Reflexões de Sylvain Tesson ao longo da existência
Ganha-se ao se confessar pessimista,
É uma maneira de ser profético.
Sylvain Tesson
Um dos mais emblemáticos monumentos do planeta, a Catedral de Notre-Dame de Paris, ardeu no dia 15 de Abril deste ano. Atônita, parte da humanidade assistiu à tragédia que maior seria não fosse a ação extraordinária das brigadas do Corpo de Bombeiros da capital francesa.
Adentrei muitas vezes o interior da Catedral de Notre-Dame de Paris. Desde 1958. O afluxo imenso de turistas e a dimensão que dela se faz através dos meios de comunicação tornaram-na, juntamente com a torre Eiffel e o Arco do Triunfo, os cartões postais de preferência da cidade. Supera na essência essencial os dois outros monumentos pela antiguidade e pela profunda sacralidade que dela emana.
Minhas três últimas visitas se deram nesta década. Em uma delas, 31 de Janeiro de 2013, prosseguia Paris a comemorar os 850 anos da colocação da primeira pedra de Notre-Dame. Com nosso dileto amigo Antoine Robert, Regina e eu lá estivemos. Dia histórico, pois chegavam à Notre-Dame oito novos sinos e o “Marie”, que se juntariam ao famoso e grande bourdon “Emmanuel”. A inauguração de todos esses extraordinários símbolos da cristandade dar-se-ia no dia 23 de Março do mesmo ano. Se nas duas datas precedentes a visita a Paris foi para recitais de piano, na terceira, em Maio último, expressamente estive perto da Catedral – a aproximação estava interditada – graças à curiosidade de verificar o estado atual, após o incêndio. Desolador, mas certo de que a reforma virá no prazo indicado.
Em uma das livrarias encontrei três livros de Sylvain Tesson que serão temas para blogs. Um deles, “Notre-Dame de Paris – Ô Reine de Douleur” (Paris, Équateurs, 2019), breve na leitura, bem demonstra que a publicação visava ao impacto causado pelo incêndio. Ao menos está escrito que “todos os lucros serão destinados à Fundação do Patrimônio”. Pequeno com certeza, mas um passo.
A recente publicação reúne quatro textos de Sylvain Tesson sobre Notre-Dame, dois em livros anteriores ao incêndio (2005 e 2017), testemunhos da admiração incontida do autor pela Catedral, e dois outros após a tragédia. A nota do editor é precisa: “Após o incêndio, Notre-Dame assemelha-se a uma esfinge que perdeu, mercê do escalpe, toda a pelagem”. Na noite de 15 de Abril, Sylvain Tesson esculpiu uma coroa em Notre-Dame que é sua longitude parisiense, sua ‘linha de fé’, segundo expressão da navegação marítima”.
Sylvain Tesson, ao expor o propósito do livro, afirma que o “terceiro texto foi redigido na noite do incêndio. É uma declaração de amor à Blanche Dame. E é a confissão de minha conversão”.
Dos tempos em que Tesson subia em catedrais e outros monumentos históricos, permanecendo horas ou dias em seus tetos, vem sua metáfora, a considerar que “uma catedral é um instrumento de música, mas também uma arma de jato, um arco que lança sua flecha em direção ao céu”. Deslumbrava-se naquelas alturas, a pensar que na Idade Média as catedrais eram as cumeeiras das cidades. Encanta-se com a prodigiosa arte dos arquitetos e artesãos medievais na construção das coberturas em madeira de Notre-Dame: “Diria, verdadeira jungle, pois tem-se um entrelaçamento de vigas ajustadas umas às outras sem rebites, tampouco articulações: um emaranhado de castanheiras. O todo nos explica que não se deve crucificar a viga e que o equilíbrio das forças, a leveza das madeiras e a inteligência das geometrias bastam para sustentar duzentas e dez toneladas de teto de metal sem necessidade de se colocar um só prego”. Essa gigantesca estrutura queimou no dia 15 de Abril.
Não poucas vezes escrevi sobre as pedras irregulares que, juntas, ergueram a torre milenar da Capela de Saint-Hilarius em Mullem, meu templo sagrado na Bélgica Flamenga, que substanciou durante vinte anos minhas gravações, assim como as pedras soltas que recolhi da denominada calçada portuguesa em Oeiras. Saint-Exupéry considerava que a pedra não tem sentido sem o Templo. Sylvain Tesson nos dá um entendimento transcendental das pedras de Notre-Dame: “Eu creio na memória das pedras. Elas absorvem o eco das conversas, dos pensamentos. Elas incorporam o odor dos homens. As pedras selvagens das grutas e as pedras sábias das igrejas irradiam uma força mântica. Somos sempre impactados quando penetramos em uma abóboda de pedra que abrigou os homens”.
Foram cerca de 150 as subidas de Tesson à parte superior de Notre-Dame. Anotou impressões: “De grafite em grafite, com a lanterna frontal, tem-se a história da França!” Anotaria nomes, sinais, ideogramas que foram fixados nas pedras desde a Idade Média por artesãos, assim como, durante a Revolução Francesa, por tantos que galgaram até o teto de Notre Dame. Recolhe-se dos textos anteriores: “À noite, nas igrejas, nós amávamos procurar os traços de nossos predecessores. Os muros das catedrais servem como livro de ouro. Companheiros, visitantes clandestinos e os padres deixaram seus nomes”.
O autor lamenta a pouca frequência dos franceses aos seus monumentos: “O parisiense não vai ao Louvre, o moscovita ignora o museu Pouchkine, o madrilenho, o Prado. Todavia, viajam para visitar museus distantes”. Depois do gravíssimo acidente que o vitimou, a queda de uma janela em Chamonix, os médicos recomendaram a caminhada, após fisioterapia. Morando perto de Notre-Dame, Sylvain Tesson diariamente ia até a Catedral e subia os cerca de 450 degraus até a torre. “Nos primeiros dias foi subir um Himalaia. Meus pulmões não recebiam ar suficiente, minhas pernas fraquejavam, as costas rangiam, o coração disparava. Cinco meses antes, caíra sobre meu ombro, meu corpo estendido. Subia as torres em direção ao céu para me fortificar”.
Esteve em situação crítica durante meses e, ao reiniciar essas atividades físicas, seu rosto estava desfigurado. Com humor comenta doravante suas novas impressões quando no alto de Notre-Dame: “Passava longos momentos a acariciar as gárgulas. Meu acidente provocou uma paralisia facial, minha face sofrera uma erosão. Passeava pelas ruas com o rosto caricato. As gárgulas consolavam-me nessa desgraça. Mantinham-se agarradas sobre os parapeitos e contemplavam Paris com suas goelas monstruosas”.
“Notre Dame de Paris – Ô Reine de douleur” é um pequeno livro que encanta o leitor. Traduz, em seus quatro textos sobre a Catedral escritos em momentos distanciados, a familiaridade ímpar de Sylvain Tesson com o Templo. Testemunha a confissão de uma conversão após o incêndio, ratificando a ligação amorosa do autor com Notre-Dame. Paul Claudel (1868-1955), poeta e dramaturgo, se converteria na noite de 1886 ao assistir aos ofícios de Natal em Notre-Dame: “Em um instante meu coração foi tocado e eu acreditei”.
Há mistérios insondáveis na lendária Catedral. O leigo consegue apreender parcela do inefável. Sylvain Tesson confessa: “Sou um mau cristão, mas sou cristão. Fui educado no amor de Cristo, conservei uma veneração pela cristandade, mas tornei-me cético no que concerne ao cristianismo, essa canalização da fonte evangélica. No entanto, minhas escaladas nada mais eram do que preces. Nas escarpas de Notre-Dame, vestidas de vazio e acarinhadas pela noite, eu jamais estive só”. Tradução: JEM.
This post addresses the book “Notre-Dame de Paris; Ô reine de douleur” by the French writer, geographer and adventurer Sylvain Tesson. It is a tribute to the Gothic cathedral after the fire of 15 April that consumed its spire and part of the roof. Tesson has strong links to this church, having climbed its tower staircase many times fully aware of his predecessors’ traces, the echoes from the past: names, signs, ideograms engraved in the ancient stones. Later on, after his near fatal accident in 2014, he would again climb Notre Dame steps to the tower, this time as a therapy. Highly recommended, the book is a collection of Tesson’s reflections written before and after the fire at the historic cathedral, an emotive and thoughtful homage to a sy mbol of Christianity and landmark of the city of Paris.