Decadência sem fim

Que falta nesta cidade?… Verdade.
Que mais por sua desonra?… Honra.
Falta mais que se lhe ponha?… Vergonha.
Quem a pôs neste socrócio?… Negócio.
Quem causa tal perdição?… Ambição.
E no meio desta loucura?… Usura.
Gregório de Matos (1636-1696)

Ter acompanhado ao longo dos anos a ação de nossos Correios habilita-me a dedicar o presente blog à Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos – criada em 1969 – e assinalar transformações. O histórico de meu relacionamento com os serviços postais do país remonta ao ano 1958. O declínio acentuado de nossos Correios a partir do início do século é sensível e soluções urgentes têm de ser tomadas.

Estou a me lembrar de meus anos como estudante em Paris, de 1958 a 1962, período em que a tecnologia engatinhava e as comunicações eram realizadas com lentidão. Semanalmente enviava carta a meus pais, deles recebendo resposta quinze dias após. Poderia dizer que o fluxo de missivas era quase imutável. Tal fato não acontecia com os telefonemas. Durante o período parisiense, poucas vezes conversei com meus pais. Tínhamos de agendar horários para os dois ou três dias subsequentes e mais de uma vez a telefonista de plantão, na hora precisa marcada, ligava-me para dizer que a comunicação só poderia ser realizada no dia seguinte por problemas com os cabos. Jamais entendi aquela “tecnologia”.

Bem posteriormente, de 1981 até 1991, mantive correspondência regular com a ilustre musicóloga portuguesa Júlia d’Almendra (1904-1992). Quando em Lisboa para recitais de piano pelo país ficava hospedado em sua morada. Nossa vasta correspondência girava preferencialmente sobre Claude Debussy. Júlia d’Almendra era autora de livro referencial sobre o compositor, “Les modes grégoriens dans l’oeuvre de Claude Debussy” (Paris, G.Enault, 1948). Nossa correspondência “completa” encontra-se presentemente no Centro Ward de Lisboa, dirigido por sua discípula e também defensora infatigável do Canto Gregoriano em Portugal, Idalete Giga. De Júlia d’Almendra recebi cerca de quarenta e tantas longas cartas e a notável gregorianista acolheria aquelas que lhe enviava. Recebi também inúmeros cartões postais. A menção neste blog é para afirmar que essa troca de missivas seguia um curso normal. Mutuamente recebíamos as cartas escritas a mão no prazo certo. A correspondência de Júlia d’Almendra foi-me de imensa importância. Mantenho pela saudosa amiga perene gratidão. Sobre a nossa atividade epistolar e a evidenciar a regularidade dos Correios daqui e d’além mar, Júlia D’ Almendra escreveu-me com certo humor: “Eu pergunto: porque é que as nossas cartas não se perdem? Se recebem sempre. (…) Sempre ouvi dizer que só se perdem as cartas que nos convêm…Naturalmente, se não são mandadas por via aérea e esperam ainda os barcos do século passado, é natural que nunca mais cheguem” (carta de 06/12/1983).

Passaram-se os anos. Creio que a partir do início do século XXI, num processo que se acentuaria a seguir, a Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos (ECT) se foi  deteriorando e elevando os preços de seus serviços ao consumidor. Em blog “A inacreditável realidade – Todos assistem e nada acontece”, datado de 31/03/2012, escrevia: “Recebi da França um pacote com revistas e livro sobre música, livre et brochures. Um amigo me enviou a encomenda no dia 13 de Março às 12h. A entrega deu-se no dia 19, ou seja, no quinto dia útil. O preço pago pelo remetente para essa entrega especial – E$ 5,49 – corresponde aproximadamente a R$ 13,20. A primeira impressão foi de choque, pois estou habituado a enviar livros e revistas para amigos do Exterior e sempre considerei elevadíssimas as quantias pagas. Mesmo um livro enviado para uma cidade próxima como Rio de Janeiro e com peso bem inferior custou-me praticamente o dobro para o mesmo prazo de entrega. Atiçado pela curiosidade, levei a encomenda até a agência dos Correios mais próxima, virei o envelope ao contrário, livre de qualquer endereço ou carimbo, e pedi para a atendente verificar o preço para entrega rápida na França. Disse-lhe o nome da cidade. A simpática funcionária comunicou-me que, se quisesse entrega em 2 o u 3 dias , custaria aproximadamente R$ 100,00; para um prazo maior, de 6 a 13 dias, num envio denominado ‘prioritário com registro’, R$ 65,35 até 1.200 gramas. Meu envelope pesava exatamente 1.180 gramas, pois mantido como recebi, com livro e revistas”.

O processo de deterioração dos serviços e dos preços abusivos apenas continuou ascendente. Nesses últimos anos, livros enviados da França ou de Portugal e CDs belgas chegaram às minhas mãos mui tardiamente. Outros devem ter se perdido no vasto Atlântico. Ultimamente estava para ler e resenhar quatro livros da musicóloga e escritora francesa, Catherine Lechner-Reydellet. Aguardei-os, após a missiva da autora anunciando a remessa. Chegaram seis meses após o envio. O ilustre musicólogo português José Maria Pedrosa Cardoso enviou-me em Outubro seu último livro, “O Grande Te Deum setecentista português – The eighteenth-Century portuguese Te Deum” (Lisboa, Biblioteca Nacional de Portugal/CESEM, 2019). Até este início de Abril nada recebi.

Também no final de 2019, o excelente pianista e meu colega na classe de Marguerite Long em Paris, Désiré N’Kaoua, enviou-me sua última gravação, a Sonata op.106, Hammerklavier de Beethoven. Qual não foi o meu espanto ao receber, dois meses após, a imagem do envelope com todos os meus dados exatos e com a frase de Michèlle, sua esposa: “C’est avec une grande tristesse que nous avons vu revenir le CD Beethoven (que Désiré vous avait envoyé) avec la mention ‘adresse inconnue’. Vous trouverez ci-joint la photographie de l’enveloppe avec toutes les mentions”. Endereço claríssimo, mas desconhecido ou negligenciado pelos Correios!!!

http://d.nkaoua.free.fr/bioFR.html

Menção de elogio faço aos carteiros. As décadas acentuaram meu respeito pelo trabalho árduo por eles enfrentado diariamente. Dedicados e cordiais.

Aparelhado por governos anteriores, creio que, após a calamidade do COVID-19, teríamos de encontrar solução definitiva para a Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos. Para nós, brasileiros, é vergonhoso, num diálogo com outros povos, ter de apresentar essa chaga em processo de franca deterioração. Até quando?

A comparison between the state-owned Brazilian postal service in the second half of the last century, when it was pretty reliable and relatively fast, and today, when it slid downhill: extremely high postage costs, slow mail delivery — both for outgoing and incoming mails —, serious number of mail lost in transit. Confidence is completely gone. How much longer will this last?