A gênese de inúmeras conceituações

Dans la vie on n’a jamais le temps…
(Carnets V – 2 )

Si je supprime l’arbre je supprime
les messages que je puis recevoir.
(Carnets III – 123)
Saint-Exupéry

A leitura dos Carnets (Paris, Gallimard, 1999 – 1º edição, 1975) de Saint-Exupéry poderia desconcertar leitores assíduos do piloto-escritor. Redigidos entre 1936 e, possivelmente, 1942, durante a ebulição de Terre des Hommes (1939), e a anteceder Pilote de Guerre (1942), Le Petit Prince (1943), Lettre à un otage (1943-1944) e Citadelle, obra póstuma, os Carnets apresentam uma série de reflexões sobre o condicionamento do homem frente à História. A conviver com a obra literária de Saint-Exupéry, constantemente revisitada, mormente Citadelle, a leitura bem tardia dos Carnets foi-me reveladora de outras mais reflexões do autor.

Os Carnets, sob uma ótica, têm viés que pode desorientar o leitor; sob outra égide revelam na acepção o pluralismo de Saint-Exupéry, a sua abrangência humanista à antiga, pois seu pensamento perpassa literatura, política, ideologias, economia, religião, assim como temas não abordados em sua obra literária, como física e mecânica. Essa visão do mundo sob várias facetas poderia ser comparada ao multidirecionado pensar durante o iluminismo em pleno século XVIII em França.

Na introdução de Pierre Chevrier tem-se o modus faciendi desses Carnets: “Saint-Exupéry tinha consigo, no bolso interior de sua vestimenta, uma caderneta encadernada em couro macio, na qual consignava suas reflexões as mais diversas. É fácil detectar, durante a leitura desses apontamentos, aqueles que lhe servirão como aide-mémoire para trabalho posterior, outros que ele desenvolvia para clarificar seu próprio pensamento ou mesmo vários que surgiam como uma exclamação”. Os Carnets foram escritos tantas vezes em situações incômodas, como em voo ou em carro, o que fez com que algumas palavras se tornassem ilegíveis.

Os textos inseridos nos Carnets não foram escritos para ser publicados, diferentemente de outro recentemente resenhado neste espaço, Une très légère oscillation, de Sylvain Tesson, nitidamente pensado para publicação. Esse descompromisso dos Carnets com o futuro, se sob um aspecto faz fluir reflexões inúmeras vezes sem continuidade ou frases isoladas, sob outra égide, mercê da prolixidade temática, não incita à leitura de maneira sequencial. Há temas precisos voltados a áreas de conhecimento de Saint-Exupéry, como mecânica, física, matemática, economia e salários, política num período de transformações sensíveis pré-Segunda Guerra e seus primórdios, temas tratados com terminologia apropriada, distanciando-os do leitor habituado aos seus romances e narrativas. Para desconhecedores de determinadas dessas áreas, voltadas a experimentos de ordem mais “técnica”, a leitura pode tornar-se ininteligível. Não tendo ligação com romances que tiveram plena aceitação, há, nos Carnets, reflexões não continuadas que estarão metamorfoseadas em seus livros, mormente em Citadelle.

Desfilam na Agenda e nos cinco Carnets que integram o livro – cada Carnet com as reflexões numeradas -, vários personagens, a grande maioria desconhecida hoje, mas que faziam parte de um amplo cotidiano, presencial ou não, do autor.

Entre as numerosas conceituações, muitas sem continuidade, considera, através de sua visão humanista, que políticos não têm de “fundamentar conceitos, pois esse é trabalho do espírito e através dele a humanidade caminha”.

Entende similaridade entre domínio espiritual e intelectual e que “uma civilização oferece ordenamento na natureza e no homem. Uma civilização oferece a riqueza do coração”. Essa junção de valores humanistas percorrerá toda sua obra literária.

A se orientar por princípio basilar negligenciado, mormente em nosso país, observa que “o povo não pede a realização de sua vontade, mas sim de ter direito à educação, à compreensão”.

Para músicos, preferencialmente pianistas, Saint-Exupéry explana longa conceituação sobre destinação da riqueza a um carro de luxo e a um piano de cauda: “A aristocracia do dinheiro não coincide com a aristocracia verdadeira. As reformas sociais devem se ater à renovação de certa aristocracia, como também dispor uma economia que permita consumir tudo. Se é chocante comprar-se um piano de cauda face a um morador de rua que passa fome, não significa o fato que a compra de um piano não seja infinitamente digna do homem. Primeiramente será necessário permitir ao morador de rua comer, sim, mas não agir demagogicamente a impedir a compra de pianos de cauda. De fato, tem-se não uma solução econômica, mas um retorno moral que infelizmente se prende à noção mesma de grandeza, de luxo, de dignidade e de elevação espiritual. A distribuição de pianos de cauda para moradores de rua resultaria zero (um franco por homem e a cada ano…) e é bom que se conserve numa sociedade esse móvel de emulação, essa esperança ou, mais exatamente, essa imagem da grandeza humana. Os membros de um povo que possuem uma rainha têm um pouco do sangue real correndo em suas veias,”.

Inúmeras reflexões sobre sistemas políticos estão inseridas nos Carnets. Reiteradamente Saint-Exupéry retorna ao tema, o que demonstra sua preocupação no peristilo da 2ª Grande Guerra. Também pormenoriza-se nas várias categorias de classes sociais. Essas reflexões, por vezes repetitivas em apontamentos distanciados, refletem a tensão vivida no período.

Segmentos maiores ou menores que compõem os Carnets propiciam, por vezes, reflexões curtas à maneira de aforismos, essa sentença breve que encerra a síntese de uma reflexão. A menção a alguns faz-se oportuna:

O instinto de identidade é mais forte do que aquele de conservação.

Do homem eu não me pergunto ‘qual o valor de suas leis’, mas ‘qual é seu poder criador’.

Por que a verdade conceitual leva-me a verificar a verdade da observação? (Entre Newton e o louco há pouca diferença).

Assim são as leis da natureza.  Primeiramente a ordem, que é a “expressão” da natureza.

Psicanálise. O homem quer formular aquilo que sente. Se não formula, ele inventa os atos.

Trata-se de saber se eu prefiro o homem livre ou não – mas eu prefiro o homem que é livre.

Depreende-se dos Carnets a propensão para a busca, “visionária” talvez, de uma igualdade. Se condena a ganância pelo lucro no sistema capitalista, faz também duras críticas ao socialismo. Esse pensar liberto de amarras não o torna indiferente. Se questiona tantas vezes, em outras mais reflexões posiciona-se e nesse redesenho cresce o pensador voltado à problemática do destino do homem e de sua condição. A leitura dos Carnets torna-se instrumento relevante, a corroborar o entendimento de suas obras literárias, mormente pelo fato de estarmos diante de fragmentos ou esboços. (tradução: JEM)

Comments on the book “Carnets”, by the French writer and aviator Antoine de Saint-Exupéry, made up of fragments of notes and thoughts not thematically linked, often jotted down on-the-go and saved in a leather bound pocket journal Exupéry carried with him. The author being a multi-faceted talent, such notes cover a wide range of topics: literature, politics, economics, religion, as well as technical subjects, like physics and mechanics. Not intended for publication, they served as an “aide-mémoire” for the author himself, with some ideas developed later in his fiction. Though just fragments, the Carnets are a useful reading for a better understanding of Saint-Exupéry’s literary work.