Navegando Posts publicados em janeiro, 2021

Ruptura e novos caminhos de um pianista


A sociedade deveria fazer o mea culpa,
pois ela tende a enclausurar os artistas,
muitas vezes com a cumplicidade
dos parentes, professores e agentes.
Certos pianistas são instrumentalizados,
impelidos ao palco por razões financeiras,
sendo marionetes alcançando lindas realizações artisticamente,
mas que passam à margem de suas vidas.
Estive à margem de minha vida durante trinta anos de carreira.
Hoje, reconciliei-me com o
métier.
não tenho nenhum amor pelo cerimonial da sala de concerto.

François-René Duchâble
(entrevista a Laurent Deburge, 25/09/2016)

Ao longo dos anos a escrever semanalmente nesta coluna, por diversas vezes comentei minha plena idiossincrasia a várias constantes sacralizadas concernentes à carreira de um intérprete. Segui-las é opção individual basicamente majoritária, romper esse elo sem perder a qualidade é reservado a raríssimos.

Creio haver três categorias de intérpretes frente à carreira consolidada e sequencial: aquele que segue a trajetória obedecendo aos ditames sedimentados pela tradição e que, após ter sido aceito internacionalmente pelos méritos, tem em seu empresário o elo que o liga às grandes temporadas musicais do planeta. Será o agente – geralmente nulo em música, mas expert em marketing – que se ocupará de sua presença na grande mídia, submetendo-o ao repertório repetitivo imposto pelas sociedades de concerto; o executante igualmente meritoso, mas que, a atender a apelos diferenciados, apresenta-se de maneira espetaculosa, sendo aceito com entusiasmo, por vezes idolatria, por um público geralmente mais jovem que busca a “renovação”, palavra que se camufla na aparência da tradição; o intérprete que, também pleno de competência, mas farto de toda a maquinaria que se perpetua, empreende caminho até exótico, abandonando a carreira de um passado de sucessos, prosseguindo exitoso na senda da qualidade. Sem uma denominada carreira, haveria uma quarta categoria: intérpretes relevantes que preferem as apresentações menos internacionalizadas, dedicando-se igualmente ao magistério. Conheci imensos artistas dessa estirpe em vários países, tendo assistido a inúmeras récitas realmente hors série, algumas contendo integrais interpretadas em altíssimo nível.

Minha filha Maria Beatriz enviou-me um vídeo do renomado pianista francês François-René Duchâble (1952-) que, entrevistado em Rennes, na Bretanha (2018), narra as razões que o levaram à ruptura com a denominada carreira tradicional. O vídeo em francês, de pouco mais de 30 minutos, sem tradução, expõe com clareza os porquês do consagrado pianista, a certa altura de sua vida, mudar radicalmente de atitude frente à atividade (2003), ação que o levou à guinada mental e material empreendida desde 1998, resultando na destruição de símbolos que certamente o atormentavam. Esse expurgo fez que estabelecesse outros parâmetros para a vida, sem, contudo, abdicar da qualidade pianística, que deveria subsistir imperiosa. Todavia, o modus faciendi do passado não mais seria resgatado. No vídeo, Duchâble expõe algumas das posições já externadas desde a ruptura em entrevistas publicadas por várias vertentes da mídia. Ao final do post insiro o link que leva à entrevista.

A cisão, após carreira consolidada como um dos grandes intérpretes franceses, faz-me lembrar, sob outra égide, da guinada profunda feita pelo extraordinário pianista igualmente de França, Thierry de Brunhoff (1934-), que, igualmente com carreira consagrada, abandonou os palcos em 1974, ingressando na vida monástica na abadia de São Bento em En-Calcat (Tarn), tornando-se monge desde então.

A ruptura de Duchâble tornou-se um acontecimento. Adquire um piano semidestruído (780 E$) e este é transportado por um helicóptero de conhecidos seus, jogado em um lago e mais tarde recuperado, tornando-se “escultura”. Duchâble afirma: “depositei o piano em ato solene de purificação para abandonar três décadas de mentiras. Esse gesto espetacular foi interpretado como ato de um megalomaníaco desesperado, como se eu estivesse no fim da picada. É falso, pois estava em plena forma, tendo dado 78 concertos entre Janeiro e Julho de 2003. Meu desejo era aceder à luz e sair de uma espécie de atoleiro”. A decisão definitiva, longamente gestada, veio após a gravação dos cinco Concertos para piano de Beethoven. Quanto à casaca, ainda hoje um ícone “indispensável” na indumentária masculina de intérpretes, regentes e membros de orquestra, Duchâble a incendeia. Esses signos exteriores serviriam para a consolidação definitiva da nova trajetória. Afirmaria: “O resultado tem sido magnífico. Acedi à alegria de viver cotidianamente. Reconciliei-me com o piano, a música, o palco e o público. Queria viver minha vida. Levar a música aonde ela não chegava”.

Clique para ouvir, de François-René Duchâble, a cadência composta para o primeiro movimento do 3º concerto para piano e orquestra de Beethoven:

(27) La cadence de François-René Duchâche dans le 1er mouvement du 3ème concerto de Beethoven – YouTube

Nas entrevistas, Duchâble afirma que “fui formatado, pela cultura, pela família, neste meio esclerosado da música. Quis romper não com a música, mas com tudo que a cerca”. Sobre as causas que o levaram à ruptura com o modelo tradicional de carreira internacional, nas várias entrevistas e no vídeo de Rennes, elenca cinco: 1ª “As viagens distantes não importando o destino, pois o fato de sair da França representava para mim um terrível sofrimento físico, mormente quando para a atividade musical”; 2ª, “Os ensaios com orquestra ou com conjunto de câmara. A relação dos regentes com os solistas nem sempre é harmoniosa, sendo aqueles nem sempre dispostos. Sobrevoam as partituras e por vezes ensaiam no dia do concerto de maneira superficial. Esses ensaios nunca foram prazerosos para mim. O ambiente é raramente caloroso, mercê da rotina dos músicos e da disparidade de ganho dos membros da orquestra e de um solista, algo que pode trazer um mal-estar”; 3ª, “as luzes das salas de concerto fixas, brancas e tristes. Acreditamos estar sob interrogatório de polícia. A mania de focalizar o teclado, a técnica e a virtuosidade desviam a atenção da música. Ao invés de olharem as mãos ‘que olhem os meus pés!’, dizia Rubinstein”; 4ª, “minha rejeição ao público puramente musical representado por uma mínima parcela da população. A difusão da música clássica nada tem de democrática, mas continua convencional e tantas vezes fonte de tédio, principalmente pela escolha dos programas destinados aos conhecedores. A longa duração das obras é a principal causa do aborrecimento do público neófito”; 5ª “o ‘semideus’ que julgamos ser na sala de concertos fica reduzido a um pequeno estudante submetido ao julgamento do engenheiro de som que assinala defeitos, como um barulho de pedal, e controla a partitura como um membro de júri. Detesto os estúdios, não mais gravo discos, salvo exceções”. As cinco conclusões, repetidamente mencionadas, permaneceriam como o divisor de águas em sua trajetória.

Decisão tomada, Duchâble confessa que outros interesses que passam ao largo, se em carreira internacional feérica, tornaram-se prioridades e elenca: literatura, poesia, filosofia e a natureza. Doravante consideraria a relação em pleno ar, no meio de um lago, recitais nas montanhas, sob as estrelas, em florestas, assim como daria atenção especial às apresentações em hospitais, escolas, prisões e afirmaria “a comunhão com a natureza, a arquitetura e a música”. Prender-se-ia doravante preferencialmente às formas mais breves, evitando nessas apresentações obras de longa duração. Muitas de suas récitas são feitas sem qualquer cachê, tantas delas revertidas às causas sociais e humanitárias. Outras mais em plena natureza.

Clique para ouvir, na interpretação de François-René Duchâble, o terceiro movimento da Sonata “Ao Luar” de Beethoven:

https://www.youtube.com/watch?v=rRd8doBqeF8

François-René Duchâble volta-se ao passado: “Se detestei por vezes o piano há trinta anos atrás, essa relação melhorou com o passar dos anos e hoje ele é o prolongamento natural de meu corpo. Sou feliz por ser pianista, pois isso corresponde ao meu desejo de ser um ‘arquiteto’ da música. Na música, a arquitetura é a primeira coisa que privilegio. Em seguida temos o rigor dos tempi, o fraseado e, após, a beleza do som”. Esportista, ciclista, Duchâble adaptou a uma bicicleta especial um teclado numérico e, logicamente, alto-falantes. Percorre praças e outros logradouros e tem o prazer de tocar frente a público mutante, que pode também se aglomerar.

Creio ser necessário fazer distinções. François-René Duchâble, pianista com carreira consagrada, rompeu com o modus faciendi relativo ao universo ligado à dualidade intérprete-público, compreendendo suas cinco razões mencionadas acima. A se assistir a vídeos posteriores, não há queda alguma da qualidade interpretativa. Sob outro aspecto, em várias oportunidades associa-se ao consagrado diretor e comediante Alain Carré para apresentações onde poesia e arte cênica estão presentes. Estar frequentemente em escolas, hospitais, prisões ou praças, no caso com sua “bicicleta-piano”, evidencia a necessidade de levar a mensagem musical basicamente inexistente nesses espaços.

Clique para ouvir de Manuel de Falla, Dança ritual do fogo, na interpretação de François-René Duchâble com a participação de Alain Carré:

https://www.youtube.com/watch?v=GIWMjL8UJ-c

Lembro ao leitor que François-René Duchâble tem repertório imenso, mormente voltado ao longo período romântico, mas a cultuar igualmente, de maneira menos intensa, J.S.Bach. Mozart, Debussy, Scriabine, Ravel e Rachmaninov. François Servenière, presente em inúmeros blogs como comentarista eclético, teve excertos de sua coletânea Rhythimiques & Repetitives (dois pianos) interpretados e gravados para CD pelo duo Helène Berger e François-René Duchâble. De Servenière gravei várias criações, lançadas em CDs pelo selo Esolem (França), sendo que algumas obras, como os Études Cosmiques e Promenade sur la Voie Lactée, estão no Youtube.

Clique para ter acesso à entrevista de François-René Duchâble mencionada acima:

https://www.youtube.com/watch?v=PX0oi6JGgpA

Clique para ouvir, na interpretação de François-René Duchâble, os Estudos opus 10 e opus 25 de Chopin:

https://www.youtube.com/watch?v=Pqc5E6y7Zoc

This post addresses François-René Duchâble (1952 -), the French pianist with a successful concert and recording career who in 2003 ended his “conventional” career in protest at what he saw as the elitism of the classical music system and a life of endless travels, rehearsals, recording sessions, all of which he felt ruined his existence. He has buried his professional past symbolically in a very curious way, dropping his grand piano into a lake and burning his tuxedo. Feeling reborn, he now tours around France performing casual concerts for small audiences in schools, hospitals, prisons and in the open air, often pedaling with a keyboard specially adapted for a tricycle.

Concertzaal Parnassus – Gent 2009

eu termino a cópia de L’isle joyeuse,
mas ela está ainda fresca (l’isle) e eu avanço dolorosamente.

Claude Debussy
Carta ao seu editor Jacques Durand
(5 de Agosto de 1904)

Entre as obras para piano de Claude Debussy (1862-1918), certamente L’isle joyeuse (1904) é uma das mais emblemáticas. Pelo fato de não pertencer a uma série de composições formando suítes, cadernos ou livros, como os agrupamentos reunindo três ou mais peças, casos específicos das Suítes Bergamasque e Pour le Piano, Estampes, os três cadernos de Images, Children’s Corner, os dois livros de Préludes e os outros dois de Études, e também pelo poder de comunicação emocional, L’isle joyeuse tem sido intensamente visitada por pianistas desde a sua criação e, não poucas vezes, foi escolhida como prova de confronto em concursos de piano. L’isle joyeuse é a mais longa e feérica peça para piano solo de Debussy com os seus 255 compassos e um final intenso e envolvente.

Escrita entre Julho-Agosto, foi publicada pelas Éditions Durand em Outubro de 1904. Em carta a Jacques Durand datada de 12 desse mês, Debussy escreve: “Mas Senhor! Como é difícil executá-la… esta peça me parece reunir todas as maneiras de se atacar um piano, pois ela reúne a força e a garra…se eu ouso falar assim”.

Contrariamente, outra criação que a precede no mesmo ano, Masques, peça sublime, mas sombria, percussiva, obsessiva, que no dizer do biógrafo Marcel Dietschy sinaliza para “máscaras mordazes, fantásticas, apavorantes na branca impassibilidade, disfarce destruindo uma consciência alarmada”. Mencioná-la é preciso, pois àquela altura, após término do casamento com Lilly Texier, Debussy está plenamente envolvido com Emma Bardac, que seria sua segunda esposa. Desse tormento inicial, pois Lilly Texier tentou o suicídio após o rompimento, à desbordante e extrovertida L’isle joyeuse, é possível entender o período de transformação emocional do compositor. No blog “Masques e L’isle joyeuse”, de 22/09/2012, pormenorizo o drama amoroso.

A inspiração de L’isle joyeuse teria vindo do quadro de Antoine Watteau (1684-1721), L’embarquement pour Cythère. A ilha de Jersey, para onde os amantes se dirigiram, ratificaria inspiração e título. Aos 13 de Julho de 1914, Debussy escreveria a Désiré Walter sobre L’isle joyeuse: “Há um pouco do L’embarquement pour Cythère com menor melancolia do que Watteau: reencontramos máscaras da comédia italiana, jovens mulheres cantando e dançando; tudo a terminar na glória do sol poente. Penso poder enviar-lhe amanhã um exemplar com indicações metronômicas, que só serão válidas como ponto de partida”. François Lesure comenta: “esta carta confirma que Debussy devia utilizar essa imagem para os pianistas que o visitavam para interpretar L’isle joyeuse”.

Os cuidados de Debussy para com a interpretação de suas obras ficariam patentes ao querer ouvir previamente um de seus intérpretes, o grande pianista Ricardo Viñez (1875-1943), que faria a estreia de L’isle joyeuse aos 18 de Fevereiro de 1905. Escreve Viñez em seu diário: “Às cinco horas eu fui à casa de Debussy (10 avenue Alphand) para tocar Masques e L’isle joyeuse, atendendo ao seu pedido do dia anterior. Ele ficou persuadido que eu interpretava de maneira perfeita”.

A peça apresenta uma grande variedade rítmica e tratamento virtuosístico amplo. Inúmeros procedimentos técnico-pianísticos são exibidos em L’isle joyeuse, como profusão de trinados, arpejos, acordes, deslocamentos das mãos e profusa utilização da denominada técnica dos cinco dedos. Se esta técnica digital está soberanamente expressa, não se olvide mencionar o emprego  dessa configuração em Pour les cinc doigts, Pour les huit doigts e Pour les dégrés chromatiques, três dos 12 Études para piano compostos em 1915.

Apresentei em 1982 a integral para piano solo de Claude Debussy em quatro recitais no MASP, São Paulo (Setembro-Outubro), e um quinto com obras para piano a quatro mãos e para dois pianos (com minha mulher, Regina Normanha Martins), e posteriormente em Portugal em piano solo. Com o tempo, apresentei inúmeras vezes um tríptico não pensado pelo autor, mas cujas peças evidenciam período de criação próximo e contrastes evidentes que resultam, paradoxalmente, numa harmonia: D’un cahier d’esquisses (1903), Masques e L’isle joyeuse. D’un cahier… foi estreada por Maurice Ravel aos 20 de Abril de 1910.

Quando de meu livro “O som pianístico de Claude Debussy” (São Paulo, Novas Metas, 1982), solicitei ao notável artista e grafiteiro norte-americano John Howard que fizesse as ilustrações. Com maestria criou vários desenhos expressivos, situando as várias fases de Debussy.

Meu dileto amigo Elson Otake, responsável nesses últimos anos pelas entradas de minhas gravações no Youtube, realizou a montagem ora disponível no aplicativo. Dois desenhos de Howard concernentes à L’isle joyeuse figuram na montagem.

Clique para ouvir, de Claude Debussy, L’isle joyeuse na interpretação de J.E.M.:

https://www.youtube.com/watch?v=58P13OaRfxM

Quanto à arte gráfica de Penka Kazandjev, que ilustra a abertura do post, diria que sua criação teve origem após minha interpretação de L’isle joyeuse em Sofia, Bulgária, aos 9 de Setembro de 1996. Penka não apenas idealizou forma ligada à água, como manuscreveu palavras de Leonardo da Vinci referentes à hidráulica.

L’isle joyeuse continua sua trajetória pelo planeta nos recitais de piano. É apenas lamentável que indicações de Debussy concernentes à anima de L’isle… estejam sendo negligenciadas, nessa ascensão vertiginosa em busca de recordes a serem batidos. Lembremos: modéré très souple (compasso 7), un peu cédé, molto rubato seguido de ondoyant et expressif (comp. 67), plus animé (comp. 160) e un peu cedé (cp. 220). No final tem-se, très animé jusqu’à la fin, quando Debussy utiliza o trinado inicial, mas obsessivo, a culminar com trêmulo feérico na região dos agudos, finalizando com um lá retumbante na região mais grave do piano.

Debussy tencionava orquestrar L’isle joyeuse. A troca de mensagens com o regente italiano Bernardino Molinari (Setembro-Outubro 1915) tem como um dos assuntos a orquestração de L’isle…, promessa de Debussy, mas que nunca se concretizou porque a “época turbulenta que atravessamos distanciou-me do projeto”. Após a morte do compositor, Bernardino Molinari orquestraria L’isle joyeuse. Sempre é bom lembrar palavras de Debussy na carta de 6 de Outubro ao seu amigo regente: “raros são aqueles a quem basta a beleza do som”.

L’isle joyeuse (1904) is one of Debussy’s most emblematic pieces. Over the years I have written about it in this space. Thanks to my friend Elson Otake, my live recording of L’isle joyeuse — made on February 14, 2009 in Gent, Belgium — is currently on Youtube.

 

 

“Memórias”

Da margem, eu fazia sinal ao balseiro que conduzia a balsa até a margem oposta, chamando-o com um gesto suplicante.
Pois a Vida, em mim, ardia por partir para a viagem da existência.
Rabindranath Tagore (“Memórias”)

Sem ser a obra mais divulgada do poeta, romancista, compositor, cantor, dramaturgo e pensador Rabindranath Tagore, “Memórias” foi lida durante esta pandemia por motivos até afetivos. Após a morte de meu saudoso pai, José da Silva Martins (1898-2000), herdei uma parte de sua imensa biblioteca, intensamente consultada pelos quatro filhos sob a orientação do progenitor. Entre os livros de autores caros a ele, como Camões, Dante, Cervantes, Descartes, Pascal, La Rochefoucauld, Krishnamurti, Renan, Annie Besant, Maurice Maeterlinck, Guerra Junqueiro, Antero de Quental, Oliveira Martins, João Ameal, Pandiá Calógeras…, fiquei também com as “Memórias” de Rabindranath Tagore. Mui recentemente, ao manejar uma das estantes, ao fundo figurava o livro de Tagore. Ricamente encadernado, causou-me surpresa a dedicatória dos quatro filhos à nossa saudosa mãe, Alay Gandra Martins (1907-1999), por ocasião de seu aniversário aos 16 de julho de 1947. Os quatro, por ordem cronológica, assinaram seus nomes e sobrenomes completos!!! Ofertávamos à mãe dois livros, sendo o outro Anna Karenina, de Leon Tolstoi. Outras épocas, em que a leitura fazia parte essencial do cotidiano.

Rabindranath Tagore foi figura ímpar na cultura da Índia, mais precisamente, bengali. Apesar do pouco conhecimento que temos da cultura hindu, sua obra literária, difundida pelo mundo, teve calorosa recepção no Brasil e recebeu admiração de nossos poetas e escritores, entre os quais a notável Cecília Meireles, que teria sofrido influência em sua lírica vertente. Os acadêmicos Abgar Renault e Guilherme de Almeida foram dois de seus tradutores diretamente do inglês, assim como Ivo Storniolo. Em 1913 Tagore receberia o Prêmio Nobel de Literatura.

Tagore teve inúmeras obras traduzidas para o português. “Memórias” (Rio de Janeiro, José Olympio, tradução de Gulnara Lobato de Morais Pereira, 1946), a abranger a infância e juventude do autor, é particularmente sensível, pois no Brasil uma de suas criações, “As mais belas histórias” editada em 1954, teve até 1970 mais de 100 edições e esteve presente nas escolas primárias do país.

Fixar-se na infância após décadas acumuladas merece os maiores cuidados, à pas du loup, para que a narrativa não adquira lamentável fantasia. Metaforicamente, Tagore expõe no prólogo essa revisita ao longínquo passado: “Quando viajamos por uma estrada, pouca atenção damos ao pouso em que nos detemos à beira do caminho, mas com o cair da noite, antes de encontrar descanso na última hospedaria, se volvemos o olhar para as cidades, para os campos, rios e colinas percorridos na manhã da existência, temos, sob a luz crepuscular, a visão de um conjunto dos mais pitorescos. Foi assim que contemplei meu passado e o que vi me fascinou”.

Nas Memórias, Tagore constrói parte da narrativa numa incessante citação à sua morada. Ao que se depreende, viviam muitos integrantes da família e o poeta teve inúmeros irmãos, louvados em vários segmentos. A casa em que morava deveria ser grande, pois reiteradas vezes Tagore se refere a um terceiro pavimento e a aposentos que não podiam ser visitados pelos menores.

A veia poética é patente desde a infância e aos oito anos já surgiam as primeiras incursões, apesar de confessar nada ter aprendido com seus professores em sala de aula. Contrariamente, desfilam nas Memórias incontáveis mestres particulares, poetas ou amigos com quem aprenderia línguas, literatura e poesia. A eles exibia seus poemas e cantares. Esse aprendizado teve a cumplicidade de seu pai e seu testemunho é claro: “Até seus últimos dias me foi dado observar que ele não criava embaraços à nossa independência”. Leitor inveterado, Rabindranath comenta: “No nosso tempo, líamos de fio a pavio todos os livros que nos caíam nas mãos”. A considerar sua vocação, Tagore, ainda criança-adolescente, ouvia conselhos de mestres e, na ausência de elogios, tinha a convicção de que “nada poderia conter o impulso que me impelia em minhas tentativas literárias”. O convívio com o texto escrito ou com os poemas lidos ou cantados fá-lo, ao redigir as memórias, conceituar o mal maior literário: “O defeito mais grave em literatura não está no estado d’alma que se expressa, mas sim na expressão imperfeita desse estado”.

Tem interesse a posição de Tagore sobre música e palavras, pois foi autor de centenas de cantos. Comenta: “A arte da música vocal tem suas funções especiais e seus traços individuais. Quando associada à palavra, estas não devem prevalecer-se disso para dominar a melodia, da qual são apenas um veículo. Se o canto é belo por si mesmo, que necessidade há de se recorrer às palavras? A música começa onde as palavras acabam. Sua força reside na região do inexprimível, pois só ela pode dizer o que as palavras não dizem.”

Clique para ouvir, de Rabindranath Tagore, Shanganagagane Ghor Ghanaghata, interpretada por Neelanjana Dutta:

https://www.youtube.com/watch?v=cMbWxLUH74M

Desde os tempos de miúdo Rabindranach sente-se um cultor da natureza. O maravilhamento é crescente. Paisagens, céu, rios, árvores e, perene, a interpretação da luminosidade a incidir sobre tudo que observa. De um dos terraços, ou através dos vãos do parapeito da certamente imensa morada da família, contempla e escreve. Visitando seu irmão e cunhada às margens do Ganges, comenta: “Eis-me assim de novo às margens do Ganges! Repetir-se-iam aqueles dias e noites inefáveis, cheios de um langor feliz e de ardente inspiração, junto às águas que corriam espumosas por sob a sombra fresca das matas ribeirinhas. O céu luminoso de Bengala, a brisa do sul, o rio, aquela majestosa indolência, aquele eterno lazer a estender-se de um horizonte a outro, da terra verde ao azul do céu, tudo isso me era oferecido como um banquete de beleza e poesia, onde eu poderia saciar à vontade minha fome e minha sede. Sentia-me como que envolto nos braços de uma mãe”.

A respeito do outono escreve: “É o outono que amadurece meus versos, como amadurece o trigo para o semeador; é o outono que enche meus celeiros de radiosos lazeres e derrama sobre meu espírito, liberto de qualquer fardo e deliciado com as canções e histórias que inventa, uma alegria sem causa”. Nas viagens que realizou à região himalaia, primeiramente com seu pai, após com um de seus irmãos, esta última às colinas do Darjeeling, guardaria lembranças: “Quando do alto das montanhas relancei o olhar em torno de mim, senti, no mesmo instante, que perdera minha nova forma de visão. Todo o mal fora ter julgado que o mundo exterior poderia proporcionar-me maior soma de verdade. O rei dos montes podia varar o firmamento com o seu pico sem ter nada para oferecer-me, ao passo que o divino Semeador de dons podia, num abrir e fechar de olhos, transformar numa resplandecente miragem a mais obscura das ruelas”.

Ainda jovem empreende sua primeira estada na Inglaterra, mencionada várias vezes, não só pela forte influência política e militar em seu país natal, positiva e negativamente, mas igualmente pelos laços de amizade que estabeleceu.

Ao final de “Memórias”, uma crítica ácida relacionada à Índia: “Num país em que o espírito de separatismo impera de modo supremo, e onde mil barreiras ínfimas se erguem entre os cidadãos para dividi-los, esse premente desejo de participar da grande vida coletiva tem por força de ficar insatisfeito”.

Durante muitos anos, Rabindrenath Tagore e Mahatma Gandhi (1869-1948) tiveram debates sobre muitos temas como política, nacionalismo e tantos outros, nem sempre concordantes.

O exemplar de “Memórias” de Rabindranath Tagore, com minha assinatura em 1947 em dedicatória à minha saudosa mãe, repousou nas estantes durante 73 anos, a aguardar a leitura de um dos quatro signatários. Ao lê-lo nesta pandemia, mais evidente ficaria configurada a transformação gigantesca, infelizmente através de processo não favorável, da formação cultural desde a infância. A observação do belo, a permanência da amizade, a prática prazerosa da leitura, o respeito e a admiração pela natureza e o por ele denominado Semeador esvaíram-se nestas últimas décadas, mas ainda há aqueles que cultuam esses valores.

A revisitação às primeiras décadas através do olhar da maturidade revela por parte de Tagore que sua infância, já mergulhada no sonho poético, resultou no notável personagem da literatura da Índia. “Memórias” é livro referencial, que se soma às grandes reminiscências da história da literatura mundial.

When my father died in 2000 I inherited part of his immense library. Among the books, “Memórias” (My Reminiscences) by the Bengali poet, novelist, playwright, composer, singer, painter and  Nobel laureate for Literature (1913) Rabindranath Tagore (1861-1941). I confess I’ve decided to read it by sentimental reasons, after seeing the dedication my three brothers and I wrote to our mother on her birthday in 1947, but the book was definitely worth reading. Written in Tagore’s maturity, these are delightful  memories of childhood in a bygone era. With the wisdom of the past, the author teaches us the importance of appreciating beauty, the value of friendship, the pleasure of reading, the respect for nature, the relevance of a spiritual connection with our surroundings. An absorbing book to be added to the great reminiscences of world literature.