Navegando Posts publicados em agosto, 2022

Distinção necessária entre duas intervenções

Por um lado, o artista furta o seu tema ao tempo,
tornando-o acessível a todos em todos os momentos;
por outro lado,
salva-o ainda da corrente do tempo
na medida em que faz convergir
num só instante o que foi beleza em instantes sucessivos.
Agostinho da Silva
(“Conversação com Diotima”)

Mensagens recebidas a respeito do tema do último post, no qual abordo alguns aspectos dos limites da interpretação, tecem referências às transcrições, tantas vezes confundidas como gênero arbitrário, pois a interferir numa criação já sedimentada e destinada a um ou mais instrumentos ou voz. Seis leitores me escreveram sobre a busca empreendida e a localização do pianista que gravou a integral de Jean-Philippe Rameau (1683-1764), adicionando improvisações e… saudado pela crítica (vide blog anterior). Comento a seguir algumas diferenciações claras entre transcrição e arbitrariedade.

A transcrição é uma categoria de gênero musical. Ao longo dos últimos séculos, determinadas composições para instrumento solo ou conjunto deles, ou mesmo para corais, despertam o interesse de outros compositores, pósteros ou coetâneos, que adaptam tal obra para destinação que lhes apetece. Composições de Antonio Vivaldi (1678-1741) para violino(s) e orquestra de câmara foram transcritas para cravo e conjunto de câmara por J.S.Bach (1685-1750). Criações para órgão ou coral de J.S.Bach foram magnificamente transcritas para piano por excelsos músicos, como Franz Liszt (1811-1886), Ferrucio Busoni (1866-1924), Alexander Siloti (1863-1945), Wilhelm Kempff (1895-1991), entre outros; os “Quadros de uma Exposição” de Modest Moussorgsky (1839-1881) para piano tiveram transcrições para grande orquestra realizadas por Maurice Ravel (1875-1937), Dmitri Shostakovitch (1906-1975) e Francisco Mignone (1897-1986). Uma extensa lista demonstra a frequência a essas leituras — ampliadas ou não — de obras preferencialmente bem conhecidas. A transcrição não transgride, mas sim oferece uma outra possibilidade de leitura e, consequentemente, de audição. Nosso ilustre compositor Gilberto Mendes (1922-2016) transcreveria para piano solo, a meu pedido para a coletânea que idealizei, duas obras instrumentais: “Ulysses em Copacabana surfando com James Joyce e Doroty Lamour” e “O Pente de Istambul”. Resultaram.

Devido a certos purismos que vigoraram durante décadas no século passado, as transcrições, mormente para piano solo, basicamente desapareceram dos repertórios e muitos pianistas foram cúmplices, seguindo os ditames de puristas e desviando-se do gênero. Presentemente, e é alvissareira a retomada, elas regressam e penetram o repertório dos pianistas. Deve-se o fato à abertura, positiva ou não, que se processa nas artes como um todo. O mesmo ocorreu com a obra dos compositores que, nos séculos XVII e XVIII mais acentuadamente, depositaram suas ideias em criações para cravo. Um verdadeiro anátema foi lançado aos que executavam ao piano – durante décadas no século XX – a obra dos clavecinistas franceses, de J.S. Bach ou de Domenico Scarlatti, para mencionar os mais visados. Essa “condenação” dos puristas visava outorgar unicamente aos cravistas a interpretação desse fantástico repertório. O notável musicólogo francês François Lesure (1923-2001) fez coro aos que assim não pensavam e acredito que, com suas palavras autorizadas, colocou um ponto final à inconsistente posição: “O tempo do Barroco integrista passou, o uso de instrumentos de época cessou de ser um dogma ao qual os músicos são obrigados a aderir sob pena de serem tratados de heréticos”. Presentemente, e é promissora a retomada, transcrições e composições para cravo interpretadas ao piano regressam aos repertórios, sem barreiras censuradoras, e penetram o repertório dos pianistas.

Clique para ouvir, de Bach-Kempff, o coral “Awake, the voice is sounding”, na interpretação de J.E.M.:

(239) Bach-Kempff – Awake, the Voice is Sounding – José Eduardo Martins – piano – YouTube

Por vezes é o próprio compositor que realiza uma outra versão para determinada obra. Gabriel Fauré (1845-1924) escreveu sua “Ballade” originalmente para piano, transcrevendo-a posteriormente para piano e orquestra, transcrição muito mais ventilada do que a original. Esta compõe meu CD dedicado a Fauré (Gabriel Fauré, Works for piano, De Rode Pomp, 2009). Outros autores assim procederam, oferecendo “possibilidades” outras às criações para um só instrumento. O também compositor francês François Servenière (1961-), num caminho inverso, compôs em 2008, “Promenade sur la Voie Lactée”, para flauta, piano, coro, harpa e orquestra de câmara, criação inspirada em Le Petit Prince, de Saint-Exupéry, autor que nos é caro. Ao ouvir, entendi que a bela composição se daria muito apropriadamente se transcrita para piano solo. Em 2018, François Servenière gentilmente escreveu a versão pianística, gravada por mim na Bélgica em 2019, a integrar o CD “Retour à l’Enfance” (ESOLEM, França, 2020).

Clique para ouvir, de François Servenière, “Promenade sur la voie Lactée”, na interpretação de J.E.M.:

https://www.youtube.com/watch?v=JQDkWn1HcpQ

Sob outra égide, não poderiam ser consideradas “transcrições” todas as adaptações que cenógrafos e estilistas realizam nas últimas décadas para as óperas de antanho? Não ocorre o mesmo com os textos teatrais, que hodiernamente também têm cenografias e roupagens atualizadas? Aceitas, elas proliferam nos teatros do planeta. Não obstante, a partitura musical e seu libreto, para as óperas, assim como o texto literário para as peças teatrais, permanecem na essência inalterados. Não seria a âncora mencionada no post anterior que mantém a autenticidade das obras erigidas pelos notáveis compositores e dramaturgos, a possibilitar as flexibilizações das montagens nos tempos atuais? As “transcrições” visuais, tanto para a ópera como para a peça teatral, não representariam o olhar do presente, que será certamente descartado em futuras encenações com projetos diferenciados? Essas “transcrições” não seriam alternativas em constantes mutações às tradicionais encenações que, através da perpetuação da traditio, vigoram e não deverão certamente desaparecer? Todo novo olhar tem algo estimulante desde que a  partitura e seu libreto, assim como o texto literário na dramaturgia, permaneçam inalterados. O espírito humano tem essa necessidade do descortino.

A arbitrariedade ocorre quando um intérprete transgride ao adicionar à partitura destinada a um instrumento arranjos ou improvisações, numa pretensa vontade de provocar a “atualização” de obra finda, geralmente consagrada. É um simulacro que, como tal, torna-se caricato. Ao mencionar a obra de Jean-Philippe Rameau para cravo executada por pianista de sucesso em países que mais cultuam a música erudita ou de concerto e, hélas, exaltado pela crítica, assevero que a integral para teclado de Rameau é uma das maiores contribuições da música em todos os tempos e as arbitrariedades do pianista, todas elas fora do contexto, são aquilo que, no post anterior, denominei um acinte.

Antolha-se-me que, na esfera erudita, seja em concerto ou em gravação, o sumário acréscimo em partitura finda desrespeita a criação. Contrariamente, na música contemporânea alguns compositores delegam ao intérprete a possibilidade de participar. Estou a me lembrar dos três “Estudos para Edu”, do ilustre compositor e teórico Hans-Joachim Koellreutter (1915-2005), a mim dedicados e nos quais expressamente o músico dava-me a liberdade de, durante a apresentação, improvisar trajetórias por ele escritas seguindo uma orientação cronométrica. As linhas retas que compõem o traçado e as sinalizações numéricas do autor determinam a orientação ao intérprete que, apesar da liberdade “criativa”, tem de se adequar às durações de tempo e a obediência da tessitura, entre outras indicações propostas por Koellreutter. Os três Estudos fazem parte da coletânea que idealizei em 1985 com término fixado em 2015 a abranger 30 anos do Estudo para piano nas fronteiras dos séculos XX-XXI. Recebi 85 Estudos de compositores de vários países. Apresentei os de Koellreutter no Festival Música Nova de 1991, em Santos e São Paulo.

No Youtube há vários exemplos de obras consagradas que são pervertidas através da introdução até de bateria com ritmos “alienígenas” em relação à criação original. Certamente ainda assistiremos à ascensão desmesurada do arbítrio nas artes. O notável compositor Camargo Guarnieri (1907-1993), ao ouvir a execução de uma sua obra para violoncelo, foi ao camarim e ouviu do intérprete palavras entusiasmadas, a dizer que alterara o final e indagando se ele apreciara. Após impropérios ditos pelo criador da composição, o violoncelista ainda ouviu “se quiser assim agir, vá compor”.

Clique para ouvir, de Claude Debussy, “Danse Sacrée – Danse Profane” para harpa e orquestra de cordas, na versão para piano solo realizada pelo seu editor Jacques Durand (1865-1928), na interpretação de J.E.M.:

https://www.youtube.com/watch?v=6YnkC0idEgw

I have received numerous messages regarding the previous post. In this one, I address some aspects regarding transcription and arbitrariness, two distinct poles.

 

Alterações através da História

Diante de uma obra que escutamos,
que interpretamos ou que compomos,
necessário se faz um respeito profundo
como frente à existência.
Como se fosse uma questão de vida ou morte.
Pierre Boulez (1925-2016)

Foram inúmeras mensagens comentando as interpretações da notável pianista venezuelana Teresa Carreño datadas de 1905 e apresentadas no post de seis de Agosto. Incrédulos, diversos leitores apontaram a extrema virtuosidade e empolgação da pianista, mas igualmente suas arbitrariedades, essas louvadas no período por ilustres coetâneos, exceção à opinião do compositor Edvard Grieg, do qual Carreño foi digna intérprete.

Naturalmente a interpretação através da História sofreu alterações, por vezes intensas. Se pensarmos que em 1906 Santos Dumont realizou o seu primeiro voo no Campo de Bagatelle em Paris com o 14-Bis, podemos refletir mais acentuadamente sobre o que ocorreu com a interpretação nesses 116 anos após as gravações de Teresa Carreño entre 1905-1908. Seria impossível não haver alterações na maneira de se interpretar uma composição. A única âncora que sustenta a manutenção básica da interpretação, tênue por vezes, é a partitura. É ela que possibilita ao intérprete as viagens pelo imaginário através das oscilações de seu pensar. É ela, origem originária, pois fixada, que não se pode transgredir arbitrariamente, alterando-a no decurso da História. A partitura é a estrela guia da interpretação.

A partir do século XIX, os compositores fixaram indicações suplementares para a exata execução. Em 1812, Dietrich Nikolaus Winkel (1777-1826) inventou o metrônomo, patenteado em 1816 por Johann Maelzel (1772-1838). Compositores passaram a assinalar marcações, orientando os intérpretes quanto à “exata” medida para os andamentos. Doravante, um pouco por analogia, acelerou-se a inclusão de sinais concernentes à agógica, acentuação e dinâmica. O século XIX assistiu a esses cuidados dos compositores. Claude Debussy (1862-1918) assinalou todas as suas intenções quanto à execução e ao mood e, nem sempre, paradoxalmente, preocupou-se com as indicações metronômicas, inserindo apenas o andamento norteador, assim mesmo, preferencialmente, de maneira a incentivar a imaginação. Quantas não teriam sido as circunstâncias para o esquecimento de um compositor relacionadas à indicação metronômica inserida sim, mas bem posteriormente, pelo arbítrio de um revisor ou editor?

Veio-me a lembrança fato ocorrido na década de 1970. Minha dileta amiga e boa pianista francesa Odile Robert recomendou-me a uma Diretora de renomado selo parisiense, a fim de gravar a integral de Jean-Philippe Rameau (1683-1764) ao piano. Diplomaticamente, a senhora me afirmou que Rameau só seria admitido ao cravo, pois a interpretação ao piano desfigurava as intenções do compositor, tornando-as arbitrárias. Respondi-lhe a mencionar a excelsa pianista francesa Marcelle Meyer (1897-1958), que gravara a integral na década em 1957 (vide blog: “Marcelle Meyer – a redescoberta merecida”, 06/03/2007). Considerou a dirigente em nosso diálogo que não mais se pensava assim em França e que a crítica seria fatalmente severa. Acabei gravando em 1997 em Sófia, na Bulgária, e o álbum duplo saiu poucos anos após pelo selo De Rode Pomp da Bélgica Flamenga, selo esse responsável por metade de meus 25 CDs gravados no Exterior. Décadas se passaram e mais gravações ao piano da integral do Mestre de Dijon surgiram na França. Uma delas, saudada pela crítica, friso, hoje concentrada nos veículos online, recebeu elogios rasgados e, pasmem os leitores, apesar das inúmeras “improvisações” por pianista consagrado nas salas espalhadas pela Europa! Grotescas, beiram o diletantismo.  Entendo-as um acinte. Sinais dos tempos, que bem indicam que essa flutuação da interpretação através da História teria sido assimilada por parte da crítica que, no caso em consonância com a recepção pública em França, deveria ser severíssima, assim penso. Quantos não foram os impactos, sob todas as esferas das Culturas – assim preferia o notável Alfredo Bosi, pluralizar o termo dando-lhe abrangência, estendendo o seu sentido (“Dialética da Colonização”, Companhia das Letras, 1992) – que, por osmose, influenciaram a interpretação? Não estaria inserido o conceito de Mario Vargas Llosa, que vê irreversibilidade na decadência da cultura erudita face às transformações do mundo atual?

Clique para ouvir, de Jean-Philippe Rameau, Les Niais de Sologne, na interpretação de J.E.M.:

https://www.youtube.com/watch?v=xdKjHjNx700

Questionaram-me também sobre a adaptação às mudanças interpretativas. Creio que ela existe e, como quase tudo no cotidiano, o homem acaba se habituando. Será lógico entender que, se houver um distanciamento longo, as diferenças se acentuam, caso específico das interpretações de Teresa Carreño (1853-1917) e Ferrucio Busoni (1866-1924), se comparadas forem suas gravações àquelas que norteiam a maioria dos intérpretes atuais, preferencialmente os mais jovens. Do 14-Bis aos aviões hipersônicos, que chegam a atingir velocidades acima do Mach 5, fica a mensagem de um caminho absoluto da tecnologia. Impossível não haver transformação interpretativa tendo a âncora a sustentá-la. Difere da tecnologia a ação da interpretação, mercê da imperiosa necessidade de se manter a tradição, essa também sujeita às flexibilizações. Sabe-se que ela existe e regressamos à âncora, pois. Uma outra exemplificação mostraria o notável pianista Alfred Cortot (1877-1962), que, ao interpretar obras mais lentas, tantas vezes num paralelismo absoluto das mãos fixado na partitura, com uma delas realizava ligeira defasagem na execução em relação à outra. Essa prática, empregada por vários de seus coetâneos, caiu em desuso. Outras tantas, como o excesso de rubato ou a leitura a seguir um livre arbítrio “monitorado”, tão frequente entre inúmeros ilustres pianistas de antanho, tiveram “cerceamento” por parte dos mais puristas, haja vista aquilo que denomino “pasteurização” interpretativa quando nos referimos aos concursos internacionais. Jovens talentosos, notáveis em suas execuções tantas vezes acrobáticas, não se desviam de mínimas normas que podem causar a eliminação. Cerceia-se, pela necessidade imperiosa da observância ao que está escrito, mas igualmente pela acomodação das consciências dos jurados, que têm menor trabalho nas decisões. Pequenas imperfeições do candidato no que tange à falha de memória ou às notas falhas, os denominados esbarros, como exemplos, já simplificam decisões que fatalmente excluem participantes. Não por acaso, em meus tempos a estudar em Paris, nas fronteiras das décadas 1950-1960, concorrentes eram denominados bêtes à concours. Paradoxalmente, sob a égide da tradição, a pasteurização tem um lado benéfico. A traditio, apesar dessas alterações que impactam o público, ainda sobrevive graças à partitura, elo fulcral da sobrevivência de uma composição.

Dias atrás, em conversa com um caro amigo que assistira ao recital de uma aclamada pianista que visitava o Brasil, disse ele que gostou imenso da apresentação, apesar de certo exageros extramusicais. Considerei que, diferentemente dos pianistas de antanho, em que o gesto era minimamente realizado e o vestuário padronizado, a importância maior por parte do intérprete era a transmissão da mensagem musical. O público entendia lindamente essas posturas. Presentemente não são poucos os pop stars da pianística erudita que têm no extramusical um de seus sustentáculos, apesar de, majoritariamente, serem exímios executantes. Acionei meu celular e mostrei uma pianista do leste europeu a tocar Clair de Lune, de Debussy, com as duas peças mais íntimas do vestuário feminino. Sinais dos tempos.

Nos meus 84 anos pouco posso antever para o futuro, mas a entrevista, há menos de uma década, do diretor do Conservatório de Pequim para o “Le Monde”, já mencionada em posts anteriores, apontava para norteamentos. Dizia ele àquela altura que, em pouco tempo, os pianistas chineses seriam os mais velozes do mundo. Não disse “os melhores músicos”. O atletismo e seus recordes a serem batidos, tendo o cronômetro como imperativo “metrônomo” dos tempos hodiernos, contagiam a interpretação no aspecto virtuosismo, que impacta plateias afeitas. Gestualidade e suas implicações, sob outra égide, sofrem injunções das tantas transformações sociais. O imediatismo, as fulminantes mudanças tecnológicas e, consequentemente, dos costumes impedem uma das qualidades inalienáveis do homem, a reflexão. Possivelmente a sua ausência tenha efeito na interpretação, pois oblitera desideratos mais concentrados na essência essencial da atividade do intérprete. E onde ficaria a reflexão quanto ao que deveria ser assimilado? Não é improvável que um dia, talvez não tão distante, a palavra reflexão seja considerada arcaica e, após algumas décadas mais, desapareça dos dicionários futuros. É possível.

Interpretation and its transformations from the 19th century onwards. The score as the only safeguard, an anchor supporting the interpretative flexibilities. Tradition as the source to be preserved.

 

Entrevistado pelo Dr. Ives Gandra Martins

São meus discípulos, se alguns tenho,
os que estão contra mim;
porque esses guardaram no fundo da alma
a força que verdadeiramente me anima
e que mais desejaria transmitir-lhes:
a de não se conformarem.

Agostinho da Silva
(“Sete Cartas a um jovem filósofo”)

Senti-me honrado ao receber o convite de meu querido irmão Ives, ilustre jurista, para entrevista em seu consagrado programa Anatomia do Poder, que vai ao ar todos os domingos às 21:00 na Rede Vida, entrando a seguir no Youtube e no Instagram. O nosso diálogo foi transmitido no dia 7 de Agosto.

O motivo central da entrevista esteve ligado à minha recente turnê em Portugal. Pudemos trocar ideias, pois em Coimbra, sempre a convite da tradicionalíssima universidade, apresentei-me ao longo dos anos em recitais privilegiando majoritariamente compositores portugueses, mormente o insigne Carlos Seixas (1704-1742), conimbricense. Durante esse período, meu livro “Impressões sobre a Música Portuguesa” foi publicado pela Imprensa da Universidade de Coimbra (IUC) em 2011. Ives, em sua brilhante carreira, proferiu conferências e participou de bancas acadêmicas na Universidade fundada em 1290, uma das mais antigas da Europa. Apesar de áreas distintas, há entre nós mais este elo fulcral. Devido ao tempo restrito da entrevista, ainda tive oportunidade de discorrer sucintamente no primeiro segmento sobre minha ligação acentuada com a música portuguesa.

Clique para ouvir, de Carlos Seixas, a Sonata nº 34 em Mi Maior, na interpretação de J.E.M.:

https://www.youtube.com/watch?v=QXoSKycVA5k

Numa segunda parte da entrevista dialogamos sobre dissertações e teses universitárias. Concordâncias tivemos nos temas basilares relacionados a esses trabalhos acadêmicos. Igualmente pela brevidade do tempo, estendo-me no presente post sobre colocações por Ives levantadas que substanciaram o diálogo e que se mostram, com o passar dos anos, recorrentes ou, em palavra mais contundente, acentuadas.

Ao longo de mais de 15 anos de blogs hebdomadários ininterruptos, tenho frisado minha apreensão sobre a quantidade exacerbada de dissertações e doutorados, grande maioria deles que, mantidos nos arquivos das tantas universidades espalhadas pelo país, jamais serão consultados. Toneladas, diria. Razões há para essa lamentável situação.

A carreira universitária prioritariamente norteia o docente à progressão na vida acadêmica e dissertações e teses fazem parte desse trilhar. Todavia, parte substancial do corpo docente não tem inclinação para o aprofundamento. Sob outra égide, nem sempre a essência essencial dos temas abordados merece a atenção dos candidatos a posteriori da defesa. Devido ao tempo escasso do preclaro programa Anatomia do Poder, nem tudo foi debatido. Contudo, mencionei em síntese algo que me causou profundo impacto e que publiquei em blog bem anterior. No já longínquo 2007, próximo da aposentadoria, encontrei casualmente um egresso dos bancos universitários que havia tempos atrás defendido sua dissertação de mestrado. Convidei-o para um curto na lanchonete de um supermercado e, a certa altura, indaguei-lhe sobre o tema da dissertação e o desenvolvimento posterior, a ampliar horizontes sobre a matéria. Com naturalidade disse-me que felizmente jamais voltaria àquele tema acadêmico, acrescentando que tivera muito trabalho para concluí-lo. Perguntei-lhe se tivera bolsa e a resposta afirmativa foi imediata, seguida de um acréscimo, pois obtivera bolsa para o doutorado, o que o deixava bem feliz (vide blog: “O Drama da Pós-Graduação – O Perigo do Circunstancial Endêmico”, 21/07/2007). Após o curto, despedimo-nos e fiquei a pensar nessa incongruência que se estende, inclusive, aos Institutos de Fomento. Bolsas são oferecidas desde que obedeçam a requisitos formais e, entre eles, posição do orientador. Submetidas à análise de professores credenciados pelas Instituições patrocinadoras para as tantas áreas do conhecimento, o projeto pode ser aprovado ou não. É a norma. Contudo, acredito firmemente, considerando o caso do aluno em questão, que poderíamos estender a muitos outros na mesma situação, pois, que eu saiba, não há até o momento por parte desses Institutos o day after, o saber quais resultados foram alcançados ao longo sobre as temáticas desses trabalhos acadêmicos e as suas consequências na vida do outorgado, salvaguarda do conhecimento mais embasado, descortino para novas fronteiras. Se negligenciada logo após a defesa da dissertação, tem-se um desperdício absurdo nessa distribuição de bolsas, pois a não sequência evidencia que um ponto final, rigorosamente irreversível, foi colocado naquele trabalho acadêmico, doravante sepultado para todo o sempre. Se o tema do doutorado for outro, aquele do mestrado deveria permanecer aceso no acervo do postulante à nova titulação, mesmo que em prolongado standby.

Inúmeras vezes neste espaço reiterei que temas escolhidos para dissertações ou teses devem acompanhar o novel titulado durante toda a existência, seja de maneira concreta ou por vias complementares. Outras vertentes certamente surgirão no decorrer da vida e esse processo é salutar, pois embasa o todo. Num sentido outro o já portador das titulações poderá se tornar um especialista de um só tema que, mesmo aprofundado, desvia-o da visão de outros horizontes. Vocacionados majoritariamente agem com naturalidade, pluralizam outras vias do conhecimento sem olvidar o que já foi realizado. Infelizmente, quantos não são aqueles para os quais a titulação serve apenas para favorecer a carreira universitária com vistas a melhores salários ou, de maneira nociva igualmente, com vistas ao poder na Academia. Pouco a fazer na atual conjuntura das universidades e dos Institutos de Fomento, que, se prestam reais serviços a quem merece, tantas vezes negligenciam o crescimento do joio.

Continuo a acreditar que a única via é a do relacionamento amoroso com as temáticas. Estou a me lembrar de tantos pretendentes à titulação acadêmica que me procuraram sem sequer saber que tema escolher e que rejeitei tout court. Candidatos que, após escolhida a pesquisa a ser realizada, sem quaisquer origens e ditada pela necessidade, apresentaram-se como verdadeiros franco-atiradores. Sem contar com os acintes à língua mãe.

Meu irmão Ives assinalou algo basilar, fundamento essencial para dissertações e teses, ou seja, serem originais esses trabalhos acadêmicos através de profícuo aprofundamento. Concluo a dizer que prefiro a palavra aprofundamento ao termo pesquisa, pois “todos” se sentem pesquisadores. Banalizar a significativa palavra é fixá-la em patamar duvidoso, hélas.

Fica neste espaço meu agradecimento ao Ives que, após a morte de nosso Pai, tornou-se o verdadeiro patriarca dos irmãos.

Clique para ter acesso ao programa Anatomia do Poder, produzido e conduzido pelo notável jurista Dr. Ives Gandra Martins, e apresentado na Rede Vida no dia 7 de Agosto último:

https://www.youtube.com/watch?v=sVR3JJoB0cI

Invited by my brother Ives Gandra Martins, an eminent jurist, I was interviewed in his renowned program “Anatomia do Poder” (Anatomy of Power), broadcast every Sunday at 9:00 p.m. on Rede Vida TV network. As time is short on TV, in the post of the week I will develop further some topics addressed in “Anatomy of Power”.