Navegando Posts publicados em outubro, 2022

Continuação do texto de Bóris Pasternak

A experiência interior ou psicológica não constitui
um compartimento particular de experiência ao lado de outras:
é em geral uma experiência espontânea.
Alexandre Scriabine (“Carnets inédits”, nº 1, 1904)

Dando continuação ao testemunho de Bóris Pasternak, neste segundo post o escritor russo, já na maturidade, considera a importância de Alexandre Scriabine na música. Esse olhar, que vem da infância e comunga durante um período da vida de Pasternak com estudos de música e composição, chega a termo quando opta pela literatura, que o consagraria. Não obstante, a música teria substanciado sua formação literária. Seu “distanciamento” em relação às últimas composições de Scriabine, fase em que a ascensão mística do compositor o faz “amalgamar” a nova escrita musical à visionária senda em direção ao Cosmos, ratifica a plena adesão de Pasternak ao gosto romântico majoritariamente aceito pela sociedade do período, este expresso nas criações de Scriabine ainda na juventude da idade madura. Bóris Pasternak demonstra que  dilemas existiram antes da certeza final de uma vocação literária.

“Sempre tivera inclinações místicas e supersticiosas e um ardente desejo de avisos sobrenaturais. Começara a crer num mundo heroico que necessitava de minha participação entusiasta, embora esta fosse fonte de angústia. Quão frequentemente, aos seis, sete ou oito anos, estivera à beira do suicídio! Imaginava-me cercado de toda sorte de mistérios e mentiras. Não havia absurdo em que não acreditasse. Houve momentos na aurora da vida – única época em que tais tolices são concebíveis – em que me imaginei (talvez porque pudesse lembrar minha babá vestindo-me as primeiras camisolas) já me haver vestido como menina, acreditando poder recuperar esta personalidade mais agradável, mais fascinante apertando tanto o cinto até quase desmaiar. Em outras ocasiões, pensava não ser filho de meus pais, mas um enjeitado por eles adotado.

Assim, razões tortuosas e imaginárias – oráculos, sinais, presságios – afetavam minhas desditas como músico. Faltava-me ouvido absoluto, o que era de todo dispensável em meu trabalho, mas considerei a descoberta triste e humilhante, prova de que minha música era rejeitada pelo céu ou pelo destino. Esmoreci, sem forças para enfrentar tais golpes. Por seis anos vivera para a música. Agora, rasguei-a e arremessei-a longe, como alguém a despedir-se de seu mais caro tesouro. Por algum tempo persistiu o hábito de improvisar, mas perdi gradualmente minha habilidade. Decidi-me, então, por um rompimento total: deixei de tocar piano ou de ir a concertos, evitando encontrar-me com músicos.

Scriabine, em sua defesa do super-homem, era extensão de sua Rússia natal, ansiando pelo superlativo. Na verdade a música, como tudo, precisa supera-se para ter algum significado. Deve haver algo ilimitado no ser humano e em sua lida para que ambos tenham definição e caráter.

Diante de minha ruptura com a música e de meu fracasso em acompanhar seu desenvolvimento, o Scriabine de minhas reminiscências – que costumava ser meu pão de cada dia – é aquele do período intermediário, aproximadamente entre sua terceira e quinta sonatas. Para mim, o fogo de Prometeu de seus últimos trabalhos não é alento diário para a alma, mas mera evidência adicional de seu gênio. Isto me é dispensável; acreditei nele desde o início.

Clique para ouvir, de Scriabine, Estudo op. 65 nº 1 (1912), criação da última fase scriabiniana, na interpretação de J.E.M.:

https://www.youtube.com/watch?v=5fc96yVOXgQ

Homens que morreram cedo, como Andrey Bely e Khlebnikov, passaram os últimos anos de suas vidas buscando novos meios de expressão, sonhando com uma nova linguagem, tateando por suas vogais, consoantes e sílabas. Nunca entendi a necessidade desse tipo de pesquisa. Acredito terem sido as mais surpreendentes descobertas feitas no momento em que o artista estava de tal forma possuído pelo espírito de sua obra que, sem tempo para pensar, foi levado por sua urgência a dizer palavras novas na língua antiga, sem se perguntar se era jovem ou velha. Foi como Chopin, usando o velho idioma de Mozart e Field, disse tantas coisas novas em música que, com ele, ela parece ter tido um novo começo. E também assim foi que Scriabine, muito cedo em sua carreira e usando quase nada além dos métodos de seus antepassados, mudou e renovou o clima da música. Desde os Estudos Opus 8 e os Prelúdios Opus 11, seu trabalho já era totalmente contemporâneo, tendo uma correspondência interna, em termos musicais, com o mundo lá fora, com o modo como as pessoas pensavam, sentiam, viviam, vestiam-se e trabalhavam naquele tempo.

Clique para ouvir, de Alexandre Scriabine. o Estudo op. 8 – nº 12 (Patetico), criação de 1894, na interpretação de J.E.M.:

https://www.youtube.com/watch?v=6H_T5I4BYn0

Naquelas composições, as melodias começam como lágrimas aflorando a nossos olhos e, como essas, resvalam por nossa face até os cantos da boca. Fluem através de nossos nervos e coração, nascidas não de pesar, mas de assombro por haver sido o caminho para nossa emoção tão completamente desvelado. Súbito, irrompe no fluxo da melodia uma resposta a isso, uma objeção com outro timbre, mais alto, feminino e num tom mais simples, coloquial. O argumento fortuito resolve-se imediatamente, deixando atrás de si a lembrança, opressivamente perturbadora, daquela simplicidade da qual em arte tudo depende.

Clique para ouvir, de Alexandre Scriabine, a Valsa op. 38 (1903), na interpretação de J.E.M.:

https://www.youtube.com/watch?v=97MoXq2KWig

A arte é plena de verdades consagradas que, embora ao alcance de todos, raramente são aplicadas com propriedade. Uma verdade bem conhecida necessita, para ser posta em prática, de um acaso feliz, do tipo que acontece uma vez em cada século. Scriabine foi esse acaso. Como Dostoievsky foi mais do que mero escritor e Blok, mais do que mero poeta, assim Scriabine foi mais do que simplesmente um compositor – ele é motivo eterno para júbilo e congratulação, uma festa, uma celebração na história da cultura russa”.

No próximo post publicarei meu texto “Bóris Pasternak e Alexandre Scriabine”, também inserido no “Nanico – homeopatia cultural” nº 13, Junho 1996, editado por Cláudio Giordano. Nele teço considerações sobre o sensível depoimento de Pasternak, entre outros posicionamentos de interesse.

Going on with Boris Pasternak’s account of his acquaintance with Alexander Scriabine, the author of Dr. Zhivago discusses — among other things — his preference for the early works of his fellow countryman.

 

Recordações de Bóris Pasternak

Scriabine era um criador visionário e um místico.
Tudo o que criava, vivia, sentia, pensava
instalava-se a partir de uma experiência interior de caráter místico,
pois essencialmente incomunicável na realidade e que, entretanto,
ele se esforçava em transmitir,
tanto em sua obra musical como em seus escritos poéticos,
em suas teorias, seus projetos e em suas conversas
com aqueles que poderiam compreendê-lo.

Marina Scriabine (1911-1998) – musicóloga e filha do compositor

Neste ano comemoram-se duas efemérides de relevantes compositores, o sesquicentenário do compositor russo Alexandre Scriabine e o centenário de Gilberto Mendes, este, tema dos dois posts anteriores. A respeito de Scriabine, ao longo dos blogs desde 2007 reiteradas vezes escrevi neste espaço sobre o importante contributo do compositor e pensador russo na música como um todo.

Estava a reorganizar os meus livros quando me deparo com uma pequena publicação com nome sugestivo. Tratava-se de “Nanico – homeopatia cultural”, criação do prezado amigo e editor Cláudio Giordano. Neste em especial, nº 13, de Junho de 1996, há um artigo extraído de “An Essay in Autobiography” escrito por Bóris Pasternak (1890-1960), autor do célebre “Doutor Jivago” e Prêmio Nobel de Literatura em 1958. Recordo-me de ter conversado com Giordano, que imediatamente se interessou em vê-lo publicado, com tradução cuidadosa de nossa dileta amiga Regina Maria Pitta.

Pensei retransmiti-lo aos leitores, 26 anos após, por motivos precisos. A publicação do excelente “Nanico” era restrita e o texto de Pasternak, sendo revelador de alguns aspectos essenciais nesse cotidiano vivido pelos dois personagens, possibilitou uma maior abrangência sobre o já vasto material literário e analítico a respeito de Scriabine.

Devido à dimensão dos posts, divido o texto de Pasternak em dois, inserindo num terceiro aquele que vem logo após, igualmente publicado no mesmo número e de minha pena.

“Na primavera de 1903, papai alugou uma dacha perto de Maloiaroslavets, no caminho da ferrovia Briansk (agora conhecida como Linha Kiev). Coincidiu que Scriabine fosse nosso vizinho. Até então não o conhecíamos muito bem. As duas casas, algo distantes, ficavam ao lado de uma clareira numa colina. Chegamos, como de hábito, pela manhã bem cedo. O sol, filtrando-se pelos galhos baixos que se debruçavam sobre nosso telhado, penetrava pelas janelas. Dentro, embrulhos foram abertos e alimentos, roupas de cama, frigideiras e baldes surgindo. Escapuli para a mata.

Deus, quão pulsante aquele bosque matinal! A luz do sol trespassava-o por toda parte. Sombras trêmulas embalavam seu cimo num vaivém e do emaranhado de galhos vinha aquele sempre inesperado, sempre estranho chilrear de pássaros, que começa com chamados altos, abruptos e, extinguindo-se gradualmente, repete, em sua insistência, a alternância fugidia de luzes e sombras na distância. E acompanhando a sucessão de luzes e sombras e o cantar e agitar dos pássaros pelos galhos, fragmentos da Terceira Sinfonia ou Divino Poema, composto ao piano na casa ao lado, propagavam-se e ressoavam através da mata.

Senhor, que música! Sucessivamente a sinfonia ruiu como uma cidade bombardeada e foi reconstruída, renascendo dos destroços. Seu sistema, arduamente elaborado, enchia-a até transbordar e era novo – como era nova a floresta, respirando vida e frescor, vestida de primavera naquela manhã de 1903 – não 1803, lembre-se! E assim, como na mata não havia uma única folha artificial, também a sinfonia era livre de profundidade falsa, de retórica solene, nada que soasse como Beethoven, ou Glinka, ou Ivan Ivanovich ou como a Princesa Maria Alexevna; ao contrário, seu trágico poder empinava o nariz em triunfo a tudo o que fosse respeitável e majestosamente decrépito e enfadonho, mostrando-se perniciosamente ousada, livre, frívola e essencial como um anjo caído.

Espera-se, do homem que componha tal música, que conheça a si próprio e que, em horas de lazer, seja tão tranquilo e luzente como Deus descansando no sétimo dia; e tal ele provou ser. Scriabine e meu pai frequentemente caminhavam pela estrada que passava não muito longe de nossa casa. Às vezes eu os acompanhava. Scriabine gostava de tomar impulso e depois saltar pela estrada como se, a qualquer momento, fosse deixar o chão e planar no ar. De um modo geral, desenvolvera formas várias de leveza extrema e movimentos ágeis, parecendo prestes a alçar voo. Em seu caráter, essa habilidade manifestava-se no charme bem educado e na maneira mundana de adotar um ar superficial, evitando assuntos sérios em sociedade. Mais surpreendentes eram seus paradoxos durante esses passeios pelo campo.

Conversavam, ele e meu pai, sobre o bem e o mal, a arte e a vida. Ele atacava Tolstoi e pregava o homem superior e amoral de Nietzsche. Concordavam apenas quanto à essência e aos problemas do fazer artístico; discordavam em tudo o mais. Na época eu contava doze anos. Metade de suas discordâncias estavam além de minha compreensão. Mas Scriabine conquistou-me pelo frescor de sua mente. Idolatrava-o. Concordava sempre com ele, mesmo ignorando o que queria dizer. Logo ele partiu para a Suíça, onde acabou ficando por seis anos.

No outono sofri um acidente que nos manteve no campo mais tempo do que o normal. Papai pintava a tela Pastagens Noturnas. Era uma cena de meninas de uma vila próxima, Bocharovo, cavalgando ao crepúsculo, a conduzir cavalos em direção aos prados úmidos ao pé de nossa colina. Uma tarde acompanhei-as, mas meu cavalo desembestou e, quando pulou um riacho, caí e quebrei a perna. Fiquei com uma perna mais curta do que a outra e, em consequência, fui dispensado do exército em todas as convocações.

Mesmo antes daquele verão arranhara um pouco o piano, conseguindo juntar alguns poucos sons de minha autoria. Agora, após meu encontro com Scriabine, desejava ardentemente compor. Naquele outono comecei a estudar teoria da composição, dedicando-me a ela durante meus seis anos restantes na escola. Trabalhei com o admirável Engel, crítico musical e teórico, e mais tarde com o professor Glière.

Ninguém tinha a mínima dúvida sobre minha vocação. Meu caminho estava traçado. Meus pais ficaram encantados com minha escolha profissional; a música seria meu destino e toda sorte de ingratidão para com eles, cujos sapatos eu era indigno de desamarrar, qualquer desobediência, negligência ou excentricidade minha passou a ser perdoada por esse motivo. Mesmo se flagrado às voltas com algum problema de fuga ou contraponto em classe, um livro de música aberto na carteira em plena aula de Matemática ou Grego, ou quando boquiaberto como um paspalho se algo me era perguntado, toda a classe vinha em minha defesa e os professores toleravam meus defeitos. E, ainda assim, desisti da música.

Desisti dela no exato momento em que tudo fazia crer estar no caminho certo e congratulações choviam sobre mim. Meu deus retornara; Scriabine voltara da Suíça trazendo suas últimas composições, entre elas O Êxtase. Foi recebido em triunfo por toda Moscou. No auge das festividades visitei-o, mostrando-lhe minhas peças. Sua reação superou todas as expectativas: escutou-me, aprovou-me, encorajou-me e abençoou-me.

Ninguém conhecia, porém, minha angústia secreta e, tivesse ela sido revelada, não me teriam acreditado. Eu progredia como compositor, mas tocava pessimamente e lia música como uma criança aprendendo a soletrar. A discrepância entre meus temas musicais, originais e difíceis, e minha falta de habilidade técnica transformou a alegria de um dom natural num tormento, até que não mais pude suportá-lo.

Como pôde tal coisa acontecer? Havia algo intrinsicamente errado em minha atitude, algo que merecia castigo. Eu tinha a arrogância adolescente, a presunção niilista dos tolos, que desprezam tudo o que parece acessível, tudo o que pode ser ‘obtido’ com aplicação. Considerava o esforço pouco criativo. ‘Na vida real’, pensava, tudo deve ser miraculoso e predestinado, nada planejado, deliberado, desejado.

Esse foi o lado negativo da influência de Scriabine em mim. Tomei-o como mestre supremo, sem imaginar que apenas ele podia permitir-se o luxo de seu próprio egocentrismo, que suas teorias serviam apenas a ele próprio. Desentendi-o infantilmente, mas as sementes de seu pensar haviam caído em solo fértil”.

Bóris Pasternak se dedicaria aos estudos musicais de 1904 a 1910. Compôs algumas obras. No belo Prelúdio nº 2 a influência de Scriabine é evidente.

Clique para ouvir, de Bóris Pasternak, “Prelúdio nº 2”, na interpretação de Eldar Nebolsin:

https://www.youtube.com/watch?v=y8nzjPhTXzY

No próximo post publicarei a segunda parte deste texto, na qual Pasternak avalia obras de fases distintas de Scriabine.

While rearranging my bookshelves I found a small publication edited by Cláudio Giordano in June 1996, “Nanico, cultural homeopathy”. It contained a testimonial by the famous Russian writer Boris Pasternak about his relationship with composer Alexandre Scriabine. His childhood memories remained intact. Pasternak’s account is worth reading, but due to its length I chose to divide it into two parts, the second to be posted next week.

Os livros do notável compositor

Eu serializo instantes musicais das músicas de todos os gêneros,
estilos, épocas, lugares. E componho em cima.
Uma música experimental, mas à minha maneira.
Um experimento com linguagens, combinatório,
visando uma nova linguagem para um momento novo,
atemporal e globalizado.

Gilberto Mendes
(“Viver sua Música – com Stravinsky em meus ouvidos, rumo à avenida Nevsky”. 1994)

No âmbito do Festival Gilberto Mendes, que festeja o centenário de seu nascimento, está programado para hoje, dia 14 de Outubro às 18:30, no Teatro Guarany, em Santos, um “bate-papo” sobre a obra literária de Gilberto e seu legado nessa área sensível. Flávio Viegas Amoreira, Manuel da Costa Pinto, Márcio Barreto e Zé Tahan irão expor suas posições sobre o importante legado literário de Gilberto Mendes. Haverá igualmente o lançamento do livro do escritor, poeta e crítico literário Flávio Viegas Amoreira, “Gilberto Mendes – Notas Biográficas” (2ª edição). Sinto-me honrado de ser autor do posfácio “Gilberto Mendes frente ao intérprete – Estímulo, ideia, criação e interpretação” (Santos, Imaginário Coletivo, 2022).

Quatro obras do notável músico santista foram resenhadas neste espaço (“Uma Odisséia Musical – dos mares do sul à elegância pop/art déco”. São Paulo, Edusp-Giordano, 1994, 13/10/2007; “Viver sua Música: com Stravinsky em meus ouvidos, rumo à avenida Newsky”. Santos-São Paulo, Realejo-Edusp, 2008, 04/04/2009; “Danielle em Surdina, Langsam”. São Paulo, Algol, 2013. 06/04/2013; “Os dois amigos entraram finalmente na Rua Borges. Santos, Realejo, 2019. 10/07/2021).

É notório o caminho seguido por Gilberto ao longo de seus livros. Sem ter sido um teórico autor de tratados, mas frequentando diversas tendências composicionais, como poderia se deter em determinada técnica se o dom maior de Gilberto era a curiosidade, o encantamento pelo que se lhe apresentava, não apenas os processos de alguns de seus coetâneos ilustres, mas também de músicas que ouvia vindas de outras geografias e que o seduziam. Nos nossos tempos uspianos quantas não foram as vezes em que me alertou contra as igrejinhas, núcleos de compositores que produzem e se satisfazem nos guetos. Gilberto não se indispunha contra correntes, era um cidadão em paz.

Estou a me lembrar da trajetória do primeiro livro. Estávamos em 1990 e um certo dia Gilberto confessa que gostaria de se aposentar tendo defendido uma tese. Àquela altura a aposentadoria se dava aos 70 anos. Sugeri-lhe escrever sobre o seu caminho tão luminoso. Hesitou inicialmente, mas lentamente iniciou o exaustivo trabalho acadêmico. Insisti que, sendo tão imensa a sua posição na música brasileira, bastaria a narrativa exata dos fatos, almejos, criações e relacionamentos acumulados durante a existência. Confessar-me-ia, reiteradas vezes, que a exaustão o acometia e que não fosse a prestimosa colaboração de Eliane, sua dedicadíssima esposa, dificilmente teria forças para a recolha e seleção de vasto material. A redação iniciada por vezes era interrompida. O tempo a passar e por vezes este amigo a telefonar pedindo-lhe seguir escrevendo. Em duas ou três oportunidades evidenciou discreto incômodo com os meus apelos. Sabia eu da importância de sua tese para a literatura musical brasileira. Enfim, no limite do tempo defendeu-a com brilhantismo e eu tive o privilégio de estar na banca examinadora que contou, entre outros professores relevantes, com a presença do ilustre poeta, tradutor e crítico literário Haroldo de Campos.

Meses após Gilberto me diz que ficaria muito feliz de ver sua tese publicada. Procurei a diretoria da EDUSP. Disseram-me que o meu livro “Henrique Oswald – músico de uma saga romântica” tinha sido aprovado pela Comissão Editorial. Afirmei que esse poderia esperar e que urgia a aprovação – impossível não acontecer – do livro do Gilberto Mendes. Submetido à primeira reunião a seguir as conversações, foi aprovado e publicado em 1994 (Edusp-Giordano). Quanto ao meu Henrique Oswald, a publicação se daria no ano seguinte. Como não se comover com as palavras de Gilberto na página dos agradecimentos de “Uma Odisséia Musical – dos mares do sul à elegância pop/art déco”, livro fruto da tese de doutorado: “Especialmente a José Eduardo Martins, que conseguiu extrair de mim este trabalho. Sem o seu incentivo não o teria feito”.

Quatro anos mais tarde a Edusp publicaria “Viver sua Música: com Stravinsky em meus ouvidos, rumo à avenida Newsky”. Se na “Odisséia…” Gilberto revela um sem número de recordações, musicais ou não, que são fundamentais para o entendimento de período efervescente da criação musical no Brasil, com várias correntes por vezes se antagonizando, em “Viver sua Música”, liberto de certas amarras necessárias “impostas” para uma tese acadêmica, Gilberto continua a rememorar, mas encantam-no sobremaneira as terras andadas, seus personagens, sejam ilustres ou não. Um segmento me sensibilizou, revelador de uma das qualidades essenciais de Gilberto, a ternura e a imediata associação a um de seus ídolos, Stravinsky. Estando em Moscou, um dos locais icônicos visitados dentre o imenso campo geográfico percorrido, mormente quando teve obras apresentadas, ele registra:

“A maior emoção minha, nos meus dias de Moscou, foi no passeio a um campo de pioneiras, como eram chamadas as adolescentes que ali passavam parte das férias, no verão, em meio às características datchas dos arredores da cidade. Duas meninas me pegaram pelas mãos e me levaram para mostrar as variadas dependências do acampamento. Paramos num barracão para assistir um pouco ao teatrinho de fantoches que estava sendo representado. E eis que entra em cena, de repente, um novo boneco, e uma das meninas, apontando o palco, exclama, toda feliz: Petruchka! (Petruchka é uma boneca. Петрушка em russo. Ballet de Stravinsky composto em 2011. Nota J.E)

Foi um momento epifânico, de êxtase, ouvir esse nome mágico, emblemático, na voz de uma menina russa ao meu lado, segurando minha mão, na própria Rússia! O momento em que me senti realmente, profundamente, no coração da Santa Rússia de Stravinsky, de Dostoievsky, Eisenstein, do Poema Pedagógico de Makarenko!”

Nonagenário, Gilberto tudo dissera, ou quase tudo. Sente-se livre e a imaginação sobrevoa outros domínios que jamais dele se separaram desde os primeiros anos, como o encantamento pela invenção. E surgem pequenos livros, depositários de histórias outras decorrentes da inventiva. Nessa senda encantatória renova o prazer criativo. Surgem: “Danielle em Surdina, Langsam” (2013) e “Os dois amigos entraram finalmente na Rua Borges” (2019), sendo que os fatos narrados nesse último ele vivenciou, mesmo não sendo um dos personagens.

Gilberto Mendes permanecerá. Apesar do breve recuo do tempo, foi imensa a sua contribuição para a música brasileira. Metaforicamente comparo-o ao navegante que permanece temporariamente em portos determinados. Em cada escala Gilberto absorveu e criou, a atender sua admiração por determinada tendência, mas a curiosidade fê-lo navegar e tantas outras tendências, assimiladas em cada porto, o encantariam e levariam a novas criações. Essa descontração criativa, fruto da perene curiosidade, tornou-o um amante das obras dos grandes mestres da música erudita do passado, mas igualmente um admirador das big-bands norte-americanas, da autêntica música popular brasileira e de ritmos de outros portos. Sempre a navegar no imaginário, Gilberto jamais deixou de ter em sua bússola a direção ao porto seguro, sua Santos eterna nos braços de “minha mulher Eliane, que se tornou uma segunda mãe”.

É Gilberto Mendes o nome maior de nossa música a partir da metade do século XX? É-o, na medida em que frequentou com competência várias das tendências composicionais vigentes. É-o por ter, como todos os grandes mestres, imprimido suas impressões digitais em todas as suas criações. É-o no resultado auditivo, pois, assim como os grandes de antanho, sabe-se que tal composição é de Gilberto Mendes.

Aproveito o post atual para anunciar o recital que se dará no Ateneu Paulistano, em São Paulo, no sábado dia 22, oportunidade em que será apresentado o livro de Flávio Viegas Amoreira, mencionado no início deste. A anteceder o recital, o literato santista tecerá considerações sobre o conteúdo de seu livro.

Going on with the celebrations of composer Gilberto Mendes’ birth centennial, there will be on the 14th, at Guarany Theatre in Santos, a round table on Gilberto’s literary work. In this post I make comments about his four books, all of them reviewed in this space over the years. I also announce the recital that I will give on the 22nd of this month at the Ateneu Paulistano in São Paulo, on which occasion the book written by Flávio Viegas Amoreira, “Gilberto Mendes – biographical notes”, will be launched, with a postscript signed by me describing the 30 pieces that Gilberto Mendes dedicated to me during our intense friendship. I have presented them in several European countries.