Pianista maior, apesar dos problemas físicos

Clara Haskil (1895-1960)

Em toda minha vida conheci três gênios:
Einstein, Churchill e Clara Haskil.
Charlie Chaplin

Entre os nomes referenciais da arte pianística figura Clara Haskil. Independentemente da qualidade singular da pianista nascida na Romênia, integra a relação daqueles que tiveram vicissitudes quase intransponíveis, casos do húngaro György Cziffra (1921-1994), da austríaca Lili Krauss (1903-1986) e do também romeno Dinu Lipati (1917-1950), como exemplos. Lipati, intérprete referencial, morreria precocemente de leucemia.

Apesar de livros e aplicativos relatarem a biografia de Clara Haskil, transmito ao leitor aspectos fulcrais de sua vida. De família judaica, ainda menina dominava piano e violino. Depoimentos atestam que, após ouvir determinada música, sentava-se ao piano e repetia parcialmente o que ouvira. Perde o pai em 1899 e poucos anos após, guiada por um tio, ei-la em Viena para estudos de piano e violino. Ao tocar para Anton Door (1833-1919), pianista e professor renomado, este escreve para o diário Neue Freie Presse: “Nesses dias recebi em casa um médico vindo da Romênia de mãos dadas com uma menina de sete anos, filha de uma viúva. Essa criança é um prodígio: nunca recebeu um verdadeiro ensino musical, mas isso não é necessário, pois tudo que tocamos para ela, guardando-se as possibilidades de suas mãos, ela senta-se e toca de memória, sem um erro, e transpõe para qualquer tom. A ela apresentei uma sonata fácil de Beethoven: ela fez a leitura de maneira perfeita, sem dificuldade. Está-se diante de um enigma: a maturidade do cérebro dessa criança é verdadeiramente angustiante”.

Em Viena estuda durante três anos com Richard Robert. Seu tio leva-a a Paris, onde ingressa no Conservatório de Paris, aprovada nos dois instrumentos, violino e piano. Em 1909, aos 14 anos, obtém o primeiro prêmio no Concurso da União Francesa  para a Juventude, tendo a presidi-lo o notável violinista Jacques Thibaud (1880-1953). Conforme relatos existentes, em 1914 recebe o diagnóstico que a faz desistir do violino, escoliose deformante. No Conservatório estudará piano com o ilustre professor Lazare-Lévy (1882-1964), mestre igualmente de Monique Haas e Solomon, pianistas referenciais. Obteria igualmente um primeiro prêmio no  Conservatório. Ao tocar para Gabriel Fauré (1845-1924) sua composição Thème et variations, a jovem Clara recebe as palavras do autor “não imaginava que minha criação tivesse tanta música!”.

Clique para ouvir, na interpretação de Clara Haskil, a Sonata em si menor, K. 87 de D. Scarlatti:

https://www.youtube.com/watch?v=PYX26WNq6w0

O transcorrer de sua carreira teve muitos obstáculos, o maior deles físico, além da natureza introspectiva. Teve uma existência difícil, que em certo período atingiu inclusive a própria sobrevivência, até o reconhecimento mundial tardio. Durante muito tempo teve o chamado medo do palco, apesar de apresentações acolhidas calorosamente. Sua autocrítica manteve-se severa. Basicamente, de 1920 a 1950 apenas a Suíça a reconhecia na plenitude.

Duas foram suas mecenas, que a ajudaram em período crítico. No período da segunda grande guerra foi instada a se refugiar na Suíça, país que sempre a acolheu com entusiasmo, mesmo em épocas as mais sombrias. Em 1949 obtém a cidadania suíça, fato que facilitou sua ampla mundialização pianística.

Clique para ouvir, na interpretação de Clara Haskil, a Toccata em mi menor de J.S.Bach:

https://www.youtube.com/watch?v=qNx-jc6B8mo

Chama a atenção a atividade intensa, mormente na década final da existência, seus problemas físicos não interferindo na interpretação. Se foi solista sob a batuta dos maiores regentes do período, considere-se que, como camerista, Clara Haskil teve como parceria outros músicos referenciais: o violoncelista Pablo Casals (1876-1973) e os violinistas Eugène Ysaÿe (1858-1931) e Arthur Grumiaux (1921-1986).

Clique para ouvir, na interpretação do duo Haskil-Grumiaux, o Tempo di Minuetto da Sonata  nº 21 para violino e piano:

https://www.youtube.com/watch?v=r8Y1FgfV2fM

Nos estertores de sua existência tive o privilégio de assistir em Paris a uma récita do duo Haskil-Grumiaux. Ao entrar no palco, seria impossível acreditar que aquela senhora extremamente frágil, curvada, de andar lento pudesse  apresentar-se com tal desenvoltura com Arthur Grumiaux em sua plena forma. Ao piano, devido à escoliose seu corpo inclinava-se para posição mais confortável, o que não impedia a execução primorosa. Ficou-me a forte impressão provocada pela condução da frase musical com um controle absoluto da dinâmica e domínio das sonoridades, sem quaisquer excessos.

Arthur Grumiaux escreveria em 1953 à sua mulher: “Meu primeiro concerto com Clara Haskil (você encontrará uma foto anexada) foi magnífico. Tive a maior alegria de tocar com essa artista excelente, grande musicista e… de uma modéstia que muitos deveriam imitar”.

Clique para ouvir, na interpretação de Clara Haskil, a Sonatine de Maurice Ravel:

https://www.youtube.com/watch?v=5MT_Zi5Asyk

Repetidamente insisto na presença de nuvem densa que se acentua sobre os grandes intérpretes do passado. O conhecido violinista francês Augustin Dumay, em entrevista à L’Éducation Musicale, observa: “Há pouco tempo tive uma surpresa com dois jovens pianistas que ganharam concursos internacionais. Não direi seus nomes. Estávamos em um café numa escola renomada e ouvíamos as Variações Abegg de Schumann. Disse a um deles: ‘Vocês conhecem o disco de Clara Haskil dessas Variações? É extraordinário.’, Deu-lhes um branco, um olhar de peixe. Não entendiam o que eu falava e, tendo repetido o nome da pianista, percebi que jamais tinham ouvido falar dela!”

Reverenciada pelas interpretações de criações de J.S.Bach, Scarlatti, Mozart, Beethoven, Schubert, Chopin, Schumann, Ravel…, Clara Haskil permanecerá na História da pianística. Como curiosidade, Clara Haskil aceitou um grande desafio proposto pela rádio francesa: aprendeu em oito dias e solou o Segundo Concerto para piano e orquestra de Brahms op. 83, uma grande proeza, em transmissão direta!!! Cumpriam-se os vaticínios da infância.

Today I write about the Romanian born, Swiss naturalized pianist Clara Haskil (1895-1960), one of the greatest performers of her time. A precociously gifted child, she mastered both piano and violin, being able of playing back by ear a piece of music after listening to it only once, as well as transposing it into any key. Illness (scoliosis) and extreme stage fright kept her from financial success and worldwide recognition camelate in her life. As a soloist, she played under the baton of great conductors and, as a chamber musician, with high-level performers such as Pablo Casals, Eugène Ysaÿe and Arthur Grumiaux. I had the privilege of attending a recital given by the Haskil-Grumiaux duo. I was particularly impressed by Haskil’s shaping of the musical phrase, absolute control of dynamics and mastery of sonorities, finding it hard to believe that such an extremely frail, stooping, slow-moving lady could give such an exquisite performance.