Música popular brasileira relevante: criação e interpretação

A finalidade da música é despertar em nós paixões variadas.
René Descartes (1596-1650)

Prefiro aquilo que me emociona àquilo que me deslumbra.
François Couperin (1668-1733)

A música é a linguagem do coração.
Jean-Philippe Rameau (1683-1764)

O SESC estará a lançar em breve um CD memorável, “Espelho”. O conteúdo integral foi apresentado em três récitas em São Paulo. Regina e eu estivemos em uma delas. Noite de puro deslumbramento.

A enxurrada, que está a destruir todos os valores existentes, como moral, costumes, honestidade, artes, faz com que progressivamente não mais tenhamos esperanças. Que a Cultura Erudita está a se desmilinguir é fato. No caso específico da música popular, que hoje se apresenta sob tantas roupagens, a maior parte delas descartável, mas que, por interesses vários, como patrocínios visando a público enorme e lucro advindo, mídia a acobertar, por vezes sem o menor compromisso com a qualidade, faz com que vivamos numa Torre de Babel, na qual as “linguagens” são dicotômicas e desprezíveis. Os valores de mérito foram negligenciados sem rubor pelos cultores do Cifrão que estão a esmagar o passado, pois sua existência implica a lembrança, e esta tem que desaparecer na “mente” dos responsáveis por essa derrocada dos costumes, graças à massa basicamente inculta que acorre a megaeventos, agendados tantas vezes com muitos meses de antecedência.

O Concerto, assim o nomeio, pois não se tratou de um Show, palavra que pode ser entendida como pejorativa quando empregada para minimizar o termo Concerto, apresentou composições de Cristóvão Bastos e Maury Buchala, este, tema de um blog quando do lançamento do CD de música contemporânea “Portraits”, gravado em França por conjunto instrumental respeitado e igualmente lançado pelo selo SESC.

Durante toda a apresentação, se sob a égide essencial alumbrava-me a cada uma das 16 músicas interpretadas, mais a executada extraprograma, sob outro contexto meu sentimento era de nostalgia e inquietude. Voltava meu pensar, por vezes, ao que se propaga em escala ascendente nos provedores e nas redes sociais a respeito de determinados “famosos”, insistentemente incensados, sem o menor talento musical, despudoradamente se produzindo, alguns quase desnudos, amparados por parafernália de luzes a ocultar a mediocridade, sons estratosféricos a impedir avaliações, mas levando multidões desprovidas de senso crítico e rigorosamente incultas ao delírio. Esses “famosos”, quando se pronunciam em “entrevistas”, são logorreicos e, espremendo-se conteúdos, nada sobra. E a música? Existiriam resquícios, se ao menos houver algum?

Voltemos à apresentação de “Espelho”. Conheço Maury Buchala desde os bancos universitários, pois foi meu aluno de piano durante o curso de quatro anos e já revelava talento invulgar. Quando me solicitou conselho para estudar no Exterior, recomendei Paris, dando-lhe algumas indicações. Radicado há mais de três décadas na capital francesa, Maury é expressão como compositor de música de vanguarda e regente com atuações no leste europeu e no Brasil. Sempre duvidei do compositor de música contemporânea que desconhece a escrita convencional, partindo já de processos que se multiplicaram nestas últimas décadas. Maury escreveu canções lindamente harmonizadas e soube escolher textos. O resultado foi surpreendente, pois suas canções, tão bem escritas, atingem o âmago do ouvinte. A cada canção mais surpreso ficava. Em duas delas, seu conhecimento das entranhas de nosso país no quesito da música de raiz mostra-se sólido, pois Choreando e Baião são exemplos. Carrosséis, Moças de Louça, Imagens e Morto Mar dão a exata medida da versatilidade de Maury Buchala, que se reinventa a cada canção. Luciana é uma canção homônima a de António Carlos Jobim, compositor que Maury admira nessa área específica. A apresentação dessa música foi feita pela ótima Mônica Salmaso, apesar de no CD ter sido gravada por Leila Pinheiro.

https://www.youtube.com/watch?v=RlgP8n6t4Xg

Confesso meu pouco convívio com a música popular e meu conhecimento menor da criação de Cristóvão Bastos (1946- ), respeitado compositor nascido no Rio de Janeiro, premiadíssimo e com carreira das mais expressivas. Emocionaram-nos suas canções: Acalanto pros Avós, Poranduba, Todo o Sentimento, Flor Negra, Virou Ciranda e Rede Branca.

Neste espaço insiro uma das mais sensíveis canções de Cristóvão Bastos, Santo Forte, apresentada no Concerto numa esplêndida interpretação do notável Renato Braz. Entendo-a como uma das mais intensas músicas de nosso cancioneiro, a causar-me uma fortíssima impressão.

https://www.youtube.com/watch?v=DWgDrV4tRlI

Maury Buchala e Cristóvão Bastos souberam com rara sensibilidade escolher os letristas-poetas, o que acentua a qualidade do todo.

Os quatro cantores que se apresentaram no Concerto mereceram justíssimos aplausos. A quase octogenária Áurea Martins expressava em cada verso cantado toda uma vivência dedicada à música popular. Plena de aura, mereceu de seus três outros colegas uma bela atitude reverencial. Mariana Baltar encantou com sua voz nuançada, assim como a exibir gestual de extrema elegância, mercê também de ter sido bailarina. Mônica Salmaso cantou com expressão e acurada percepção em peças de Cristóvão Bastos e de Maury Buchala, estas de muita dificuldade, pois de harmonias rebuscadas. Renato Braz é verdadeiramente um artista na acepção. Suas interpretações excedem pelo esmero com que expõe as frases musicais, acabamento cuidadoso e dicção transparente.

Maury Buchala e Cristóvão Bastos, graças às qualidades como músicos, souberam escolher os excelentes intérpretes que integraram o conjunto. Todos se apresentaram com empenho, qualidade e entusiasmo. Mencionaria pela ordem alfabética: Andreia Carizzi (violino 2), Bruno Aguilar (baixo acústico), Dirceu Leite (flauta e clarinete), Hugo Pilger (violoncelo), João Lyra (violão), Jurim Moreira (bateria), Marcos Catto (viol), Ricardo Amado (violino).

Louve-se toda a equipe do SESC por esse magnífico CD, que em breve estará à disposição dos aficionados. Presentemente já se encontra nas plataformas Spotify, Deezer e Aple, assim como no Youtube.

My impressions after attending the release concert of the CD “Espelhos” (SESC Record Label) with songs of unquestioned quality composed by Maury Buchala and Cristóvão Bastos. As I listened, bewitched, to the entire album repertoire presented by stunning singers and musicians, I saw that excellence still exists. What is lacking is interest of media and financial backers in promoting some superlative talents that have not gained traction in the mainstream music world, opting instead for a handful of celebrated and often mediocre performers that capture more public and bring in more money. Congratulations to SESC on this initiative that helps promote major talents of the Brazilian music scene.