Navegando Posts publicados em agosto, 2019

Mensagem a evidenciar outras captações da realidade atual

O futuro deve ser de tal maneira
que nenhuma criança ao nascer
se sinta torpedeada pela vida
de maneira que julga que tem de desistir de ser
para existir apenas como aquilo que a vida obriga a ser.
Agostinho da Silva

Apesar de tema relevante, mas tratado de maneira sucinta, a decadência cultural mostra-se evidente e sem tréguas, acoplando-se a ela outras quedas abissais relativas aos costumes como um todo, à moralidade, ao desrespeito à vida. Diariamente seres do mal eliminam, sem qualquer arrependimento, cidadãos comuns e ordeiros, atos que implicam a ruptura abrupta de inúmeros relacionamentos afetivos de toda espécie. Habituamo-nos à descida vertical, que se mostra desgraçadamente rotineira.

Muitas foram as mensagens recebidas, todas meritórias, a focalizar preferencialmente o Brasil e suas mazelas, que se acentuaram neste século. Se o professor titular da USP, Gildo Magalhães, observa que “esta é uma triste realidade, a barbárie avança rapidamente – et pourtant… temos de resistir; se não, morremos em vida!”, e o arquiteto Marcos Leite comenta estar “infeliz por ter de concordar com a análise que escancara a mediocridade vigente, apesar de ainda ter flashes de esperança de que venham, de alguns guetos de cultura e bom gosto a que fomos confinados, expressões artísticas relevantes, demonstrações de que o homem raciocina em detrimento da grosseria da matéria”, recebo do compositor François Servenière reflexões que, pela dimensão e densidade, poderão interessar ao leitor.

“Corroboro a posição de Mario Vargas Llosa em seu livro ‘La civilizatión del espectáculo’, que na realidade retoma as constatações taciturnas de Guy Deborden no seu famoso livro ‘La Société du Spetacle’ (1979). Livro triste e logorreico de um velho filósofo cansado pela modernidade galopante e voltada à pequenez.”

A seguir, Servenière discorre, a expandir sobre as calças rasgadas, essa “ofensa aos pobres”, segundo o musicólogo português Pedrosa Cardoso. “Entendo edificante a reflexão do mestre português sobre a indecência moral relacionada à pobreza, pois o jeans rasgado está na moda pelo mundo, em tempos em que a pobreza revela grande dificuldade para se vestir decente e corretamente para ser respeitada, para ter sua inserção social, para emancipar-se de sua condição inicial que não representa a felicidade sonhada. O professor está pleno de razões ao afirmar ‘tratar-se de um insulto à pobreza’, vestir-se de trapos, quando esses que assim agem têm condições de comprar roupas elegantes e até em coleções afamadas. Quando meus filhos habitaram Neuilly, ficava eu espantado ao ver jovens da mais alta sociedade francesa vestirem-se tão mal e relaxadamente, a fim de manifestar originalidade e orgulho. Via essa atitude como uma vergonha da riqueza, pois do ‘bem mal adquirido nunca se aproveita’, reza o ditado”. Infelizmente esse adágio não se aplica à realidade brasileira, onde o enriquecimento ilícito é endêmico, mercê da corrupção, do descaso e de uma justiça extremamente lerda.

Prossegue Servenière: “Ao meu ver, é insuportável a atitude desses jovens  mal vestidos, cabelos totalmente desalinhados, tatuados, assim se apresentando para demonstrar o desgosto pelo seu meio original, seja qual for o berço. Acredito ser um desrespeito para com os outros… Salvo casos excepcionais, quando remontamos às nossas genealogias, todos somos descendentes de meios sociais pobres. Sim, encontramos algum ilustre, rico ou notável personagem nesse contexto. Todavia ocultamos, bem acentuada e voluntariamente, a maioria indigente e anônima, que trabalhou arduamente a terra com suas unhas para se alimentar de raízes e tubérculos… Legiões têm vergonha desses antepassados pobres que estão inscritos em nosso DNA. Portanto, nosso caráter atual é oriundo desses ancestrais corajosos e tantas vezes indigentes. Será necessário muito tempo para as novas gerações reconhecerem o trabalho honroso de seus ancestrais e a própria situação social… quiçá uma vida inteira, para esses descendentes admitirem interiormente que não fazem parte de uma geração espontânea, mercê da riqueza adquirida! Assimilar essa ideia significa adquirir sabedoria, apreendendo o exemplo legado, que mereceria ser a bússola doravante para esses herdeiros. Só assim a transmissão poderá ser realizada. Não obstante, a juventude aceita muito mal essa dependência moral, estrutural, educativa! Ela acredita ser autônoma, fruto do talento e da inteligência espontânea…

A sociedade contemporânea é um maelström que parece arrasar, a partir de suas tecnologias, o passado e a velha cultura nacional dos povos. Os miliardários das novas tecnologias se glorificam, através da pujança financeira, por ser, graças aos canais de comunicação que inventaram, o alpha e o ômega de nossa época. Contudo, não tivessem eles conhecido a cultura milenar, não seriam apenas canais? Bastará um blackout para que eles percam totalmente sua função precípua. A cultura milenar desapareceria? Evidentemente não. Ela estaria nas bibliotecas, e poder-se-ia ler um livro à luz do sol ou à terna chama de uma vela, tocar música utilizando instrumento não elétrico… Seria a razão necessária e suficiente para que se lute contra a modernidade eletrônica galopante através do papel, das bibliotecas. O papel permite a salvaguarda da cultura. A desmaterialização de dados, graças à tecnologia, põe em risco nossa sociedade, nela incluindo a cultura e seus traços. Nessa tendência aparentemente irreprimível, não poderiam porventura ser desmaterializados monumentos históricos e paisagens? Bastaria um tsunami econômico brutal, o que não está distante no horizonte, graças às tensões mundiais, para que essa sociedade virtual desaparecesse em um sopro! Tendências econômicas atuais mostram essa atitude suicida contemporânea a flertar à beira do abismo.

Não vale a pena gritar a plenos pulmões para denunciar uma sociedade que vai de encontro ao muro. Ela deverá, independentemente das vontades individuais e coletivas, gerar seus próprios mecanismos reguladores, aos quais cada geração terá necessidade se adaptar. Seria  melhor, ou menos radiante, do que a antiga época nostálgica de nossa juventude, que não era tão brilhante quando a observamos de perto? Naqueles tempos era necessário mais de um mês para que o destino de uma carta se concretizasse até o fim do mundo… Quando ela chegava… É necessário se adaptar, como aliás o fez cada geração, para sobreviver às contingências de sua época.” Estou a me lembrar que nos anos de estudos em Paris, entre as décadas de 1950-1960, quantas não foram as cartas que não chegaram ou as que recebia após duas ou mais semanas de espera, considerando-se a travessia atlântica?

Servenière continua: “Quais serão as contingências de determinado período? Dramáticas, caóticas, maravilhosas, tranquilas? Apesar da tomada individual de uma posição determinada, a inventividade do maelströn que nos atinge de frente será como torrente tumultuosa que busca caminho em sua descida pelas montanhas em direção ao futuro. Ela encontrará obrigatoriamente seu traçado em direção à planície, acalmando-se pouco a pouco em lânguidos meandros. E sucessivamente através de gerações… A natureza nos oferece numerosas metáforas, a fim de positivar nossa relação filosófica a visar o futuro, mormente quando este se nos é apresentado somente de maneira angustiante, triste, destruidora… Uma certeza, a humanidade sobreviverá inventando outras soluções, normas e formas. Estas serão, por sua vez, excessivas e perigosas, multiformes, modeladas. Nossa época não é um monstro imóvel, uma finalidade. Ela opera permanentemente e assim foi no passado, no presente e assim será no futuro. É um rio. A humanidade também o é. Nossa época construirá e destruirá, conservará e criará o novo.

Joseph Schumpeter (1883-1950) teria razão ao insistir no eterno conceito da ‘destruição criativa’, por ser ela o motor do mundo, desde as origens. Cassandra não tem sempre razão, mesmo que seu propósito seja necessário para reagir à ignomínia, que não deixa de aparecer constantemente. Os Quatro Cavaleiros do Apocalipse, desgraçadamente, estão sempre montados, não importa o que façamos, o que pensamos, o que dizemos!

A incerteza atual, que provém da angústia coletiva gerada por um mundo ‘rico’, mas que apresenta a humanidade temerosa pelo futuro, sem saber os caminhos a serem seguidos para desvencilhar-se desta época narcisista, inculta, pobre moralmente, levada tantas vezes à tentação do suicídio, mercê também da certeza da existência das armas de destruição maciça. Frisemos, porém, que mesmo à beira do precipício, aliás, como já esteve tantas vezes, a humanidade conseguirá sobreviver aos seus demônios.

Podemos objetivamente ser devastados pela enxurrada do noticiário das mídias atuais. Porém, deveríamos transmitir às gerações futuras a esperança, da mesma maneira que o fizeram gerações passadas em condições por vezes muitíssimo mais difíceis do que a nossa”. (tradução: JEM).

Finalizava o blog da semana quando, ao buscar noticiário do dia nos provedores, deparo-me com quantidade de “noticiário” que, rigorosamente, beira à destruição plena da moralidade. Impossível esse lixo não contagiar as novas gerações. Ao menos nos lixões espalhados pela cidade o manuseio é feito com luvas bem grossas!

Resuming the subject of last week’s post on the decline of Culture, I publish a message received from the French composer François Servenière with far reaching and fresh approach to this issue: the unabated march of technology versus the importance of printed words in preserving History for posterity; the “creative destruction” theory, demolishing long standing practices and creating new ones; modern society in pursuit of adjustment mechanisms between the old and the new .

 

 


Sem a menor possibilidade de melhora

Hoy ya nadie es inculto o, mejor dicho, todos somos cultos.
Ahora todos somos cultos de alguna manera,
aunque no hayamos leído nunca un libro,
ni visitado una exposición de pintura, escuchado un concierto,
ni adquirido algunas nociones básicas de los conocimientos humanísticos,
científicos y tecnológicos del mundo em que vivimos.
Mario Vargas Llosa
(“La Civilización del espectáculo” 2012)

O acúmulo das décadas tende a acurar a observação, realidade multidirecionada a depender do conteúdo de impactos diários que interferem na apreciação. Nas áreas em que o humano atua, transformações naturais, no decorrer dos decênios, servem de balizamento no todo. Poder-se-ia dizer que a observação, essa qualidade benfazeja, acentuada com o passar dos anos, preferencialmente conduz a um saudosismo. É natural, sempre foi assim. Quantas e quantas vezes a frase “No meu tempo…” é dita para atribuir vantagens ao passado que não mais volta? Sim, temos de nos adequar. Tenho como exemplo meu saudoso pai, que, ao completar 100 anos, comprou um computador, escrevendo na nova engenhoca seu sétimo livro, que deveria ser lançado uma semana após uma queda que sofreria e que o levaria ao óbito meses após. Sua observação era diariamente atualizada. Creio que exceção absoluta.

Não compro jornais e revistas há mais de 20 anos, acompanhando online o noticiário de nosso país, assim como o internacional. Cada cidadão sabe onde encontrar o que lhe interessa. Essa prática possibilita uma “atualização” constante, e o fato de ler artigos de múltiplas tendências corrobora a formação opinativa.

Lê-se sempre mais acentuadamente, nos principais provedores de internet, o pretenso debate ideológico. Majoritariamente enfadonho, pois dirigido e supertendencioso, a depender da orientação dirigente. Não se debate, opina-se de acordo com enraizadas ideologias. Rarissimamente há textos isentos. Triste realidade a acometer jornalistas que não conseguem ser imparciais. Sem falar em periodistas camaleões, louvadores de determinada tendência e que partem para outra posição bem oposta sem o menor rubor. Nesta instalados, insistem à exaustão, a denegrir determinado personagem da política ou do judiciário, antes louvado.

Ao escrever que a cultura erudita estava num declínio sem volta, Mario Vargas Lhosa, em “La Civilización del Espectáculo”, apenas conceitua triste realidade que está a se acentuar de maneira vertiginosa. Estou a me lembrar do competente acadêmico Nilo Scalzo (1929-2007), editor-chefe do Suplemento Literário e do Suplemento Cultural – Suplemento Cultura de “O Estado de São Paulo”. Colaborei de 1980 a 1990 com artigos agendados bem previamente. Nilo Scalzo reunia sua equipe para pautar matérias que deveriam ser publicadas no ano seguinte, geralmente a contemplar efemérides significativas nas várias áreas, a abranger literatura, artes, música, ciência… Quando entendia fato relevante indispensável, ponderava eu na reunião que precisaria de três páginas, a fim de ter espaço necessário à temática. Nilo Scalzo aquiescia e foram vários meus artigos nessa dimensão em Suplemento que era semanal e robusto. Minhas colaborações foram publicadas no livro “Encontros sob Música”, (Belém, Cejup, 1990), tendo eu a honra de ter sido prefaciado pelo saudoso Nilo Scalzo.

A menção a esse período poderia parecer ao leitor nostálgica de minha parte. Como não entender como hecatombe o que se lê nos principais provedores de internet? No noticiário fundamental, a apontar importância de determinado acontecimento, geralmente político-judiciário, com espaço nem sempre à altura do fato em si, anexam besteirol ilimitado dos chamados “famosos”, personagens que pululam em profusão, geralmente incensados pela insensatez de seus atos insignificantes, mas que os provedores sabem ser destino certo de milhões de seguidores enfeitiçados pelos “iluminados” por possantes holofotes. Despreza-se a Cultura com C maiúsculo, sim, em detrimento de superficialidades idiotizadas que acabam por destruir moral, costumes, família… Em nome da liberdade da comunicação, o que se vê é uma ilimitada visão a tornar o caricato, verdade; palavras de baixíssimo calão, naturalidade aplaudida; a distração da realidade, o divertimento duvidoso; a profusão de “possibilidades sexuais”, a divulgação do equívoco essencial, pois antinatural; a vestimenta destroçada, moda. Estou a me lembrar de comentário de meu ilustre amigo, o musicólogo português José Maria Pedrosa Cardoso. Em Oeiras, Portugal, ao ver passar por nós uma mulher com jeans rasgado, moda presente e altamente aceita, comentou: “Trata-se de uma ofensa aos pobres”. Completou “um necessitado prefere receber uma calça bem velha, mas rasgada é um escárnio”. Sinal dos tempos. Creio que doravante ainda assistiremos degringoladas mais acentuadas. O tempo infalível.

This post addresses the poor quality of mainstream media reports, which favor sensational journalism — especially accounts of the private life of public figures — over substantive stuff. If gossip, scandal and banalities are what people want, that’s what the media gives them, it’s part of the business. My pessimism about today’s society has only gotten worse with time and I believe the decadence of Culture with a capital C has reached a point of no return.

Retorno ainda uma vez a esse tema inesgotável

Na bela técnica realiza-se o desdobramento temporal
que é imanente à atividade do gesto;
ela é dinâmica e não mecânica;
pois uma bela passagem e até um exercício tocado com graça
não são restritos à igualdade mecânica
que acreditamos ser por vezes o ideal da técnica:
a leveza espontânea que eles exigem do intérprete
vale na exata medida em que estabelecem rubatos sutis
que atestam a secreta presença de uma alma,
organizando seu tempo íntimo.
Gisèle Brelet

Opiniões divergentes podem suscitar um aprofundamento maior de debate salutar. O blog anterior exibiu parte essencial da posição do compositor francês François Servenière sobre a atual escola pianística da China, que, de maneira contundente, tem apresentado valores que se apresentam no Ocidente em escala progressiva, exibindo preferencialmente virtuosidade extraordinária, nem sempre acompanhada da devida atenção ao estilo de compositores do passado. Respeito profundamente as opiniões de Servenière, dotado de mente privilegiada, apesar de nossas considerações não serem as mesmas sobre o tema. O fato de tê-las colocado em pauta trouxe a participação de leitores para o nosso debate.

Do ilustre compositor Ricardo Tacuchian recebi mensagem a apontar posicionamento extremamente equilibrado, vendo resultados positivos nas duas vertentes, mas deixando uma dúvida no final da mensagem:

“Estou acompanhando com muito interesse o debate entre você e François Servenière sobre questões de técnica e expressividade. Até que ponto uma postura se opõe ou se soma à outra? É uma pergunta difícil de responder, como em todos os outros campos da estética. Sua posição de respeito às intenções e características dos artistas do passado são insofismáveis. Entretanto, a atualização da forma de interpretação para os tempos de velocidade de nossos dias, defendida por François Servenière, também é válida. Afinal de contas, existem três importantes fontes criativas numa obra de arte: o compositor (autor de uma proposta), o intérprete (expositor desta proposta segundo seus próprios pontos de vista) e o ouvinte (decodificador final de toda esta cadeia, na intimidade de seus centros cerebrais). E o ouvinte de hoje não estaria mais ávido de receber uma mensagem beethoviniana através dos intérpretes chineses? Me parece que a grande dificuldade é encontrar um ponto em comum entre estas duas posições, se é que isso é possível. Aliás, a citação introdutória do pianista e professor Jacques Février que você faz em seu texto anterior, sobre as mil possibilidades de interpretação de Debussy (menos uma!) de certa maneira reafirma a necessidade de se achar ‘um ponto em comum’: o respeito ao conteúdo espiritual de determinada obra. E eu pergunto: isto tem a ver com a velocidade? São perguntas para as quais não tenho respostas, mas que cada vez mais me aproximam de minhas procuradas respostas, quando leio seus autorizados textos. Mas, tenho a impressão que nunca terei uma resposta definitiva”.

O professor titular da História da Ciência da FFLCH-USP toma um partido, a considerar a abalizada posição de François Servenière como fruto de sua experiência escritural:

“Eu me alinho com sua análise. Parece-me, e arrisco dizer, que Servenière escreveu pensando na música do tipo que é composta por ele, tão somente, e você, ao contrário, fez uma generalização muito cabível”.

Da parte do arquiteto Marcos Leite recebi o e-mail:

Quanto ao seu sempre agradabilíssimo texto, este traz a invariável pertinência da percepção que estudiosos como você e seu amigo François nos mostram e fazem entender o que escutamos, mas não temos a capacidade de, como simples amadores, traduzir o que fica limitado ao sentimento produzido pela audição. Penso. Traço paralelos a algumas situações que me são mais próximas, como, por exemplo, alguns intérpretes de jazz ou cantores da bossa nova. Volto aos clássicos e eruditos. Remexo no YouTube. Obrigado, meu amigo, por fomentar essa curiosidade cultural em tempos de valorização de ideias tão rasas”.

François Servenière nos fala dessa tendência da escola pianística chinesa, que teria vindo para ficar. Seria possível entender que, na escala vertiginosa dos avanços tecnológicos, haverá muitos recordes a serem estabelecidos. Quando insisto nessa aproximação esportes e virtuosidade instrumental é pelo fato de que a cada Olimpíada recordes também são alcançados e, frise-se, as ambições chinesas são claras, pois estão produzindo atletas para esse mister vitorioso. Contudo, no caso da Música, não estaríamos a estabelecer parâmetros que transformarão por completo os prestos e prestissimos das composições do passado? Pianistas detentores de técnicas descomunais, exemplificados por György Cziffra e Vladimir Horowitz, foram umas poucas exceções que, apesar dessas qualidades, não interferiram na interpretação de outros tantos pianistas consagrados. O que se acentua neste século é a presença de uma escola chinesa que se “globaliza” e que poderá provocar uma ruptura na própria interpretação tradicional, estruturada através das intenções dos compositores do passado. A metodologia pianística chinesa teria de agregar, a essa excepcional evolução técnico-virtuosística, a visão paralela da expressão, que só será integralizada através de um profundo estudo da cultura ocidental.

Apesar dos dois volumes referenciais de Gisèle Brelet, “L’Interprétation Créatrice”, terem sido escritos em 1951, distante mais de meio século dessa guinada da técnica pianística chinesa a impactar o Ocidente, consideremos uma sua reflexão, que atenderia aos dois posicionamentos em causa nestes dois últimos blogs a contemplar “Expressão e Técnica”. Escreve a autora: “A virtuosidade corresponde ao natural, ao ritmo natural do movimento – o tempo musical do gesto, essência secreta da música… A virtuosidade isola a essência ativa do gesto e da alma, sua forma simples, fora dos conteúdos que a mascaravam; ela é o triunfo da técnica viva, alimentando-se apenas dela e só a sustentá-la a atividade pura do intérprete e a duração viva a jorrar. Sob outra égide, essa atividade se reduz se for presa do automatismo, pois a virtuosidade se aniquilaria se a alma do intérprete, oprimida pelo peso das paixões, não pudesse mais, nesse enclausuramento, implantar prazerosamente sua fantasia criativa. Dessa maneira transparece a austeridade de uma sabedoria, mas sob a frivolidade aparente da virtuosidade. Se esta exige da alma daquele que a criou e daquele que ouve uma ascese direcionada ao seu ato fundamental, se ela a liberta de seus acidentes para fortificar sua essência, reconciliando-a com ela mesma, não seria a virtuosidade, no sentido mais nobre, virtus, virtude escondida?” (tradução JEM).

Ficaria neste espaço meus agradecimentos a François Servenière, que teceu reflexões sobre a “onda” pianística chinesa que chega ao Ocidente, possivelmente a oxigenar certos conceitos, aos inúmeros leitores tomando partido, ou da posição do ilustre mestre francês ou de meu posicionamento, assim como ao compositor Ricardo Tacuchian, que, após abalizadas considerações, deixa uma dúvida ao dizer: “tenho a impressão que nunca terei uma resposta definitiva”.

The last post mentioned that current trends in classical music tend to dissociate an artist’ technique and the expression of his feelings, with the French composer François Servenière and I expressing our different views on the subject. This has triggered discussions among readers, who came out in favor of one side or the other. Today I publish some of the messages received, among them the one by composer Ricardo Tacuchian, who says in his email that maybe we will never have a conclusive answer due to the difficulty in finding a common ground between the two distinctive approaches to playing an instrument.