Um dos nomes referenciais do piano no século XX

A música expulsa o ódio daqueles que não têm amor.
Ela traz paz aos que não têm repouso,
consola os que choram.
Aqueles que se perderam encontram novos caminhos,
e os que recusam tudo encontram confiança e esperança.
Pablo Casals (1876-1973)

Estou a me lembrar da adolescência e de impactos que marcaram. Meu saudoso pai era um apaixonado pela arte da fotografia, tirava-as em abundância e revelava-as em um pequeno quarto escuro para essa finalidade na edícula de nossa morada. Tinha todo o material para esse mister. Igualmente tinha o maior cuidado com um projetor de películas, marca RCA. Sua paixão por documentários em 16mm era proverbial. Adquiria constantemente filmes de grandes   intérpretes em execuções referenciais. Convidava amigos apreciadores e assistíamos a esses filmes. Seguia-se o ritual, o pai armava a tela, retirava o grande rolo guardado em uma caixa de metal e o inseria no projetor, posicionava-o, apagava as luzes e o maravilhamento se dava, apesar do barulho da aparelhagem. Ficaram-me guardadas no de profundis as execuções dos notáveis violoncelistas Pablo Casals e Emmanuel Feuermann, do duo pianístico Vronsky & Babin, do violinista Jascha Heifetz, dos pianistas Arhur Rubinstein, Wilhelm Kempff, Alfred Cortot e Dame Myra Hess, entre tantos outros mestres excelsos. No que concerne a Dame Myra Hess, a insigne pianista inglesa interpretava sua transcrição para piano do consagrado coral de J.S.Bach, Jesus, alegria dos homens, e a Sonata Appassionata nº 23, op. 57, de Beethoven. Por várias vezes assistimos a esse filme. Ao ouvir o coral de Bach, fascinou-me sua execução e pedi ao meu pai para adquirir a partitura que, estudada, permanece em meu repertório desde aquele período encantatório, gravando-a na Bélgica em 2004 e presentemente postada no Youtube.

Clique para ouvir, de J.S.Bach-Hess, o coral Jesus, alegria dos homens, na excelsa interpretação de Dame Myra Hess:

https://www.youtube.com/watch?v=yaCg_nC2W5s

Nascida em Londres, iniciou aos cinco anos os estudos pianísticos e aos 17 interpretava o 4º Concerto de Beethoven e o 4º de Saint-Saëns, sob a regência do renomado Sir Thomas Beecham. Impressiona a sua atividade, pois meses a seguir, em 1908, apresenta recitais diferenciados e o  Concerto nº 1 de Liszt. Tendo interpretado nesse período um recital com as últimas Sonatas de Beethoven, recebe crítica não tão laudatória e doravante se concentraria em suas Sonatas e Concertos, o que a fez ser reconhecida ao longo das décadas como uma importante executante do mestre alemão. Após turnês pela Europa, estreia em 1922 em Nova York, tendo recepção calorosa como recitalista, assim como camerista em turnê pelos Estados Unidos.

Clique para ouvir, de Chopin, a Valsa nº 1 em Mi bemol op.18, na interpretação de Dame Myra Hess:

https://www.youtube.com/watch?v=wjphsoYN0QQ

Myra Hess foi não apenas uma notável pianista, mas também uma resistente, a desempenhar através da música missão relevante durante os anos sombrios da IIª Grande Guerra.

Impressiona o seu destemor e voluntária participação durante a guerra, pois durante mais de seis anos Myra Hess esteve à testa de programação na National Gallery, na Trafalgar Square. Iniciado o conflito, interrompe turnê nos Estados Unidos e retorna à Inglaterra e,  após visitar a National Gallery, cujas telas haviam sido retiradas por precaução, propôs concertos prontamente aceitos. Na sua primeira apresentação, o numeroso público contornava a rua da famosa galeria. Participaria de aproximadamente 150 apresentações, num total próximo de 2.000, sempre à hora do almoço, mercê dos bombardeios nazistas durante as noites. Muitos artistas se prontificavam a exibir-se nas récitas com cachês diminutos. Frise-se que Myra Hess, em plena guerra frente aos alemães, privilegiaria o repertório austro-germânico por considerar que a arte está acima de quaisquer outras ideologias ou mais considerações. Temendo bombardeios diurnos, concertos eram transferidos para uma sala menor. Público das mais diversas classes acorriam às récitas. Um documentário breve e histórico de 1942, “Listen to Britain” (realizado por Humphrey Jennings e Stewart McAllister)), em pleno período dos ataques aéreos sobre Londres, apresenta Dame Myra Hess em curta passagem a interpretar o início do Concerto nº 17 em Sol Maior de Mozart, K 453, com a presença da Rainha Consorte da Inglaterra (a partir dos 14’00”):

https://www.youtube.com/watch?v=Nq1UqU2u1hs

Dame Myra Hess, assim notabilizada, receberia em 1941 o título de “Dame Commander of the Order of the British Empire”, concedido pelo rei George VI mercê de seu empenho cívico nos tempos sombrios da IIª Grande Guerra. Doravante incorporaria o título ao seu nome artístico. A National Gallery preserva a memória da pianista em dia a ela dedicado. Deve-se a Dame Myra Hess a perpetuação dos concertos ao meio-dia, ora presentes em quase todo o mundo.

Continuaria a carreira brilhante, preferenciando salas pequenas, mais intimistas e menos estressantes e perpetuando autores austro-germânicos: Mozart, Beethoven (seu preferido), Schubert, Schumann… Inglaterra, Países Baixos e Estados Unidos, preferencialmente, acolheriam com entusiasmo suas apresentações.

Como camerista, atuou com alguns dos mais respeitados intérpretes da história: violinistas Joseph Szigetti, Fritz Kreisler e o celista Emanuel Feuermann. Apesar de não ter legado um número expressivo de gravações, tornou-se lendária a interpretação do Quinteto de Schumann op. 44 com os insignes Isaac Stern, Alexander Schneider, Milton Thomas e Paul Tortelier.

Em Setembro de 1961 faria sua última apresentação no Royal Festival Hall de Londres. Retirar-se-ia, continuando no entanto a orientar. Entre seus alunos, Solomon Cutner e Stephen Kovacevith.

Faleceu de ataque cardíaco aos 25 de Novembro de 1965. Uma placa homenageia a grande intérprete e figura heroica no 48 Wildwood Road, em Londres.

Fluíram mais de seis décadas daquele período mágico em que, entre tantos luminares, ouvi e vi em filme de 16mm a notável Dame Myra Hess a interpretar transcrição de J.S.Bach e a Sonata Appassionata de Beethoven. Ao ouvi-la hoje, o impacto não é menor. Uma das pianistas excelsas que buscava prioritariamente preservar a tradição pianística. Nenhum exagero na condução das frases, acabamento impecável e um respeito íntegro à forma musical. Uma grande artista.

Clique para ouvir, de Beethoven, o Concerto nº 3 em dó menor, na interpretação de Dame Myra Hess, sob a regência de Arturo Toscanini (Novembro, 1946):

https://www.youtube.com/watch?v=FpOSagfzVr8

Dame Myra Hess has been not only a remarkable pianist, but also a woman who took an active part, through music, in World War II effort by organizing, in a span of six years, about 2000 concerts at the National Gallery in London, minimizing the suffering of the English people in times of intense bombing by Nazi Germany against Great Britain.