Pianista entre os maiores
O ouvinte se preocupa pouco com as intenções do compositor e mais com aquilo que ele ouve.
André Souris (1899-1970)
(“Conditions de la Musique”)
Benno Moiseiwtsch é um dos menos ventilados grandes mestres do piano do passado. Razões existiram. Suas gravações têm chegado ao público com maior frequência nos últimos anos, algo alvissareiro.
Insistentemente tenho mencionado o pouco acesso aos ilustres mestres do passado no YouTube. Em relação a Moiseiwitsch a situação ainda é mais dramática, pois as gerações atuais buscam o novo e as tomadas de imagens a focalizar prioritariamente os trejeitos faciais e as mãos, estas quando voltadas à grande virtuosidade. Dessas constatações, observa-se diferença impressionante entre os acessos aos mestres do século XX e aqueles de uma nova geração de pianistas. A evolução tecnológica torna mais atraentes as gravações atuais, mormente se acompanhadas por vídeos. Contudo, acredito que a essência essencial a encontramos preferencialmente naqueles mestres do passado. Na cinematografia que teve avanços extraordinários sob a égide da tecnologia vê-se que a revisita aos clássicos, tantos deles em branco e preto, continua perene.
Clique para ouvir, na interpretação de Benno Moiseiwitsch, de Chopin, o Noturno em mi menor op. 72 nº 1:
https://www.youtube.com/watch?v=j5FHiiiJKFg
Caracteriza a interpretação de Moiseiwitsch uma liberdade absoluta na condução da frase musical, sem abdicar de um respeito à forma. O repertório extenso de Moiseiwitsch se estenderia basicamente de Beethoven a Ravel, mas a concentração nos românticos é sensível. Das criações de Schumann suas interpretações são maiúsculas. Rachmaninov o considerava seu mais fiel intérprete, num período em que o notável compositor ainda despertava uma certa aversão por parte de puristas.
Clique para ouvir, na interpretação de Benno Moiseiwitsch, de Mendelssohn-Rachmaninov, Scherzo:
https://www.youtube.com/watch?v=RWj7QR1XgCU
Nascido em Odessa, na Rússia imperial, hoje Ucrânia, após estudos preliminares em sua cidade, estudaria em Viena com renomado mestre, Theodor Leschetizky, de 1904 a 1908. Com a família embarca para a Inglaterra e se tornaria cidadão britânico em 1937, país ao qual devotaria afeto intenso. Durante a IIª Grande Guerra daria mais de cem recitais para as tropas inglesas, fato que o levaria a receber a “Order of British Empire” logo após o fim dos conflitos.
Como curiosidade, Winston Churchill o admirava, convidando-o frequentemente para jantar em sua morada, ocasião em que solicitava sempre ao pianista tocar a terceira Balada de Chopin.
As gravações de Moiseiwitsch têm de ser ouvidas com percepção outra. Muitas delas não foram devidamente remasterizadas. Todavia ao escutá-las, depreende-se a qualidade invulgar do intérprete que, segundo escrito de Harold C. Schonberg (The Great Pianists, 1963), crítico do New York Times: “seus recitais afirmaram-no de imediato como um pianista elegante e também ‘natural’, natural no sentido de tocar sem tensão nem esforço, pois o piano era como uma extensão de seus braços e mãos. Moiseiwitsch era sobretudo um intérprete lírico de notável fluidez e sutileza”.
Pertencente a uma era na qual o intérprete se concentrava na obra executada preferencialmente à preocupação com o gestual e o externar emoções através da face, Moiseiwitsch apresentava-se econômico nesses itens e as poucas e desgastadas gravações ao vivo focalizam essa atitude.
Clique para ouvir, de Robert Schumann, três peças que integram a Fantasiestücke op. 12, na interpretação de Moiseiwitsch: Warum?, Grillen e Traumes-Wirren.
https://www.youtube.com/watch?v=rrCdeBncBu0
Das composições não escritas para o piano ou para ele transcritas figuram a obra para cravo interpretada ao piano e a transcrição de criações originais para órgão ou então para orquestra vertidas para o instrumento. Em ambos os casos houve “policiamento” estético durante décadas. No que tange ao cravo e ao piano, o notável musicólogo François Lesure no final dos anos 1990 já escrevia que a atitude dos puristas, entendendo como heresia a interpretação ao piano desse repertório, não tinha absolutamente mais validade e que “o tempo do Barroco integrista passou, não sendo mais o instrumento a assegurar a priori a autenticidade da obra, mas o estilo do intérprete”. Quanto à transcrição, cultuada por compositores e pianistas como Liszt, Godowsky, Busoni, Rachmaninov, Siloti, Kempff, Friedmann e tantos outros, durante determinadas décadas do século XX foi altamente criticada. Também nesse caso cai por terra o banimento que puristas tentaram fazer valer. Alain Rampech, autor de “Les Grands Pianistes” (Paris, Buchet Chastel, 2012), entende que “o purismo é a ciência dos imbecis”. Mencionaria que durante quase quatro anos entre as décadas 1950-1960, período em que estudei em Paris, jamais mestres e colegas falaram em transcrições. A divulgação pós morte de Benno Moiseiwitsch, intérprete de transcrições de Liszt e Rachmaninov, teria sentido uma inaceitável diminuição por motivos imperantes num período em que o próprio repertório poderia se tornar empecilho. Apesar da imagem comprometida pode-se ouvir Moiseiwitsch executar, já quase no final da existência, a magnífica transcrição da abertura da ópera Tannhaüser de Wagner realizada por Liszt-Moiseiwitsch.
Clique para ouvi-la:
https://www.youtube.com/watch?v=tR2F5J3UFI8
Recebi quantidade de mensagens estimulando-me a prosseguir nessa incursão num passado glorioso não devidamente ventilado o que me leva à agradável seleção de mestres pouco cultuados pelas últimas gerações. Apesar da inerente virtuosidade dos pianistas que têm sido temas de meus posts, essa qualidade para a maior parte desses grandes músicos não se apresentava como primordial, sendo o conteúdo musical o basilar objetivo. E é esse fundamento essencial que deveria ser revisitado sempre pelas novas gerações, sob o risco de que com o passar das décadas a tradição se estiole.
Benno Moiseiwitsch, born in Odessa, Russian Empire, presently Ukraine, was one of the great pianists of the twentieth century. He was particularly known for his interpretations of the Romantic repertoire. Rachmaninoff considered him his most faithful interpreter. His recordings have been widely disseminated over time. He settled in England and took British citizenship in 1937.
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