Da solidão a uma noite mágica

De todas as histórias que nos contava guardei apenas
uma vaga e imperfeita lembrança. Porém,
uma delas ficou tão nitidamente guardada em minha memória,
que sou capaz de repeti-la a qualquer momento,
a pequenina história do nascimento de Jesus.
Selma Lagerlöf (1858-1940)
“Lendas cristãs”
Prêmio Nobel de Literatura (1909)

Quantos de nós, cristãos, não temos algumas recordações do Natal enquanto crianças? Havia algo misterioso relacionado ao evento maior da cristandade. Quando miúdos, era-nos ensinada toda a saga que culminaria com o nascimento de Jesus e, nesse contexto, também aguardávamos a figura do Papai Noel com seus presentes.

O tempo passou e, aos 20 anos, um prêmio num Concurso Nacional de Piano em Salvador contemplou-me com bolsa do governo da França para estudar em Paris. Devido a não burocracia dos franceses, poucos dias após já estava em Paris.

Primeiro Natal fora do lar naqueles remotos tempos de amizades ainda não solidificadas. Intenso estudo pianístico, sob orientação da lendária pianista e professora Marguerite Long, levava-me, por vezes, a 10 horas diárias de estudo.

Noite gélida na véspera do Natal de 1958 em Paris. O barômetro apontava 3 graus negativos no portal do prédio onde morava, Rua Jacques Bingen, 16, no 17ème. Sai a caminhar sem destino preciso. No percurso via muitos apartamentos iluminados, a contrastar com o aspecto dos prédios que, àquela altura, ainda mantinham um cinzento sombrio, treze anos após o final da 2ª Grande Guerra. As passadas a esmo na gélida noite apenas acentuavam um sentimento de nostalgia. Nevava tenuemente.

A intenção primeira era continuar a andar por uns bons quilômetros sem rumo preciso, mas a cerca de um ou dois km após, ao passar em frente a um edifício que mantinha as luzes acesas e portas abertas, ouvi vozes femininas a cantar. Surpreso, simplesmente parei e fiquei encantado após pensamentos, se não negativos, incertos. Repentinamente, duas freiras já com certa idade desceram uns poucos degraus da escada e, agitadas, conversavam sobre a ausência do organista para a missa do galo. Delas me aproximei e perguntei-lhes se algo grave ocorrera. Disseram que o coral das noviças sempre cantava com acompanhamento na noite de Natal e que sem um guia se sentiam desamparadas. Afirmei-lhes que estava em Paris a estudar piano e que se quisessem… A agitação transformou-se em sorrisos largos e conduziram-me ao recinto onde as moças estavam realmente desconsoladas. O instrumento era um antigo harmonium ou harmônio. Deram-me as partituras e iniciamos a seguir os ensaios, que demoraram uma boa hora, pois logo após cidadãos, a maioria constituída por casais de idosos bem protegidos do frio intenso, adentraram parte da sala transformada em Capela.

Solicitei que uma das freiras ficasse ao meu lado para as entradas dos hinos religiosos durante a Santa Missa. Não me recordo das peças sacras que acompanhei no transcurso da cerimônia religiosa, apenas vindo-me à memória a célebre “Adeste Fidelis”. À medida que transcorria a Missa algo extraordinário se passava comigo, uma espécie de entusiasmo contido. Finalizada a Missa, enquanto os fiéis ainda permaneciam na Capela, toquei, em ato espontâneo naqueles momentos de confraternização, “Jesus Alegria dos Homens”, de J.S.Bach-Hess, incidente inusitado, mas que agradou as irmãs da Ordem religiosa.

Clique para ouvir, de Bach-Hess, o coral “Jesus alegria dos homens”, na interpretação de J.E.M. (gravação realizada em Mullem, Bélgica, 2004):

https://www.youtube.com/watch?v=flrkpW5L4KQ

Findos os ofícios, despedi-me das freiras, que não me deixaram partir, fazendo-me um convite, pois no salão contíguo à Capela, haviam preparado uma ceia singela. Para o jovem que eu fui, aquele sincero apelo para que permanecesse foi um verdadeiro bálsamo, evocou o que sempre senti nas festas natalinas em casa de meus pais e dissipou quaisquer pensamentos de nostalgia. Ao perguntar a uma das freiras a Ordem a que pertenciam, disseram-me que se tratava de uma irmandade católica de origem norte-americana.

Ao regressar naquela noite tão fria rememorei tantos contos lidos ao longo das décadas que invocavam episódios mágicos ou misteriosos relacionados ao Natal. Fiquei a pensar que não teria sido apenas o acaso, mas algo mais, pois até então nunca havia transitado por aquela rua. A não menos de 100 metros de onde morava há a Église Saint-Charles-de-Monceau, na Rue Légendre, igreja que frequentei várias vezes, tendo por ela passado no início da caminhada daquela noite, mas sequer prendeu-me a atenção.

Clique para ouvir do notável compositor e meu estimado amigo, Eurico Carrapatoso, “Ó meu menino Magnificat em talha dourada”. Coro e Ensemble Olisipo, soprano Angélica Neto:

https://www.youtube.com/watch?v=Mdud4L0yR4U

Se tivesse de enumerar outras reuniões natalinas mantidas na memória, não saberia precisá-las em seus pormenores. Esvaíram-se e apenas lampejos veem-me à mente. Qual a razão de unicamente aquela véspera de Natal em Paris ter ficado indelével, com suas cenas incólumes? Ao pensar nelas, a mente ativa as imagens registradas e guardadas no meu de profundis. O notável filósofo francês Vladimir Jankélévitch (1903-1985) afirmava que o segredo se explica, o mistério é insondável.

Fosse hoje, não mais me sentiria sequer seguro a perambular noite adentro pelas ruas menos frequentadas de Paris.

A todos os leitores desejo um Natal em Paz, algo de que estamos a necessitar nestes tempos turbulentos por que passa o país.

Clique para ouvir “Natal de Elvas”, na interpretação do Coro Capela Gregoriana Laus Deo, dirigido pela minha dileta amiga Idalete Giga, que realizou a harmonização da música extraída do Cancioneiro alentejano:

https://www.youtube.com/watch?v=l5YnExjckwU

Of all Christmas nights I have attended, very few actually remain in my memory. Only one was unforgettable: a magic Christmas eve in Paris in 1958, probably the happiest of my entire life, indelibly retained in my mind with all details.