Sensível retorno após dois anos e meio sem travessia

Pouco a pouco a memória retornou,
ou melhor, a ela regressei,
encontrando a lembrança que me esperava.
Albert Camus

Chegou a termo a turnê que, breve, não deixou de contar com reais emoções. Nos dois posts anteriores, de maneira sucinta, teci observações sobre os eventos. Neste e nos dois próximos trarei pormenores. Comentei que devo encerrar minha atividade pianística pública aos 85 anos. Importa entender o tempo. Apesar de antever esse momento, é uma dádiva o intérprete se prolongar, diferentemente de outras atividades, como a esportiva de competição, implacável em tempo efêmero.

Sob outra égide, é reconfortante o regresso a locais que nos foram receptivos desde os primórdios e onde amizades se estreitaram! Como relatei várias vezes, minha primeira apresentação na Europa se deu em Portugal aos 14 de Julho de 1959, a convite do nome maior da música portuguesa, Fernando Lopes-Graça (1906-1994). Recital no “Templo Sagrado”, a Academia de Amadores de Música de Lisboa, que não deverá ser poupada pela sanha imobiliária, hélas. Estou a me lembrar do ilustre filósofo Eduardo Lourenço (1923-2020), que afirmou: “Aquilo que de mais belo há na humanidade é que nós somos submersos às mesmas forças que regem realmente o mundo. Porque é que nós escaparíamos, quando tudo o que foi criado está condenado a desaparecer?”.

A turnê em Portugal evidenciou, após dois anos e meio de plena abstinência de recitais públicos, mais do que as apresentações, que foram bem sucedidas, a consolidação efetiva das amizades com músicos e professores portugueses, algumas que perduram há mais de meio século.

Comentei nos dois blogs precedentes o programa apresentado na Biblioteca Joanina em Coimbra. Minha neta Valentina, companheira de viagem, insistiu para que escrevesse mais sobre a sensação de tocar naquele espaço magnificente.

A Biblioteca Joanina, que integra o conjunto arquitetônico da Universidade de Coimbra, é o recinto mais emblemático em que me apresentei ao longo da atividade pianística. O jornal londrino The Telegraph inclui a Biblioteca Joanina entre “the most spectacular libraries in the world” (2013). Há algo mágico e misterioso que emana da Biblioteca Joanina, da sua arquitetura barroca requintada e da literatura lá conservada a partir do século XVIII, substancial parcela de volumes bem anterior à construção finalizada em 1728. Diferencia-se das enormes salas das grandes cidades em que, ao apagar das luzes da plateia, o intérprete se encontra literalmente só no extenso palco, inundado pelos holofotes nele centralizados, que dimensionam a escuridão a ocultar o público. Na Joanina, é o passado histórico-literário que a enriquece e a humaniza, sendo o público seu cultor e o intérprete, o mensageiro que, através das ressonâncias, reacende magias. Nada se lhe compara, pois a iluminação parcimoniosa corrobora os mistérios contidos nos milhares de volumes cercados pela ímpar arquitetura e estimula a imaginação. O intérprete é apenas mais um cultor da Joanina naqueles fugazes mas intensos momentos da execução pianística. O majestoso quadro com a imagem de D. João V, ricamente emoldurado em madeira dourada configurada em forma de cortina, ao fundo das três salas contíguas separadas por arcos e em ouro, mas individualizadas por fundos distintos, verde, vermelho e negro, e salas repletas de volumes, fazem lembrar um Templo diferenciado, a provocar uma sensação não distante, mas sob outra aura, daquela apreendida em uma igreja barroca da mesma dimensão. O piano, colocado quase frente à imensa tela, compõe cenário singular, único. Como ele se harmoniza com o belo cenário! A cada visita à Joanina sinto a sensação de maravilhamento. Um privilégio ter sido convidado, ao longo de dezoito anos, para nove recitais na Biblioteca Joanina, outros dois no Teatro Gil Vicente e um no Museu Nacional de Machado de Castro.

Privilégio ter ouvido a preleção do Professor da Universidade, o notável medievalista João Gouveia Monteiro, que teceu comentários sobre o homenageado, o saudoso musicólogo e Professor da Universidade de Coimbra José Maria Pedrosa Cardoso; assim como a respeito do programa apresentado e do intérprete. Afirmou que o recital que apresentei seria o único do ano. Palavras profundas pronunciou a respeito do homenageado: “…recital que ficará decerto para a história pela sua qualidade e também por ser inteiramente dedicado a um dos musicólogos a quem a Universidade de Coimbra mais deve nos últimos cinquenta anos, José Maria Pedrosa D’Abreu Cardoso, um querido amigo que nos deixou recentemente e que se distinguiu sobretudo pelos seus estudos sobre as peculiaridades da música portuguesa no contexto europeu”. Amigo-irmão, José Maria deixou imensas saudades e um legado sem precedente.

A peça introdutória do programa, In Memoriam José Maria Pedrosa Cardoso, uma pequena joia polifônica em tributo ao autor de tantos livros a abordar a música portuguesa desde o século XVI, foi composta pelo renomado Eurico Carrapatoso, que nos honrou com sua presença. Compositor e intérprete eram diletos Amigos do homenageado. Emoção forte. A seguir interpretei a Sonata em Lá Maior (59) de Carlos Seixas (1704-1742), o imenso compositor conimbricense, Sonata esta a preferida do Professor Gouveia Monteiro. Seguiu-se, na ordem, de J.S.Bach-Liszt, o Prelúdio e Fuga em lá menor para órgão na magistral transcrição de Franz Liszt. Os graves duplicados de um magnífico piano Yamaha soaram esplendidamente pelos espaços e estantes. Duas peças de Henrique Oswald (1852-1931) e duas homenagens a efemérides distintas, o centenário de nosso expressivo compositor Gilberto Mendes (1922-2016) através de Viva-Villa, e dez Poemas de Alexandre Scriabine (1872-1915), a lembrar o sesquicentenário do compositor russo, encerraram o programa.

As presenças de destacados professores da Universidade de Coimbra enriqueceram o evento: André Pereira, Diretor da Imprensa da Universidade; Delfim Leão, Vice-Reitor da Cultura e Ciência Aberta, e outros mais dignatários da renomada Instituição, motivo de orgulho para o executante. Vindo de Florença, o relevante pianista Marco Rapetti se fez presente em Coimbra e Tomar. Rapetti está a preparar sua tese de doutoramento que versará sobre nosso mais importante compositor romântico, Henrique Oswald, que viveu cerca de 30 anos na bela Firenze.

As fotos foram tiradas por minha neta Valentina, subjugada que foi pela beleza da Biblioteca Joanina. Encantou-nos o convívio com o Professor Gouveia Monteiro e sua esposa Leonor. Consolidou-se um conceito que tive ao longo da existência, individual é certo, mas que me guiou durante a trajetória. Gosto imenso de retornar aos locais onde raízes se fincaram.

No próximo blog comentarei a palestra e o recital em Tomar, a cidade natal de Fernando Lopes-Graça, a acolhida que tivemos por parte do professor, musicólogo e regente coral António Sousa e sua esposa Rosário, e o prazer de festejar os 40 anos do meu primeiro recital na cidade. Num terceiro post a temática estará voltada à palestra no Centro Ward de Lisboa, a convite da ilustre gregorianista Idalete Giga, e às duas entrevistas concedidas na capital portuguesa.

I will divide the short tour of Portugal into three blogs. In this post, I’ll talk about the recital at Biblioteca Joanina in Coimbra. The following one will address the recital and lecture in Tomar, Fernando Lopes-Graça’s hometown, and finally the talk and the two interviews given in Lisbon.