A imagem do rodamoinho interpretada por Dandrieu e Rameau

Rondes francesas, gigas inglesas, tarantelas napolitanas:
tudo o que leva à rotação e ritmo composto
é objeto de sua vertigem.

Vladimir Jankélévitch

Durante 20 anos a gravar na Bélgica, na Capela Saint-Hilarius, do século XI, em Mullem, cidadezinha próxima a Gent – inúmeras vezes mencionada em meus posts -, quase sempre, após os três dias de gravações que se estendiam pelas madrugadas, sempre sob a supervisão do extraordinário engenheiro de som Johan Kennivé, ainda tinha entusiasmo para registrar duas ou três peças mais, que ficaram guardadas em meus arquivos. Há dias encontrei um desses CDs a conter, entre outras músicas, Les Tourbillons, de Jean-François Dandrieu (1682?-1738). Na juventude, nosso ótimo compositor Camargo Guarnieri (1907-1993) me ofereceu uma sua edição dessa peça e de imediato gostei imenso da verve que emana da criação de Dandrieu.

Em blog bem anterior escrevi sobre Rodamoinho (26/09/2009), a ter como ilustração um belo desenho de meu saudoso amigo e artista plástico Luca Vitali. Considerava no texto os rodamoinhos aquáticos que se formam numa simples pia ou nos oceanos, aqueles produzidos pelos devastadores tornados, outros traduzidos nas fotos dantescas tiradas de satélites que acompanham a trajetória do olho de um furacão, ou ainda o lúdico giro de um pião ou a leveza dos movimentos giratórios de uma dançarina. O aparente imobilismo deve-se ao eixo, esse centro que, em determinadas situações da força da natureza, mostra-se aterrador.

A França do século XVIII assistiu à proliferação de suítes para cravo, constituídas de uma série de peças guardando, cada suíte, uma tonalidade básica e que, reunidas, formavam os “livres de pièces de clavecin”. Diversamente das suítes alemãs, que conservavam titulação da própria dança, dir-se-ia “abstrata”, pois impossibilitando o voo da imaginação, mesmo que excelsas na escrita, os franceses cultuavam o descritivismo e davam às peças de uma suíte nomes a lembrar sentimentos, natureza, figuras mitológicas ou outras mais designações. Imprimiam a cada peça integrante das suítes a leitura da imagem, a concorrer para a imaginação verter para o papel pautado a interpretação do visual ou do sentimento. François Couperin (1668-1733), em suas 27 “Ordres” (título dado às suas suítes), escolhe títulos os mais diversos, tantos encantadores.

No ano de 1724 eram publicados em França, coincidentemente, dois livros de peças para cravo: de Jean-François Dandrieu o “Livre de pièces de clavecin, contenant plusieurs divertissements dont les principaux sont Les caractères de la guerre, ceux de la chasse et La fête de vilage”, a conter cinco suítes e, de Jean-Philippe Rameau (1683-1764), o “Livre de pièces de clavecin”, a conter duas suítes. Les Tourbillons de Dandrieu é a sexta da suíte nº 2 e Les Tourbillons de Rameau, a sétima da segunda suíte. As duas têm a forma “rondó”. Para o leitor leigo exemplifico o emprego mais usual da forma rondó entre os cravistas franceses, estrutura constituída por seções. Primeiramente o refrão (A), a seguir a apresentação de seção diferenciada (B), retorno ao refrão (A), exposição de nova seção (C), reapresentação de refrão (A). Há Rondós com mais seções intermediárias. Os dois Les Tourbillons, de Dandrieu e Rameau, têm a mesma estrutura formal, A+B+A+C+A, sendo que a peça ramista apresenta maior variedade de elementos nas seções.

No “Dictionaire Encyclopédique”, publicado em 1841 (Paris, Magen et Comom, pg 1384), tem-se a definição de Tourbillons: “Movimento circular e violento que surge na água ou no vento quando bem agitados. Em filosofia nomeia-se dessa maneira um sistema inventado por Descartes, segundo o qual supõe-se um grande número de partículas muito pequenas de matéria ou camadas esféricas que se movem sobre o mesmo eixo ou de um centro comum. É o grande princípio pelo qual os cartesianos se servem para explicar a maioria dos movimentos de outros fenômenos dos corpos celestes e o mecanismo do universo”.

O nosso interesse maior da inserção dos dois Les Tourbillons vem não apenas da titulação, da data de publicação e ambas em livros de peças para cravo. Se a literatura musicológica é mais econômica em relação a Dandrieu, sobre Rameau há extensos estudos. Sabe-se que em 1706 Dandrieu, cravista e organista, desempenhando essa segunda atividade junto à Église de Saint-Merri, em Paris, integrou o júri a aprovar Rameau como organista da Igreja de Sainte Madeleine, cargo que na realidade Rameau não ocuparia. No caso específico de Les Tourbillons de Rameau, o autor escreveu ao libretista e poeta Houdar de la Motte (1672-1731): “quero dizer, os tourbillons de poeira agitada pelos ventos fortes”.

Conversei com meu dileto amigo Elson Otake, responsável pela introdução de minhas gravações no YouTube nesses últimos anos, e buscamos uma apresentação que também fosse didática. Se formalmente os dois compositores obedecem ao rigor da tradição, a imaginação de cada um dirige-se a concepções distintas, mais homogêneas em Dandrieu e, no caso de Rameau, a tender para uma diversificação dos elementos apresentados. Como sempre, Elson realizou uma montagem muito bem equilibrada.

Clique para ouvir, na interpretação de J.E.M., de Jean-François Dandrieu e de Jean-Philippe Rameau, Les Tourbillons:

https://www.youtube.com/watch?v=begt8k6ErRY

In 1724, composers Jean-François Dandrieu and Jean-Philippe Rameau published each a book of harpsichord pieces. Coincidentally, in the two books there is a piece in rondo form entitled “Les Tourbillons” with the same formal structure, though Rameau’s work presents a greater variety of elements. I’ve recorded both pieces at different moments and in this post I give the link to the video recently posted on YouTube, so that readers can compare them.