Um diário de Sylvain Tesson
Um diário íntimo é uma operação de luta contra a desordem.
Ganha-se ao se confessar pessimista,
É uma maneira ser profético.
Sylvain Tesson
Foram 16 livros de Sylvain Tesson resenhados ou comentados neste espaço, desde 2011. Na grande maioria, admirava a intrepidez de Sylvain Tesson, suas andanças e travessias majoritariamente solitárias, assim como sua visão personalíssima dos locais e seus costumes, levando-o a deduções tantas vezes de muito interesse.
Após o acidente sofrido aos 20 de Agosto de 2014, ao cair de uma altura de dez metros na tentativa de “escalar” uma casa em Chamonix, sofrendo trauma craniano e várias fraturas – acidente que o levaria ao coma induzido durante oito dias -, marcas inalienáveis permaneceram em sua face.
Sylvain Tesson já granjeara ampla repercussão antes da queda. Tive o prazer, por mero acaso, de estar presente no lançamento de um de seus livros em livraria parisiense (S’abandonner à vivre. Paris, Gallimard, 2014), sete meses antes do acidente.
Restabelecendo-se, a notoriedade foi acrescida. Entrevistas, palestras e mais livros surgiram. Seria possível entender que a etapa das grandes e perigosas aventuras, quase sempre só pela imensidão deste planeta, propiciou ao aventureiro hiper inteligente, a descrição dos locais percorridos com o olhar do observador atento, para quem o mínimo pormenor interessava. O solilóquio teria possibilitado o afloramento da narrativa criadora. Confessaria que foi longo o período de grandes riscos. Em L’Axe du Loup (blog 28/05/2011), Éloge de l’Énergie Vagabond (blog 16/03/2013) e Dans de Forêts de Sibérie (blog 01/03/2014), Tesson revelar-se-ia por inteiro, mormente nesse último livro. O isolamento em cabana às margens do lago Baikal em pleno inverno fez aflorar o de profundis em tantas passagens. Após o acidente houve transformações. Em Berezina – en side-car avec Napoléon (blog 10/06/2017), vemo-lo em extraordinária aventura não solitária, mais como um narrador que presencialmente, durante o longo percurso, conta a trágica retirada de Napoleão de Moscou em direção a Paris. Em outra aventura, atravessou transversalmente a França do sudeste ao noroeste, por vezes acompanhado por amigos. Se sob um aspecto essa narrativa tem interesse em Sur les Chemins Noirs (blog 03/02/2018), sob outro há a insistência na revisita ao trauma sofrido. O lançamento de Notre-Dame de Paris – Ô Reine de Douleur (blog 06/07/2019) atenderia a nítido interesse editorial, logo após o lamentável incêndio. Mas há uma revelação: Sylvain Tesson se converte, ele que incontáveis vezes subiu até as torres da catedral, certamente seu local emblemático. Calaram-lhe fundo as chamas destruidoras. Un été avec Homère (07/09/2019), após estadia no Mar Egeu, é reverência in loco, àquele que Tesson considera como o maior poeta da História.
Une très légère oscillation (France, Équateurs, 2017) é escrito em forma de diário, que se estende de Janeiro 2014 à primavera de 2017. Diário arguto que perpassa as observações do autor que, nesse período, escreve sobre política francesa, Estado Islâmico, incontáveis viagens pela Europa e Extremo Oriente, percursos “mais responsáveis”, quase todos por via aérea, naturalmente. O Diário tem a riqueza de não ser monotemático. O multidirecionamento do pensar leva Tesson, por vezes, a se fixar em aforismos, muitos deles tendentes à reflexão.
Observação sarcástica em um de seus apontamentos: “Devido ao emburrecimento ao qual é levado aquele que mergulha nos programas televisivos, é saudável saber que a invenção da telinha veio após as conquistas da agulha de costura ou da imprensa, cujas respectivas descobertas não teriam sido possíveis se a televisão tivesse preexistido”. Não poupa a internet: “Os propagandistas da internet me deixam atordoado. Que talento! Eles chamam de ‘novas tecnologias desmaterializadas’ esses aparelhos que nos deixam encoleirados, nos domesticam, nos hipnotizam”. A crítica à tecnologia levada ao excesso, estende-se à observação que tira da legião de turistas a fotografar a Torre Eiffel: “Não mais haverá narrativas de viagem, ninguém recebe o espetáculo diretamente. O que farão com todas essas imagens que roubam a possibilidade de uma emoção orgânica? Pode-se lá meditar acionando as teclas dessas engenhocas? Que mal o mundo fez para que seja fotografado dessa maneira? Só as crianças, os velhos e os pássaros olham com seus próprios olhos. São os únicos que guardarão recordações”. Estou a me lembrar de minha primeira visita ao Louvre no final de 1958. Determinado momento estava em frente à Monalisa. Fiquei a olhar meio decepcionado, mercê de tamanha divulgação que a obra de Leonardo da Vinci granjeou e granjeia. De repente assustei-me com um barulho de passadas rápidas e barulhentas. Eram turistas japoneses que ficaram em frente ao quadro, tiraram fotos em segundos e retiraram-se como haviam chegado, ruidosamente. Tesson ainda afirmaria: “O que é o progresso tecnológico? É o progresso, em nós, da certeza de que temos necessidade crucial de coisas inúteis”. Apesar de posições por vezes radicais, aos 47 anos Tesson, apreenderia a realidade, a entender que a essência da absorção das tecnologias, verdadeira hipnose em processo extremamente rápido, faz com que o surgimento de outras, mais avançadas, induza à continuação do estado hipnótico. Nada a fazer.
Ao comentar diferenças entre a cinematografia americana e russa, observa: “O filme americano implanta suas proezas técnicas. O filme russo substitui a falta de meios pela profundeza do tema. Para o primeiro, o espetáculo, para o segundo, o propósito. Um se prende aos efeitos especiais, o outro tece reflexões sobre as causas (da dor). A intensidade de uma obra não reside no fato do acúmulo da alta definição: ainda precisa haver algo a ser alcançado nesse mister. Na literatura, a preciosidade de uma caneta tinteiro não resultará em uma obra-prima. No cinema, nenhum drone elevará o valor de um filme”. Nessa temática, em outro apontamento do diário, Tesson observa: “As árvores são ‘pessoas’, como dizia Derzu Uzala, o pequeno caçador da Sibéria Oriental tornado eterno herói pelo escritor Vladimir Arseniev”.
No Diário, alguns aforismos têm interesse:
O único inconveniente do desaparecimento da humanidade é que não haverá ninguém para se alegrar pelo acontecimento.
Vantagem do alpinista: no cume, não temos vergonha de dar meia-volta.
Poluição: hálito das massas.
“Revolução Cultural” deveria ser um pleonasmo.
Outono, o perigo amarelo.
Internet: arma de fogo nas mãos de uma criança.
Paradoxo: não sou capaz de me autocriticar.
Suíça: teria medo de viver em um país com prefixo do suicídio.
Saara: viver num país onde há todas as razões para se enforcar e nenhuma árvore para fazê-lo.
Álcool: Depois da crise epilética, fui proibido de beber. Na realidade não queria me embebedar, mas regar a alma, essa planta tão vivaz.
O Diário de Sylvain Tesson, iniciado meses antes do acidente, estendendo-se de Janeiro de 2014 à primavera de 2017, tem forte dose de ironia arguta, de um pofiguismo, palavra russa tão utilizada pelo autor em obras anteriores e não no presente livro, sem tradução para o francês, tampouco para português. Segundo ele, “designa uma atitude face ao mundo absurdo e à imprevisibilidade dos fatos”. Quase todos os temas recorrentes nesse debruçamento sobre si mesmo, após atenta observação, reiteram seu discurso cáustico tantas vezes, outras tantas de humor singular. Deu-me prazer a leitura.
Um amigo me enviou, de Paris, La Panthère des neiges, livro de Sylvain Tesson publicado em Outubro de 2019 pela Gallimard. Postado àquela altura, não chegou às minhas mãos. Sobre livros e CD não recebidos, mercê de nossos correios, comentarei no próximo blog. Uma lástima.
Comments on the book “Une Très Légère Oscillation”, written from 2014 to 2017 by the adventurer, geographer and writer Sylvain Tesson. Written as a journal or diary entries, Tesson muses over a variety of issues, such as French politics, the Islamic State, consumerism, technological society, travel stories. A varied menu presented with Tesson’s usual originality, sharpness, irony, and also humor, particularly in the aphorisms section. It gave me pleasure to read it.