Mensagem a evidenciar outras captações da realidade atual

O futuro deve ser de tal maneira
que nenhuma criança ao nascer
se sinta torpedeada pela vida
de maneira que julga que tem de desistir de ser
para existir apenas como aquilo que a vida obriga a ser.
Agostinho da Silva

Apesar de tema relevante, mas tratado de maneira sucinta, a decadência cultural mostra-se evidente e sem tréguas, acoplando-se a ela outras quedas abissais relativas aos costumes como um todo, à moralidade, ao desrespeito à vida. Diariamente seres do mal eliminam, sem qualquer arrependimento, cidadãos comuns e ordeiros, atos que implicam a ruptura abrupta de inúmeros relacionamentos afetivos de toda espécie. Habituamo-nos à descida vertical, que se mostra desgraçadamente rotineira.

Muitas foram as mensagens recebidas, todas meritórias, a focalizar preferencialmente o Brasil e suas mazelas, que se acentuaram neste século. Se o professor titular da USP, Gildo Magalhães, observa que “esta é uma triste realidade, a barbárie avança rapidamente – et pourtant… temos de resistir; se não, morremos em vida!”, e o arquiteto Marcos Leite comenta estar “infeliz por ter de concordar com a análise que escancara a mediocridade vigente, apesar de ainda ter flashes de esperança de que venham, de alguns guetos de cultura e bom gosto a que fomos confinados, expressões artísticas relevantes, demonstrações de que o homem raciocina em detrimento da grosseria da matéria”, recebo do compositor François Servenière reflexões que, pela dimensão e densidade, poderão interessar ao leitor.

“Corroboro a posição de Mario Vargas Llosa em seu livro ‘La civilizatión del espectáculo’, que na realidade retoma as constatações taciturnas de Guy Deborden no seu famoso livro ‘La Société du Spetacle’ (1979). Livro triste e logorreico de um velho filósofo cansado pela modernidade galopante e voltada à pequenez.”

A seguir, Servenière discorre, a expandir sobre as calças rasgadas, essa “ofensa aos pobres”, segundo o musicólogo português Pedrosa Cardoso. “Entendo edificante a reflexão do mestre português sobre a indecência moral relacionada à pobreza, pois o jeans rasgado está na moda pelo mundo, em tempos em que a pobreza revela grande dificuldade para se vestir decente e corretamente para ser respeitada, para ter sua inserção social, para emancipar-se de sua condição inicial que não representa a felicidade sonhada. O professor está pleno de razões ao afirmar ‘tratar-se de um insulto à pobreza’, vestir-se de trapos, quando esses que assim agem têm condições de comprar roupas elegantes e até em coleções afamadas. Quando meus filhos habitaram Neuilly, ficava eu espantado ao ver jovens da mais alta sociedade francesa vestirem-se tão mal e relaxadamente, a fim de manifestar originalidade e orgulho. Via essa atitude como uma vergonha da riqueza, pois do ‘bem mal adquirido nunca se aproveita’, reza o ditado”. Infelizmente esse adágio não se aplica à realidade brasileira, onde o enriquecimento ilícito é endêmico, mercê da corrupção, do descaso e de uma justiça extremamente lerda.

Prossegue Servenière: “Ao meu ver, é insuportável a atitude desses jovens  mal vestidos, cabelos totalmente desalinhados, tatuados, assim se apresentando para demonstrar o desgosto pelo seu meio original, seja qual for o berço. Acredito ser um desrespeito para com os outros… Salvo casos excepcionais, quando remontamos às nossas genealogias, todos somos descendentes de meios sociais pobres. Sim, encontramos algum ilustre, rico ou notável personagem nesse contexto. Todavia ocultamos, bem acentuada e voluntariamente, a maioria indigente e anônima, que trabalhou arduamente a terra com suas unhas para se alimentar de raízes e tubérculos… Legiões têm vergonha desses antepassados pobres que estão inscritos em nosso DNA. Portanto, nosso caráter atual é oriundo desses ancestrais corajosos e tantas vezes indigentes. Será necessário muito tempo para as novas gerações reconhecerem o trabalho honroso de seus ancestrais e a própria situação social… quiçá uma vida inteira, para esses descendentes admitirem interiormente que não fazem parte de uma geração espontânea, mercê da riqueza adquirida! Assimilar essa ideia significa adquirir sabedoria, apreendendo o exemplo legado, que mereceria ser a bússola doravante para esses herdeiros. Só assim a transmissão poderá ser realizada. Não obstante, a juventude aceita muito mal essa dependência moral, estrutural, educativa! Ela acredita ser autônoma, fruto do talento e da inteligência espontânea…

A sociedade contemporânea é um maelström que parece arrasar, a partir de suas tecnologias, o passado e a velha cultura nacional dos povos. Os miliardários das novas tecnologias se glorificam, através da pujança financeira, por ser, graças aos canais de comunicação que inventaram, o alpha e o ômega de nossa época. Contudo, não tivessem eles conhecido a cultura milenar, não seriam apenas canais? Bastará um blackout para que eles percam totalmente sua função precípua. A cultura milenar desapareceria? Evidentemente não. Ela estaria nas bibliotecas, e poder-se-ia ler um livro à luz do sol ou à terna chama de uma vela, tocar música utilizando instrumento não elétrico… Seria a razão necessária e suficiente para que se lute contra a modernidade eletrônica galopante através do papel, das bibliotecas. O papel permite a salvaguarda da cultura. A desmaterialização de dados, graças à tecnologia, põe em risco nossa sociedade, nela incluindo a cultura e seus traços. Nessa tendência aparentemente irreprimível, não poderiam porventura ser desmaterializados monumentos históricos e paisagens? Bastaria um tsunami econômico brutal, o que não está distante no horizonte, graças às tensões mundiais, para que essa sociedade virtual desaparecesse em um sopro! Tendências econômicas atuais mostram essa atitude suicida contemporânea a flertar à beira do abismo.

Não vale a pena gritar a plenos pulmões para denunciar uma sociedade que vai de encontro ao muro. Ela deverá, independentemente das vontades individuais e coletivas, gerar seus próprios mecanismos reguladores, aos quais cada geração terá necessidade se adaptar. Seria  melhor, ou menos radiante, do que a antiga época nostálgica de nossa juventude, que não era tão brilhante quando a observamos de perto? Naqueles tempos era necessário mais de um mês para que o destino de uma carta se concretizasse até o fim do mundo… Quando ela chegava… É necessário se adaptar, como aliás o fez cada geração, para sobreviver às contingências de sua época.” Estou a me lembrar que nos anos de estudos em Paris, entre as décadas de 1950-1960, quantas não foram as cartas que não chegaram ou as que recebia após duas ou mais semanas de espera, considerando-se a travessia atlântica?

Servenière continua: “Quais serão as contingências de determinado período? Dramáticas, caóticas, maravilhosas, tranquilas? Apesar da tomada individual de uma posição determinada, a inventividade do maelströn que nos atinge de frente será como torrente tumultuosa que busca caminho em sua descida pelas montanhas em direção ao futuro. Ela encontrará obrigatoriamente seu traçado em direção à planície, acalmando-se pouco a pouco em lânguidos meandros. E sucessivamente através de gerações… A natureza nos oferece numerosas metáforas, a fim de positivar nossa relação filosófica a visar o futuro, mormente quando este se nos é apresentado somente de maneira angustiante, triste, destruidora… Uma certeza, a humanidade sobreviverá inventando outras soluções, normas e formas. Estas serão, por sua vez, excessivas e perigosas, multiformes, modeladas. Nossa época não é um monstro imóvel, uma finalidade. Ela opera permanentemente e assim foi no passado, no presente e assim será no futuro. É um rio. A humanidade também o é. Nossa época construirá e destruirá, conservará e criará o novo.

Joseph Schumpeter (1883-1950) teria razão ao insistir no eterno conceito da ‘destruição criativa’, por ser ela o motor do mundo, desde as origens. Cassandra não tem sempre razão, mesmo que seu propósito seja necessário para reagir à ignomínia, que não deixa de aparecer constantemente. Os Quatro Cavaleiros do Apocalipse, desgraçadamente, estão sempre montados, não importa o que façamos, o que pensamos, o que dizemos!

A incerteza atual, que provém da angústia coletiva gerada por um mundo ‘rico’, mas que apresenta a humanidade temerosa pelo futuro, sem saber os caminhos a serem seguidos para desvencilhar-se desta época narcisista, inculta, pobre moralmente, levada tantas vezes à tentação do suicídio, mercê também da certeza da existência das armas de destruição maciça. Frisemos, porém, que mesmo à beira do precipício, aliás, como já esteve tantas vezes, a humanidade conseguirá sobreviver aos seus demônios.

Podemos objetivamente ser devastados pela enxurrada do noticiário das mídias atuais. Porém, deveríamos transmitir às gerações futuras a esperança, da mesma maneira que o fizeram gerações passadas em condições por vezes muitíssimo mais difíceis do que a nossa”. (tradução: JEM).

Finalizava o blog da semana quando, ao buscar noticiário do dia nos provedores, deparo-me com quantidade de “noticiário” que, rigorosamente, beira à destruição plena da moralidade. Impossível esse lixo não contagiar as novas gerações. Ao menos nos lixões espalhados pela cidade o manuseio é feito com luvas bem grossas!

Resuming the subject of last week’s post on the decline of Culture, I publish a message received from the French composer François Servenière with far reaching and fresh approach to this issue: the unabated march of technology versus the importance of printed words in preserving History for posterity; the “creative destruction” theory, demolishing long standing practices and creating new ones; modern society in pursuit of adjustment mechanisms between the old and the new .