualidade insofismável do engenheiro de som são imprescindíveis para que os melhores resultados sejam alcançados. A menção que Brelet faz da gravação ao vivo é pertinente. Se pequenas falhas técnicas surgirem durante a execução, que seja uma sequer – acontecem nas melhores famílias, confessava-me o grande pianista e saudoso amigo Jacques Klein -, a audição reiterada de uma gravação precisará sempre os compassos na partitura em que deslizes ocorreram. Contudo, um fato é também real, a considerar que a interpretação gravada ao vivo tem inclusive a aura a sinalizar a interação hic et nunc, tornando possíveis equívocos irrelevantes para um público mais esclarecido.

Ainda no correr dos meses abordarei outros temas concernentes à interpretação tratados por Gisèle Brelet.

This post addresses the 2nd volume of the book “L’Intérpretation Créatice”, written by the French musicologist and pianist Gisèle Brelet (1915-1973). The author elaborates further on the interpreter’s differences in attitude when recording and when performing before a live audience. Also included are my own comments on the subject based on my experience in both activities.