“Cinco Estudos Litúrgicos” para piano

De todas as histórias que nos contava guardei apenas uma vaga e imperfeirta lembrança.
Porém, uma delas ficou tão nitidamente gravada em minha memória,
que sou capaz de repeti-la a qualquer momento -
a pequenina história do nascimento de Jesus.
Selma Lagerlöf (1858-1940)

Primeiramente, desejo a todos os leitores um Natal pleno de Paz. Data maior da Cristandade, nascimento do Cristo, é também comemorada por considerável segmento da humanidade, como celebração do entendimento entre os povos. Oxalá persista a compreensão nesses tempos tão tumultuados.

Veio-me a ideia de inserir no Youtube uma obra intimista, de alto teor meditativo e sagrado, composta pelo ilustre compositor português nascido em Trás-os-Montes, Eurico Carrapatoso, cerca de três anos antes do ano de encerramento de meu projeto de Estudos Contemporâneos para piano, que se estendeu por trinta anos (1985-2015), a fim de apreendermos processos técnico-pianísticos e formais de várias tendências nas fronteiras dos séculos. Oitenta Estudos, vindos de várias partes do planeta, chegaram às minhas mãos e apresentei-os nesse período.

Dois compositores penetraram na esfera espiritual de maneira mais abrangente: Almeida Prado (1943-2010) ao compor “Três Profecias em forma de Estudo” (1988), e Eurico Carrapatoso ao criar a “Missa sem Palavras – cinco estudos litúrgicos” (2012). Os primeiros há anos no Youtube e os “cinco estudos litúrgicos”, presentemente.

Ao longo dos blogs, desde Março de 2007, inúmeras vezes salientei a concentração que o intérprete deve ter em relação às obras mais lentas. Já não me lembro a fonte que traduzia uma antiga entrevista do insigne e saudoso pianista Nelson Freire, que afirmara que são justamente essas composições as mais complexas para serem gravadas. O notável pianista, uma das técnicas mais perfeitas entre os intérpretes, captara a essência essencial dos Largos, Adagios, Andantes

A “Missa sem Palavras” é singular nesse extenso caderno iniciado em 1985, pois despojada de procedimentos técnico-pianísticos voltados à virtuosidade, mas plena daquilo que Carrapatoso define como “desafio místico, dado todo o universo metalinguístico que lhe subjaz”. Interessou-me de imediato, pois vi-me diante de obra de cariz erudito, voltada a uma forma musical, o Estudo, que preferencialmente navegou e navega na virtuosidade. Essa assertiva, a privilegiar as centenas de Estudos criados desde os fins do século XVIII, contraria o conteúdo dos “Cinco Estudos Litúrgicos” em suas trajetórias contidas. Interpretá-los, num desafio inusitado através da textura polifônica, com as várias vozes evoluindo nos seus segmentos – Kyrie, Gloria, Credo, Sanctus e Agnus Dei -, seguindo o rito do texto latino, escrito mas não vocalizado; apreender a presença deste, a implicar a formatação da frase musical nos quesitos dinâmica, acentuação e agógica, são inalienáveis conteúdos de que não se pode prescindir. No Gloria e no Credo, insere Carrapatoso uma frase de canto gregoriano, a guiar intenções num convite à imaginação do intérprete. Transmiti ao compositor que entendo o segmento do Gloria que se inicia (pág.4) no compasso 35 (Domine Deus Rex caelestis) e a findar no 63 como um dos mais belos no gênero. Certamente, recebeu ele, no momento da criação, a visita de anjos e querubins, como anteriormente acontecera ao compor “Ó Meu Menino” (Magnificat em Talha Dourada), uma de suas composições para coral mais divulgadas.

Clique para ouvir, de Eurico Carrapatoso, “Ó Meu Menino – Magnificat em Talha Dourada”, na interpretação da soprano Angélica Neto e do Grupo vocal Olisipo, com direção de Armando Possante:

https://www.youtube.com/watch?v=NuGHTthQj_I

Eurico Carrapatoso escreve um significativo texto como introdução à “Missa sem Palavras”. Insiro-o na íntegra, mercê da revelação dos porquês da criação.

“Nesta peça, o conceito de estudo está longe da asserção convencional do termo, tantas vezes associada à extroversão do elemento virtuosístico ou à exploração de determinados domínios técnicos de um dado instrumento. Trata-se, antes, de uma viagem pelo mundo interior, introspectiva, ao sabor das inflexões produzidas pela leitura de um texto expresso na partitura.
Este texto sacro refulge no fragor bronzino do latim. Escrito na partitura, faz dela parte intrínseca. Mas não será verbalizado, no sopro da voz. Está lá para dele ser feita uma leitura íntima, secreta. O intérprete cantará os mistérios do texto canónico através dos seus dedos e não da sua voz.
Os dedos serão como os de Pepino, o Breve, rei dos franceses: taumatúrgicos, operando prodígios pelo toque.
Penso, por isso, que estão reunidas as condições para se lhe poder chamar estudos, não tanto pelo desafio técnico, que sempre esteve, aliás, muito longe de ser a minha intenção, mas pelo desafio místico, dado todo o universo metalinguístico que lhe subjaz.
A questão da crença, embora para muitos fracturante, é pouco relevante. Como respondeu limpidamente Fernando Lopes-Graça, conhecido ateu e sempre clarividente homem de cultura, à questão manhosa que alguém, à procura do paradoxo, lhe pôs, sobre o uso do texto da missa de defuntos que dele fez na sua obra colossal, ‘Requiem às vítimas do fascismo’:
‘Se acreditamos, ressoamos na primeira pessoa. Se não acreditamos, ressoamos na terceira pessoa. Mas ressoar, ressoamos.’
Genial!
A obra é dedicada à memória de meu pai, António Carrapatoso, médico por caridade e olivicultor exemplar, por ocasião do centenário de seu nascimento (Alvites, Trás-os-Montes, em 17.4.1912), dois dias depois da tragédia do Titanic. Meu pai, que tinha espírito, dizia que ele era a prova cabal do princípio de Arquimedes: O Titanic afundou. Logo, ele emergiu.
Tenho Muitas saudades suas.
Lisboa, 29 de Fevereiro de 2012”.

Clique para ouvir, de Eurico Carrapatoso, “Missa sem Palavras – Cinco Estudos Litúrgicos”, na interpretação de José Eduardo Martins (selo ESOLEM, França, 2019):

https://www.youtube.com/watch?v=5Z5zXsJ7wmo

Wishing all my readers a merry Christmas, I publish in this post a work with deep spiritual underpinnings: Missa sem Palavras (five liturgical studies), by the Portuguese composer Eurico Carrapatoso. It is intended not to be sung, but to be played with the Latin text as a guide conducting this beautiful polyphonic work for piano.