Romain Rolland – a longa gestação de um romance

Pareceu-me sempre que a Arte
deveria proporcionar essa alegria,
necessária para suportar a vida cotidiana,
tão dura para uns, tão morna para outros.
Todavia, quanto tempo será necessário
para que transpareça, através de um acorde,
a ideia da bondade e do desinteresse que o inspira.
Claude Debussy
(carta a Romain Rolland, 11/05/1904)

Indubitavelmente é fora de dúvida
que a considerável obra de Romain Rolland
só pode ser simpática a todos os artistas,
em particular, aos músicos.
Claude Debussy
(carta a Arthur Cantillon, Fevereiro, 1913)

Encontrei meu amigo Marcelo a fazer compras no supermercado próximo à minha morada. De imediato diz ter ouvido o primeiro movimento da Sonata Hammerklavier na interpretação de Désiré N’kaoua e que gostara imenso da criação de Beethoven, apesar de, como leigo, entendê-la bem “abstrata”, conforme afirmou. Marcelo observou que, pela segunda vez em pouco tempo, insiro epígrafes de Romain Rolland. Diz haver lido anos atrás um volume de seu famoso romance “Jean-Christophe”. A extensão da obra impediu-o de prosseguir a leitura. Perguntou-me se eu já havia lido o romance. A resposta afirmativa e o breve diálogo despertaram em mim o interesse de abordar sucintamente o monumental romance de Romain Rolland, o que agradou a Marcelo.

Romain Rolland (1866-1944) foi uma das figuras mais brilhantes de sua época. Francês, foi escritor, romancista, dramaturgo, ensaísta, biógrafo, memorialista e musicógrafo. Humanista, não poucas vezes teve suas posições entendidas como não patrióticas, mormente durante a primeira grande guerra, o que lhe valeria dissabores. Intelectuais mais nacionalistas viam-no como tendente a observar o conflito de forma não engajada e dúbia aos interesses da França. As posições, que se tornaram públicas, fizeram inclusive com que a Academia da Suécia, que lhe atribuíra o Prêmio Nobel de literatura em 1915, sensível às pressões, somente entregasse o prêmio desse ano em 1916.

Dividirei o tema “Jean-Christophe” em dois posts, o primeiro a salientar a importância da “Introdução” tardia do livro, redigida pelo autor em Villeneuve-du-Léman na Páscoa de 1931, e o segundo a comentar as impressões que me calaram fundo em ambas as leituras, tão espaçadas no tempo. “Jean-Christophe” está dividido em 10 tomos, publicados de 1904 a 1912 na formatação de feuilleton (romance em série) pela revista Cahiers de la quinzaine, sendo que uma segunda edição do primeiro tomo, L’Aube, foi impressa pela Librairie Paul Ollendorf de Paris (1906).

A “Introdução” revela uma das características do pensar de Romain Rolland, o humanismo. À sociedade do espetáculo em que se vive nessas últimas décadas, as palavras introdutórias para uma edição tão distante (1931) da primeira publicação podem parecer anacrônicas. O narrador tem agora consciência da trajetória vitoriosa de seu herói pelo mundo, através de tantas traduções de seu livro. O apego à figura por ele criada se metamorfoseia e, nomeando-se “pai”, se a visse “com os costumes os mais variados” teria dificuldade de reconhecê-lo. Romain Rolland, ao revelar identidade plena com o personagem consagrado pelos leitores através das décadas e seu afeto por Jean-Christophe do berço à morte, fato reiteradas vezes mencionado, expõe-se por inteiro: “O Jean-Christophe que eu carregava em mim, como uma mulher o seu fruto”. Tão distante da marcante dedução do notável escritor português Guerra Junqueiro (1850-1923), que, no prefácio à segunda edição de “A velhice do Padre Eterno”, escreveria: “Um livro atirado ao público equivale a um livro atirado à roda. Entrego-o ao destino, abandono-o à sorte. Que seja feliz é o que eu lhe desejo; mas, se não o for, também não verterei uma lágrima”.

Romain Rolland confessaria, à guisa de introdução: “O pensamento de Jean-Christophe abrange mais de vinte anos de minha vida. A primeira ideia data da primavera de 1890, em Roma. As últimas palavras escritas datam de Junho de 1912. Encontrei esboços de 1888, enquanto aluno da École Normale Supérieure de Paris. Christophe me era uma segunda vida, escondido aos olhos exteriores, onde eu retomava contato com o meu eu mais profundo”. Seria a partir de 1900 que, “…inteiramente livre e em solilóquio com meus sonhos, minhas armas da alma, lancei-me resolutamente sobre a torrente”. A primazia pelo projeto é notória, ao afirmar: “Jamais uma obra foi tão totalmente organizada no pensamento como Jean-Christophe, antes que as primeiras palavras fossem jogadas sobre o papel”, fato que ocorreria aos 20 de Março de 1903. Se o herói já fazia parte do pensar de Romain Rolland, não mais o abandonaria durante a longa gestação: “Em dez anos, nenhum dia passou sem a sua presença. Ele não tinha necessidade de falar. Ele estava lá”. Romain Rolland tem consciência de que Jean-Christophe tem sua trajetória “numa época de decomposição moral e social na França”. Elenca a seguir as condições de um chefe. Jean-Christophe é moldado para a missão de herói, mas seria ledo engano entendê-lo como figura mitológica. Para Romain Rolland, como definira em relação a Beethoven: “Chamo de heróis somente aqueles que foram grandes pelo coração”. A contemporaneidade de Beethoven com o personagem idealizado no romance estaria presente mormente nos primeiros anos de Jean-Christophe, fixados nos três primeiros livros (L’Aube, Le Matin, L’Adolescent), pois nos outros sete adquire seu papel pessoal pela história e se universaliza. Contudo, seria possível apreender Beethoven a “sobrevoar” em tantas passagens nos livros subsequentes. Romain Rolland descreve o pós-edição: “Jean-Christophe não é mais, em nenhum país, um estrangeiro. Das terras mais distantes, das raças as mais diversas, da China, do Japão, da Índia, das Américas, de todos os povos da Europa chegaram homens dizendo: ‘Jean-Christophe é nosso. Ele é meu. Ele é meu irmão. Ele é meu’ “. Em 1883, no alvorecer das ideias visando à edificação do herói, já apregoava a insistência, a repetição como necessidade de ser compreendido ao dar significado ao personagem: “E se, para melhor penetrar seu pensamento, será útil que você repita as mesmas palavras, repita, insista, não busque outras palavras! Que nenhuma palavra seja perdida! Que seu verbo seja ação! São princípios que eu reivindico ainda hoje contra a estética contemporânea”.

Romain Rolland confessa ter escrito notas, fragmentos esboçados, encaminhando Jean-Christophe, nos livros finais, para a difícil senda dos heróis revolucionários partícipes dos movimentos que explodiram na Alemanha e na Polônia. Abortou a ideia de estender a saga, mas acredita não ter colocado um ponto final na narrativa. “O fim de Jean-Christophe não é um fim, é uma etapa. Jean-Christophe não acaba. Sua morte é um momento do Ritmo, uma expiração do grande sopro eterno… Ele terá morrido cem vezes, ele renascerá sempre, ele combaterá sempre, ele é e continuará o irmão dos homens e das mulheres livres de todas as nações, que lutam, que sofrem e que vencerão”. E como última frase, o autor relembra em 1931 seu herói: “Um dia eu renascerei, para novos combates…”.

O fervor de Romain Rolland pode ser sintetizado em seu testemunho: “Eu não escrevo uma obra literária. Eu escrevo uma obra de fé”.

Today I write about the French novelist, playwright, musicologist, essayist and great humanist Romain Rolland (1866-1944) — Nobel prize winner for Literature in 1915 — and his masterpiece, the ten-volume epic novel “Jean Christophe” (published from 1904 to 1912), in which the author expresses his views on music, social matters and his love of mankind. I will divide the post into two parts, the first stressing the importance of the belated introduction to the book (only written in 1931); the second commenting on the deep impressions the book made on me after two reads.