“Memórias”

Da margem, eu fazia sinal ao balseiro que conduzia a balsa até a margem oposta, chamando-o com um gesto suplicante.
Pois a Vida, em mim, ardia por partir para a viagem da existência.
Rabindranath Tagore (“Memórias”)

Sem ser a obra mais divulgada do poeta, romancista, compositor, cantor, dramaturgo e pensador Rabindranath Tagore, “Memórias” foi lida durante esta pandemia por motivos até afetivos. Após a morte de meu saudoso pai, José da Silva Martins (1898-2000), herdei uma parte de sua imensa biblioteca, intensamente consultada pelos quatro filhos sob a orientação do progenitor. Entre os livros de autores caros a ele, como Camões, Dante, Cervantes, Descartes, Pascal, La Rochefoucauld, Krishnamurti, Renan, Annie Besant, Maurice Maeterlinck, Guerra Junqueiro, Antero de Quental, Oliveira Martins, João Ameal, Pandiá Calógeras…, fiquei também com as “Memórias” de Rabindranath Tagore. Mui recentemente, ao manejar uma das estantes, ao fundo figurava o livro de Tagore. Ricamente encadernado, causou-me surpresa a dedicatória dos quatro filhos à nossa saudosa mãe, Alay Gandra Martins (1907-1999), por ocasião de seu aniversário aos 16 de julho de 1947. Os quatro, por ordem cronológica, assinaram seus nomes e sobrenomes completos!!! Ofertávamos à mãe dois livros, sendo o outro Anna Karenina, de Leon Tolstoi. Outras épocas, em que a leitura fazia parte essencial do cotidiano.

Rabindranath Tagore foi figura ímpar na cultura da Índia, mais precisamente, bengali. Apesar do pouco conhecimento que temos da cultura hindu, sua obra literária, difundida pelo mundo, teve calorosa recepção no Brasil e recebeu admiração de nossos poetas e escritores, entre os quais a notável Cecília Meireles, que teria sofrido influência em sua lírica vertente. Os acadêmicos Abgar Renault e Guilherme de Almeida foram dois de seus tradutores diretamente do inglês, assim como Ivo Storniolo. Em 1913 Tagore receberia o Prêmio Nobel de Literatura.

Tagore teve inúmeras obras traduzidas para o português. “Memórias” (Rio de Janeiro, José Olympio, tradução de Gulnara Lobato de Morais Pereira, 1946), a abranger a infância e juventude do autor, é particularmente sensível, pois no Brasil uma de suas criações, “As mais belas histórias” editada em 1954, teve até 1970 mais de 100 edições e esteve presente nas escolas primárias do país.

Fixar-se na infância após décadas acumuladas merece os maiores cuidados, à pas du loup, para que a narrativa não adquira lamentável fantasia. Metaforicamente, Tagore expõe no prólogo essa revisita ao longínquo passado: “Quando viajamos por uma estrada, pouca atenção damos ao pouso em que nos detemos à beira do caminho, mas com o cair da noite, antes de encontrar descanso na última hospedaria, se volvemos o olhar para as cidades, para os campos, rios e colinas percorridos na manhã da existência, temos, sob a luz crepuscular, a visão de um conjunto dos mais pitorescos. Foi assim que contemplei meu passado e o que vi me fascinou”.

Nas Memórias, Tagore constrói parte da narrativa numa incessante citação à sua morada. Ao que se depreende, viviam muitos integrantes da família e o poeta teve inúmeros irmãos, louvados em vários segmentos. A casa em que morava deveria ser grande, pois reiteradas vezes Tagore se refere a um terceiro pavimento e a aposentos que não podiam ser visitados pelos menores.

A veia poética é patente desde a infância e aos oito anos já surgiam as primeiras incursões, apesar de confessar nada ter aprendido com seus professores em sala de aula. Contrariamente, desfilam nas Memórias incontáveis mestres particulares, poetas ou amigos com quem aprenderia línguas, literatura e poesia. A eles exibia seus poemas e cantares. Esse aprendizado teve a cumplicidade de seu pai e seu testemunho é claro: “Até seus últimos dias me foi dado observar que ele não criava embaraços à nossa independência”. Leitor inveterado, Rabindranath comenta: “No nosso tempo, líamos de fio a pavio todos os livros que nos caíam nas mãos”. A considerar sua vocação, Tagore, ainda criança-adolescente, ouvia conselhos de mestres e, na ausência de elogios, tinha a convicção de que “nada poderia conter o impulso que me impelia em minhas tentativas literárias”. O convívio com o texto escrito ou com os poemas lidos ou cantados fá-lo, ao redigir as memórias, conceituar o mal maior literário: “O defeito mais grave em literatura não está no estado d’alma que se expressa, mas sim na expressão imperfeita desse estado”.

Tem interesse a posição de Tagore sobre música e palavras, pois foi autor de centenas de cantos. Comenta: “A arte da música vocal tem suas funções especiais e seus traços individuais. Quando associada à palavra, estas não devem prevalecer-se disso para dominar a melodia, da qual são apenas um veículo. Se o canto é belo por si mesmo, que necessidade há de se recorrer às palavras? A música começa onde as palavras acabam. Sua força reside na região do inexprimível, pois só ela pode dizer o que as palavras não dizem.”

Clique para ouvir, de Rabindranath Tagore, Shanganagagane Ghor Ghanaghata, interpretada por Neelanjana Dutta:

https://www.youtube.com/watch?v=cMbWxLUH74M

Desde os tempos de miúdo Rabindranach sente-se um cultor da natureza. O maravilhamento é crescente. Paisagens, céu, rios, árvores e, perene, a interpretação da luminosidade a incidir sobre tudo que observa. De um dos terraços, ou através dos vãos do parapeito da certamente imensa morada da família, contempla e escreve. Visitando seu irmão e cunhada às margens do Ganges, comenta: “Eis-me assim de novo às margens do Ganges! Repetir-se-iam aqueles dias e noites inefáveis, cheios de um langor feliz e de ardente inspiração, junto às águas que corriam espumosas por sob a sombra fresca das matas ribeirinhas. O céu luminoso de Bengala, a brisa do sul, o rio, aquela majestosa indolência, aquele eterno lazer a estender-se de um horizonte a outro, da terra verde ao azul do céu, tudo isso me era oferecido como um banquete de beleza e poesia, onde eu poderia saciar à vontade minha fome e minha sede. Sentia-me como que envolto nos braços de uma mãe”.

A respeito do outono escreve: “É o outono que amadurece meus versos, como amadurece o trigo para o semeador; é o outono que enche meus celeiros de radiosos lazeres e derrama sobre meu espírito, liberto de qualquer fardo e deliciado com as canções e histórias que inventa, uma alegria sem causa”. Nas viagens que realizou à região himalaia, primeiramente com seu pai, após com um de seus irmãos, esta última às colinas do Darjeeling, guardaria lembranças: “Quando do alto das montanhas relancei o olhar em torno de mim, senti, no mesmo instante, que perdera minha nova forma de visão. Todo o mal fora ter julgado que o mundo exterior poderia proporcionar-me maior soma de verdade. O rei dos montes podia varar o firmamento com o seu pico sem ter nada para oferecer-me, ao passo que o divino Semeador de dons podia, num abrir e fechar de olhos, transformar numa resplandecente miragem a mais obscura das ruelas”.

Ainda jovem empreende sua primeira estada na Inglaterra, mencionada várias vezes, não só pela forte influência política e militar em seu país natal, positiva e negativamente, mas igualmente pelos laços de amizade que estabeleceu.

Ao final de “Memórias”, uma crítica ácida relacionada à Índia: “Num país em que o espírito de separatismo impera de modo supremo, e onde mil barreiras ínfimas se erguem entre os cidadãos para dividi-los, esse premente desejo de participar da grande vida coletiva tem por força de ficar insatisfeito”.

Durante muitos anos, Rabindrenath Tagore e Mahatma Gandhi (1869-1948) tiveram debates sobre muitos temas como política, nacionalismo e tantos outros, nem sempre concordantes.

O exemplar de “Memórias” de Rabindranath Tagore, com minha assinatura em 1947 em dedicatória à minha saudosa mãe, repousou nas estantes durante 73 anos, a aguardar a leitura de um dos quatro signatários. Ao lê-lo nesta pandemia, mais evidente ficaria configurada a transformação gigantesca, infelizmente através de processo não favorável, da formação cultural desde a infância. A observação do belo, a permanência da amizade, a prática prazerosa da leitura, o respeito e a admiração pela natureza e o por ele denominado Semeador esvaíram-se nestas últimas décadas, mas ainda há aqueles que cultuam esses valores.

A revisitação às primeiras décadas através do olhar da maturidade revela por parte de Tagore que sua infância, já mergulhada no sonho poético, resultou no notável personagem da literatura da Índia. “Memórias” é livro referencial, que se soma às grandes reminiscências da história da literatura mundial.

When my father died in 2000 I inherited part of his immense library. Among the books, “Memórias” (My Reminiscences) by the Bengali poet, novelist, playwright, composer, singer, painter and  Nobel laureate for Literature (1913) Rabindranath Tagore (1861-1941). I confess I’ve decided to read it by sentimental reasons, after seeing the dedication my three brothers and I wrote to our mother on her birthday in 1947, but the book was definitely worth reading. Written in Tagore’s maturity, these are delightful  memories of childhood in a bygone era. With the wisdom of the past, the author teaches us the importance of appreciating beauty, the value of friendship, the pleasure of reading, the respect for nature, the relevance of a spiritual connection with our surroundings. An absorbing book to be added to the great reminiscences of world literature.