A mente soberana a sobrepor-se ao  gesto mediático

Uma pequena mostra de bravura,
possivelmente numa passagem
que não custou ao pianista
mais de dez minutos de prática,
transformará muitos dos ouvintes irrefletidos
numa multidão que ruge.
Isto é, naturalmente,
muito angustiante para o artista sincero,
que se esforça por se estabelecer pelo seu verdadeiro valor.
Wilhelm Backhaus

Deu-se no segundo lustro dos anos 1950 o recital que tive o privilégio de ouvir, apresentado pelo ilustre Wilhelm Backhaus no Theatro Municipal de São Paulo. Independentemente da récita impecável, ficou-me igualmente a lembrança de seu primeiro contato com o teclado, pois realizou “aquecimento” em poucos segundos, através de alguns acordes e arpejos, numa preparação “tonal”, para logo a seguir interpretar com maestria a Sonata nº 25 em Sol Maior, op. 79 (alla tedesca), de Beethoven. Tardiamente soube que era hábito do pianista esse contato inicial com o teclado em todas as suas apresentações pela Europa e Américas.

Wilhelm Backhaus nasceu em Leipzig e, após início pianístico com sua mãe, de 1891 a 1899 estudou no Conservatório de Leipzig com o mestre Alois Reckendorf (1841-1911). Recebeu igualmente aulas particulares com o notável Eugen D’Albert (1864-1932), que o influenciaria. Sua primeira turnê se dá em 1900. Nos próximos anos faria inúmeras apresentações na Inglaterra e já nesse período seu repertório era imenso. Em 1905 ganha o primeiro prêmio no Concurso Anton Rubinstein, sendo que a segunda láurea foi atribuída a Béla Bartók. Sua carreira se consolida e suas apresentações tiveram a mais efusiva recepção. Em 1930 fixa morada em Lugano, Suíça, e recebe a nacionalidade do país. Como professor, lecionou na Inglaterra e nos Estados Unidos. Morreria em Villach, na Áustria, durante turnê.

Clique para ouvir, de J.S.Bach, Prelúdio e Fuga nº 39 em Sol Maior, do Cravo bem Temperado (vol. 2), na interpretação de Wilhelm Backhaus (1958):

https://www.youtube.com/watch?v=pN52LYFRAkc

A carreira de Backhaus desenvolver-se-ia igualmente como camerista, requisitado que foi para inúmeras apresentações. Realizou diversas gravações, inclusive duas versões, em períodos diferentes, das 32 Sonatas de Beethoven. J.S.Bach, Mozart, Schubert, Brahms e, logicamente, Beethoven foram alguns de seus compositores mais frequentados. Foi o primeiro pianista a gravar o Concerto para piano e orquestra de Grieg (1913) e os 24 Estudos de Chopin (1928). Backhaus mantém a primazia de ter sido o primeiro pianista alemão com carreira internacional.

Alguns de seus conceitos sobre a performance pianística têm real interesse. Alheio à superficialidade, Backhaus se posiciona com firmeza: “O público recusa-se a admirar qualquer coisa que possa ser feita por uma máquina, e anseia por algo mais fino, mais subtil, mais intimamente aliado à alma do artista”. Considere-se que, nesta civilização mediática exacerbada, a busca por recordes é evidente. Também nessa linha de raciocínio, Backhaus comenta: “Reiteradas vezes me perguntaram: ‘Qual é a composição mais difícil?’. A pergunta diverte-me sempre, mas suponho que é muito humana e está de acordo com o desejo de medir o edifício mais alto, a montanha mais alta, o rio mais longo ou o castelo mais antigo. Por que é que um tal prêmio é baseado na mera dificuldade? Estranho que nunca ninguém julgue necessário perguntar: “Qual é a peça mais bela?”.

Clique para ouvir, de Beethoven, a Sonata nº 25 em Sol Maior, op. 79, na interpretação de Wilhelm Backhaus (1951):

https://www.youtube.com/watch?v=tUb3EszM23c

Backhaus observa, em outro direcionamento, um Concerto de Mozart, obra não transcendental sob o aspecto técnico-pianístico, mas que oferece transcendência outra: “Tocar bem um concerto de Mozart é uma tarefa colossalmente difícil. O pianista que trabalhou horas a fio para conseguir uma interpretação tão próxima quanto possível da sua concepção de perfeição jamais receberá  crédito pelo seu trabalho, à exceção de alguns conhecedores, muitos dos quais passaram por uma experiência igualmente exigente”. Tenha-se em conta essas observações por parte de um pianista que realiza gravação extraordinária da virtuosística Rapsódia nº 2, de Franz Liszt.

Clique para ouvir, de Franz Liszt, a Rapsódia nº 2, na interpretação de Wilhelm Backhaus:

https://www.youtube.com/watch?v=jmDz4DumxNs

Inúmeras vezes comentei neste espaço a respeito do gesto do intérprete. Mais e mais, nessa civilização do espetáculo sempre em ascendência, média e jovem gerações se adaptaram à era das câmaras e refletores. Wilhelm Backhaus simboliza o oposto mais veemente à gestualidade  Essa postura no palco teria sido responsável por comentários de um público afeito ao “espetáculo”, a considerar sua interpretação sem expressão.  Creio que raríssimamente essa distinção entre a transmissão única da música e a cênica-musical se apresente tão evidente. Faz pensar. Fantasia, imaginação, cuidado absoluto com a condução da frase musical, o respeito à tríade de uma interpretação, ou seja, agógica, dinâmica e acentuação, estão presentes em todas as suas interpretações. O vídeo da execução do Concerto nº 4, de Beethoven, bem evidencia que tudo está na mente soberana do pianista e a impassibilidade das feições de Bachkaus estaria a indicar que seu único objetivo é a transmissão integral da mensagem musical e não a sua transmissão teatral. A mente arquivadora do acervo a transmitir à ponta dos dedos unicamente o fluxo musical, sem a mínima possibilidade de que a visualização priorize a distração da essência essencial, a música. Faz-me lembrar das experiências de Alexandra David Néel (1868-1969) e de Paul Brunton (1898-1981), que, em suas estadias na cadeia Himalaia, narram em épocas diferentes a concentração e o pensamento único (vide blog “Leituras sobre o Himalaia” [ I ], 07/12/2007).

Clique para assistir ao vídeo do Concerto nº 4, de Beethoven, na interpretação de Wilhelm Backhaus, sob a regência de Karl Böhm a conduzir a Orquestra Sinfônica de Viena (1967), uma das mais extraordinárias performances dessa composição basilar:

https://www.youtube.com/watch?v=WP3OfvqpgCw

Wilhelm Backhaus, um dos Grandes pianistas da História. Seu legado permanece.

Wilhelm Backhaus was one of the greatest examples of tradition, in its full sense, in piano interpretation. Austere and perfectionist, while still being poetic, Backhaus had an immense repertoire. It is impressive his absolute absence of superficiality and gestures with the purpose of seducing the audience with his dazzling performances.