Concertzaal Parnassus – Gent 2009

eu termino a cópia de L’isle joyeuse,
mas ela está ainda fresca (l’isle) e eu avanço dolorosamente.

Claude Debussy
Carta ao seu editor Jacques Durand
(5 de Agosto de 1904)

Entre as obras para piano de Claude Debussy (1862-1918), certamente L’isle joyeuse (1904) é uma das mais emblemáticas. Pelo fato de não pertencer a uma série de composições formando suítes, cadernos ou livros, como os agrupamentos reunindo três ou mais peças, casos específicos das Suítes Bergamasque e Pour le Piano, Estampes, os três cadernos de Images, Children’s Corner, os dois livros de Préludes e os outros dois de Études, e também pelo poder de comunicação emocional, L’isle joyeuse tem sido intensamente visitada por pianistas desde a sua criação e, não poucas vezes, foi escolhida como prova de confronto em concursos de piano. L’isle joyeuse é a mais longa e feérica peça para piano solo de Debussy com os seus 255 compassos e um final intenso e envolvente.

Escrita entre Julho-Agosto, foi publicada pelas Éditions Durand em Outubro de 1904. Em carta a Jacques Durand datada de 12 desse mês, Debussy escreve: “Mas Senhor! Como é difícil executá-la… esta peça me parece reunir todas as maneiras de se atacar um piano, pois ela reúne a força e a garra…se eu ouso falar assim”.

Contrariamente, outra criação que a precede no mesmo ano, Masques, peça sublime, mas sombria, percussiva, obsessiva, que no dizer do biógrafo Marcel Dietschy sinaliza para “máscaras mordazes, fantásticas, apavorantes na branca impassibilidade, disfarce destruindo uma consciência alarmada”. Mencioná-la é preciso, pois àquela altura, após término do casamento com Lilly Texier, Debussy está plenamente envolvido com Emma Bardac, que seria sua segunda esposa. Desse tormento inicial, pois Lilly Texier tentou o suicídio após o rompimento, à desbordante e extrovertida L’isle joyeuse, é possível entender o período de transformação emocional do compositor. No blog “Masques e L’isle joyeuse”, de 22/09/2012, pormenorizo o drama amoroso.

A inspiração de L’isle joyeuse teria vindo do quadro de Antoine Watteau (1684-1721), L’embarquement pour Cythère. A ilha de Jersey, para onde os amantes se dirigiram, ratificaria inspiração e título. Aos 13 de Julho de 1914, Debussy escreveria a Désiré Walter sobre L’isle joyeuse: “Há um pouco do L’embarquement pour Cythère com menor melancolia do que Watteau: reencontramos máscaras da comédia italiana, jovens mulheres cantando e dançando; tudo a terminar na glória do sol poente. Penso poder enviar-lhe amanhã um exemplar com indicações metronômicas, que só serão válidas como ponto de partida”. François Lesure comenta: “esta carta confirma que Debussy devia utilizar essa imagem para os pianistas que o visitavam para interpretar L’isle joyeuse”.

Os cuidados de Debussy para com a interpretação de suas obras ficariam patentes ao querer ouvir previamente um de seus intérpretes, o grande pianista Ricardo Viñez (1875-1943), que faria a estreia de L’isle joyeuse aos 18 de Fevereiro de 1905. Escreve Viñez em seu diário: “Às cinco horas eu fui à casa de Debussy (10 avenue Alphand) para tocar Masques e L’isle joyeuse, atendendo ao seu pedido do dia anterior. Ele ficou persuadido que eu interpretava de maneira perfeita”.

A peça apresenta uma grande variedade rítmica e tratamento virtuosístico amplo. Inúmeros procedimentos técnico-pianísticos são exibidos em L’isle joyeuse, como profusão de trinados, arpejos, acordes, deslocamentos das mãos e profusa utilização da denominada técnica dos cinco dedos. Se esta técnica digital está soberanamente expressa, não se olvide mencionar o emprego  dessa configuração em Pour les cinc doigts, Pour les huit doigts e Pour les dégrés chromatiques, três dos 12 Études para piano compostos em 1915.

Apresentei em 1982 a integral para piano solo de Claude Debussy em quatro recitais no MASP, São Paulo (Setembro-Outubro), e um quinto com obras para piano a quatro mãos e para dois pianos (com minha mulher, Regina Normanha Martins), e posteriormente em Portugal em piano solo. Com o tempo, apresentei inúmeras vezes um tríptico não pensado pelo autor, mas cujas peças evidenciam período de criação próximo e contrastes evidentes que resultam, paradoxalmente, numa harmonia: D’un cahier d’esquisses (1903), Masques e L’isle joyeuse. D’un cahier… foi estreada por Maurice Ravel aos 20 de Abril de 1910.

Quando de meu livro “O som pianístico de Claude Debussy” (São Paulo, Novas Metas, 1982), solicitei ao notável artista e grafiteiro norte-americano John Howard que fizesse as ilustrações. Com maestria criou vários desenhos expressivos, situando as várias fases de Debussy.

Meu dileto amigo Elson Otake, responsável nesses últimos anos pelas entradas de minhas gravações no Youtube, realizou a montagem ora disponível no aplicativo. Dois desenhos de Howard concernentes à L’isle joyeuse figuram na montagem.

Clique para ouvir, de Claude Debussy, L’isle joyeuse na interpretação de J.E.M.:

https://www.youtube.com/watch?v=58P13OaRfxM

Quanto à arte gráfica de Penka Kazandjev, que ilustra a abertura do post, diria que sua criação teve origem após minha interpretação de L’isle joyeuse em Sofia, Bulgária, aos 9 de Setembro de 1996. Penka não apenas idealizou forma ligada à água, como manuscreveu palavras de Leonardo da Vinci referentes à hidráulica.

L’isle joyeuse continua sua trajetória pelo planeta nos recitais de piano. É apenas lamentável que indicações de Debussy concernentes à anima de L’isle… estejam sendo negligenciadas, nessa ascensão vertiginosa em busca de recordes a serem batidos. Lembremos: modéré très souple (compasso 7), un peu cédé, molto rubato seguido de ondoyant et expressif (comp. 67), plus animé (comp. 160) e un peu cedé (cp. 220). No final tem-se, très animé jusqu’à la fin, quando Debussy utiliza o trinado inicial, mas obsessivo, a culminar com trêmulo feérico na região dos agudos, finalizando com um lá retumbante na região mais grave do piano.

Debussy tencionava orquestrar L’isle joyeuse. A troca de mensagens com o regente italiano Bernardino Molinari (Setembro-Outubro 1915) tem como um dos assuntos a orquestração de L’isle…, promessa de Debussy, mas que nunca se concretizou porque a “época turbulenta que atravessamos distanciou-me do projeto”. Após a morte do compositor, Bernardino Molinari orquestraria L’isle joyeuse. Sempre é bom lembrar palavras de Debussy na carta de 6 de Outubro ao seu amigo regente: “raros são aqueles a quem basta a beleza do som”.

L’isle joyeuse (1904) is one of Debussy’s most emblematic pieces. Over the years I have written about it in this space. Thanks to my friend Elson Otake, my live recording of L’isle joyeuse — made on February 14, 2009 in Gent, Belgium — is currently on Youtube.