O piloto-escritor por vocação imperiosa
Refiz todos os meus cálculos.
Nossa ideia é irrealizável.
Não nos resta outra coisa a fazer,
Realizá-las.
Pierre-Georges Latécoère
(fundador das Lignes Aériennes Latécoère)
Nesse segundo comentário do livro em apreço abordarei as duas atividades mais imperativas na breve existência de Antoine de Saint-Exupéry (1900-1944). Amalgamadas sem a menor possibilidade de separação, literatura e aviação fazem parte de uma maneira única de entender o mundo em que vivemos ou o universo. Essa premissa leva-nos ao O Pequeno Príncipe em seu asteroide, o mais breve dos livros de Saint-Exupéry, mas o que granjearia o maior alcance. Vislumbre estelar imaginário, passível de acalantar os almejos mais recônditos do autor.
A trajetória de Saint-Exupéry voltada à aviação remonta aos seus doze anos de idade, quando, contrariando sua mãe, reiteradas vezes vai ao campo de pouso de pequenos aeroplanos de madeira e tela em Ambérieu. Dizendo-se autorizado por sua mãe, pela primeira vez voa num avião pilotado por Gabriel Wroblewski-Salvez. O maravilhamento da “aventura” seria a origem do fascínio que o seduziria por toda a vida.
Em Les plus beaux manuscrits de Saint-Exupéry, a autora Nathalie des Vallières fixa datas precisas para o envolvimento de seu tio-avô. Vemo-lo, a partir de 1921 até a morte em 1944, basicamente engajado com a aeronáutica, como piloto e, por vezes, como dirigente. Como aviador, naqueles tempos ainda precários em termos de segurança, Saint-Exupéry sofreria vários acidentes, alguns graves. Em 1933 quase se afoga após aterrissar mal. Seria em 1935 a queda que o teria influenciado de maneira mais marcante, quando, ao tentar bater o recorde Paris-Saigon, cai com seu amigo e piloto André Prévot no deserto da Líbia. Já em 1938, ao buscar o recorde Nova-York–Terra do Fogo, sofre queda na Guatemala, ficando gravemente ferido. Em 1940 participa, pela primeira vez como piloto, da Segunda Grande Guerra, sendo atingido pela artilharia antiaérea alemã. Ao todo seriam sete acidentes, o último fatal. Poder-se-ia entender esse número como “antecipações” de progressiva “atração” pela mors certa hora incerta. Corrobora esse desenrolar a morte constante de seus amigos e companheiros.
Presente nos romances e em Citadelle, a imensidão do deserto terá forte impressão no autor. Convidado em Outubro de 1927 para a chefia do aeroporto de Cap Juby (Mauritânia), permanecerá no enclave durante um ano e meio e o convívio com o deserto ser-lhe-á vital. Durante esse período, as poucas distrações, como o xadrez, ajudam-no nas longas horas de silêncio. Período de reflexão e da compreensão da condição do homem. Acidentes aéreos no deserto e a missão de salvar companheiros vítimas de quedas e aterrissagens forçadas, ter a índole do congraçamento e dar-se amistosamente com beduínos, chegando a frequentá-los em suas tendas, escrever cercado pela imensidão do Sahara corroboram o comprometimento amoroso com o ambiente. O acidente mencionado de 1935 é relatado: “O deserto? Abordei-o um certo dia pelo coração. Durante voo em direção à Indochina, fui parar no Egito, nos confins da Líbia, preso nas areias como uma cola e pensei que iria morrer”. Estava em companhia de seu mecânico André Prevot. Durante três dias caminham sem rumo certo, sendo encontrados em estado lastimável por um beduíno. Em Terre des Hommes há a narrativa da quase tragédia. O deserto fá-lo pensar na solidão, na morte e no silêncio: “Um silêncio não se parece com outro silêncio”. Ao deixar Cap Juby sente-se aliviado.
Carta ao amigo Charles Sallés corrobora a admiração de Saint-Exupéry pelo ofício, mas também pela imensidão do deserto e pelos mouros.
“Meu velho amigo, coloque sobre a conta do clima, de uma imperdoável preguiça, de uma impossibilidade de compreender ainda tudo o que há de novo – este silêncio vergonhoso! Escrevi-lhe três ou quatro vezes e minhas cartas não seguiram. Tentava-lhe explicar e não conseguia. É algo maravilhoso e bizarro ao mesmo tempo. A cada voo dos correios, piloto dois mil quilômetros no Sahara para ir, dois mil para voltar. Milhares sobre tribos dissidentes. Imagine essa areia, sempre essa areia. E já passei uma noite, em pane, numa pequena fortaleza isolada. Amo esse isolamento, mas não sei defini-lo. E as tribos mouras e suas fisionomias me encantam. Contar-lhe-ei tudo um dia”.
Considere-se o companheirismo. Saint-Exupéry teve-o nas figuras, alguma notáveis, ligadas à pilotagem e à navegação da Aéropostale, sucessora da Lignes Aériennes Latécoère. Verdadeiros heróis da aviação, desde a Primeira Grande Guerra tantos deles sucumbiram precocemente em acidentes. Entre eles: Jean Mermoz (1901-1936), a figura mais emblemática da história da aviação francesa; Henry Guillaumet (1902-1940), imortalizado em Terre des Hommes. Saint-Exupéry relata a epopeia do amigo que, após acidente nos Andes, caminharia durante vários dias, moribundo, até ser encontrado. Frase de Guillaumet ao piloto-escritor: “O que eu fiz, eu juro, nenhum animal teria feito”. Ao morrer Guillaumet, Saint-Exupéry se expressa: “Guillaumet morreu. Tenho a impressão de ter perdido meu melhor amigo”. Alguns outros pilotos da Aéropostale mortos tragicamente: Jean Chamsaur (1896-1931); Alexandre Collenot (1902-1936); Germain de Laguerie (1897-1930); Henry Lemaître (1894-1935); Gaston Génin (1901-1936); Marcel Reine (1901-1940); Henri Érable (1903-1936) e Léopold Gourp (1900-1926), aprisionados e mortos pelos mouros. Tantos outros sofreram quedas, mercê em parte do pioneirismo.
O pressentimento da morte se acentua ao assistir ao desenlace de amigos e colegas. Aos 30 de Julho de 1944, um dia antes de seu desaparecimento, escreve ao amigo Pierre Daloz carta que, segundo a autora de Les plus beaux manuscrits de Saint-Exupéry, Nathalie des Vallières, faz dessa missiva um testamento. Após saudações, o piloto-escritor escreve: “Faço a guerra o mais profundamente possível. Certamente sou o decano entre os pilotos de guerra do mundo. O limite de idade é de trinta anos pilotando o tipo de avião de um só lugar que eu piloto. Outro dia tive pane de um motor a 10.000 metros de altitude sobre Annency, na exata hora em que completava quarenta e quatro anos! Enquanto sobrevoava os Alpes com a velocidade de uma tartaruga, à mercê dos caças alemães, divertia-me docemente pensando nos superpatriotas que proíbem meus livros na África do Norte. Tem graça.
Conheci tudo desde meu retorno à esquadrilha (esse retorno é um milagre). Conheci a pane, o desfalecimento pela falta de oxigênio, a perseguição dos caças inimigos e também o incêndio em voo. Não estou exagerando e me sinto muito saudável. É minha única satisfação! E também de passear, só o avião e sozinho a bordo, durante horas, sobre a França, a tirar fotografias. Tudo isso é estranho.
Aqui, estamos longe do banho de ódio, mas apesar da gentileza da esquadrilha, assim mesmo sinto tudo como um pouco da miséria humana. Não tenho ninguém, jamais, com quem convesar. No entanto, já é alguma coisa ter com quem viver. Mas, que solidão espiritual!
Se eu for abatido, não lamentarei absolutamente nada. O formigueiro futuro me espanta. E eu detesto seu aspecto robotizado. Fui feito para ser jardineiro”.
No dia 31 de Julho de 1944, o Journal de marche (da divisão 2/33 à qual Saint-Exupéry pertencia) comunicava: “Um triste acontecimento acaba de manchar a alegria que todos sentiam com a aproximação da vitória. O comandante Saint-Exupéry não regressou. Saiu às 9 horas para a Savóia, a pilotar o 223. Não regressou até às 13 horas. Os chamados pelo rádio ficaram sem resposta e os radares alertados o procuraram em vão, às 14 h 30 não havia mais esperanças de que ele pudesse estar voando”.
Les plus beaux manuscrits de Saint-Exupéry, carinhosa e criteriosamente escrito pela sua sobrinha-neta, Nathalie des Vallières, através de rica documentação faz com que o leitor compreenda as várias virtudes do notável piloto-escritor.
Seus livros Courrier Sud (1929), Vol de Nuit (1931), Terre des Hommes (1939) e Pilote de Guerre (1942) evidenciam a sublimação do homem diante de uma das mais fatídicas profissões do período, seja como piloto a transportar correspondências e atravessando oceanos e continentes, seja durante as duas Grandes Guerras, quando a morte estrava sempre à espreita. No pós-guerra, os avanços tecnológicos, tornando a aviação muitíssimo mais segura, apenas dimensionam a naturalidade e coragem com que os pilotos de outrora, heróis na acepção, enfrentavam o destino.
This is the second post about the book “Les plus beaux manuscrits de Saint-Exupéry” (published in English with the title “Saint Exupéry: Art, Writings and Musings”), a collection of letters, drawings, photos and private notebooks of the French writer and aviator (1900-1944) assembled with adoring reverence by his great-niece, the art historian Nathalie des Vallières. Each chapter covers one aspect of Saint-Exupéry’s life: childhood, friendships, relationship with mother, wife and other women, the inventor with many patents to his name, his passion for writing, drawing, flying, his participation in the war, his thoughts about death. One entire chapter is dedicated to Saint-Exupéry’s affectionate correspondence with his mother, extending from childhood to 1944, the year of his death. Another chapter addresses the various women of his life: wife, sisters, friends, romantic liaisons. A beautiful and richly illustrated edition with reproductions of Saint-Exupéry’s original manuscripts and drawings, in special the omnipresent sketches of “The Little Prince”, maybe an alter ego of the author, the book provides valuable information about life and thoughts of an extraordinary artist and human being.