Pianista britânico referencial

É um inútil desperdício de tempo celebrar a memória dos mortos
se não nos esforçamos em exaltar as obras que deixaram.
Monteiro Lobato

Solomon Cutner, como pianista conhecido apenas por Solomon, nasceu e faleceu em Londres. Foi um dos notáveis intérpretes que nos visitaram no primeiro lustro dos anos 1950. Tive o privilégio de assistir ao seu recital. Ficaria gravada na memória do jovem estudante a profunda concentração de Solomon, sem fazer qualquer concessão. Se nos lembramos é pelo fato de que Solomon, como alguns outros já mencionados em blogs anteriores, causou no adolescente forte impressão.

São raros aqueles pianistas que tiveram trajetórias singulares, com interrupções e percalços. Solomon foi um deles. Filho de um modesto alfaiate, iniciou cedo os estudos pianísticos com uma das alunas de Clara Schumann, Mathilde Verne. Sua carreira pode ser entendida em duas fases distintas. Inicialmente, a do menino prodígio, um dos mais destacados do período, pois aos oito anos apresentou-se interpretando o Concerto nº 1 de Tchaikovsky no Queen’s Hall em Londres. Arthur Rubinstein esteve presente ao evento. Após intensa atividade, por volta dos 15 anos chegou a rejeitar o instrumento. Aconselhado pelo maestro Sir Henry J.Wood dedicou-se durante anos a buscar o aperfeiçoamento. Na França estudaria com Lazare Lévy e Marcel Dupré e, em Londres, com Dame Myra Hess. Retornaria aos palcos em 1923, adotando desde então o nome artístico Solomon.

Principalmente após sua primeira apresentação nos Estados Unidos, em 1926, empreenderia carreira extraordinária, que o levou a percorrer os continentes e ser saudado como um dos grandes mestres do teclado. Singraria carreira triunfante até 1956. Nesse ano, estava em período de gravação da integral das Sonatas e Concertos para piano de Beethoven quando, durante férias na França, vem a sofrer um derrame, que resultou na paralisia de seu braço direito, dificuldade na fala e outras decorrências pertinentes ao mal, o que o fez interromper todas as apresentações. Viveria mais 32 anos. Durante esse longo período, recebeu o título de “Commander of the Order of the British Empire”.

Clique para ouvir, de Beethoven, o terceiro movimento da Sonata Appassionata, op. 57, na interpretação de Solomon:

https://www.youtube.com/watch?v=wqYJJeyHe7A

Ciclos com as Sonatas e os concertos de Beethoven e interpretações de obras de Mozart, Schubert, Chopin, Schumann, Brahms e Debussy tornaram-no pianista referencial. Curiosamente, recusou-se a gravar os Concertos para piano e orquestra de Beethoven com o maestro Wilhelm Furtwängler, mercê de suas ligações com o nazismo. Atuou igualmente como camerista, tendo formado trio com os insignes violinista Zino Francescatti e celista Pierre Fournier.

Solomon primou em suas execuções (tantas delas no Youtube) pelo respeito ao pensamento do autor. Ouvi-lo é apreendermos a dimensão de uma leitura a mais próxima do que está expresso na partitura. Solomon possuía uma virtuosidade extraordinária, que em nenhum momento esteve a serviço da expansão do ego. É lógico que há a plena revelação da personalidade do intérprete, mas a obediência às propostas do compositor mostra-se sempre bem expressa por Solomon. Rubatos exagerados, virtuosidade pela virtuosidade, gestual pour épater les bourgeois inexistem. Sob outro aspecto, suas interpretações se caracterizam pela expressão lírica personalíssima, igualmente sem quaisquer arroubos. Sua leitura da célebre Sonata Ao Luar op. 27 nº 2 de  Beethoven é exemplo maiúsculo dessa apreensão inusitada expressa no Adagio inicial, em que realiza esse andamento ainda mais lento. É extremamente mais complexo executá-lo sob esse enfoque, Largo, na realidade. Com absoluta maestria, Solomon obtém uma interpretação inusitada, onde prevalece a condução homogênea, a depreender uma poética singular, que enfatiza o caráter etéreo desse aclamado movimento.

Clique para ouvir, de Beethoven, a Sonata Ao Luar, op. 27 nº 2, na lendária interpretação de Solomon (1945):

https://www.youtube.com/watch?v=HK__kS2R3-w

Schubert, um de seus eleitos, está sensivelmente expresso na interpretação de um dos mais frequentados Improvisos do compositor.

Clique para ouvir, de Schubert, o Improviso op. 90, nº 4 (D.899), na interpretação de Solomon:

https://www.youtube.com/watch?v=IOv5pGKlNYk

Chopin também foi um de seus eleitos. Sua interpretação da 4ª Balada do compositor bem demonstra sua identificação com a obra do autor. A compreensão estilística, a interpretação pessoal e jamais arbitrária e o lirismo inerente estão presentes. Uma das mais expressivas gravações dessa criação.

Clique para ouvir, de Chopin, a 4ª Balada em fá menor op. 52, na interpretação de Solomon (1946):

https://www.youtube.com/watch?v=YyUWOun-OP4

Inusitada foi a atitude de Solomon ao gravar, de Scriabine (1872-1915), um dos mais importantes Concertos para piano e orquestra do período (1896-1897). Existiam algumas gravações referenciais, mormente por pianistas russos, mas Scriabine ainda não era tão frequentado como seu coetâneo Rachmaninov.

Clique para ouvir, de Alexander Scriabine, o Concerto para piano e orquestra em fá sustenido menor, op. 20, na interpretação de Solomon:

https://www.youtube.com/watch?v=1aXWhmLt0ew

Nos já tantos justos e merecidos blogs a reverenciar os grandes mestres do piano do século XX, tantos deles esquecidos, rememorarmos Solomon é saudar sempre o respeito à tradição interpretativa. Estou a me lembrar de inúmeras vezes, quando na vida acadêmica, ter perguntado a alunos sobre notáveis pianistas de antanho. O silêncio indicava o absoluto desconhecimento desses artistas quase esquecidos. Ao mencioná-los, verificava que as reações eram de indiferença. E a ausência de ao menos curiosidade era evidência de que algo sério já se adensava no horizonte. Logicamente exceções existiram, mas concentravam-se no seleto compartimento das raridades.

Dame Myra Hess, tema do blog precedente, e Solomon são dois dos notáveis pianistas ingleses entre outros mais, como Clifford Curzon e Gerald Moore e, de uma geração mais recente, John Ogdon, também já falecido. Ouvi-los é compreender a importância de uma tradição pianística não tão divulgada como a de outros países do hemisfério norte. Grandes mestres.

The English pianist Solomon was one of the piano icons of the 20th century. He had two distinct phases in his career, which ended abruptly after a stroke in 1956, and he has lived another 32 years without being able to practice the art that made him famous.