A transformação vertiginosa da sociedade em direção ao impasse

Para que ame alguém a Humanidade,
se sinta disposto a guiar os mais pequenos no caminho do futuro
e não duvide da eficácia do esforço,
é sobretudo preciso que possua a longa perspectiva
que só dá o conhecimento das grandes realizações humanas
em todos os domínios.
Agostinho da Silva
(“Considerações”)

Recebo habitualmente a sábia coluna de Flávio Viegas Amoreira, escritor, crítico literário e poeta de valor. Publicada em A Tribuna de Santos, o texto de Amoreira é uma das poucas colunas realmente culturais de nossa imprensa. Seus livros de poesia e de análise literária estão entre os melhores neste país em que a cultura erudita, ao receber a “alcunha” de elitista, tem sido vilipendiada, para gáudio de extremistas sociais mediáticos. Soma-se a essa leitura mensagem de Gildo Magalhães, ilustre professor titular da História da Ciência (FFLECH-USP), que comenta o último post sobre excepcionalidades.

Ao longo de quase 16 anos tenho apontado em meu blog o desmonte progressivo da atividade cultural erudita em nosso solo. Décadas atrás, habitualmente escrevia para um respeitado Suplemento Cultural de São Paulo, que mantinha uma equipe altamente qualificada para a análise das temáticas a serem abordadas. Em princípio, reuníamo-nos duas vezes ao ano para debater conteúdos, primordialmente sobre artes e literatura. Estou a me lembrar de que durante 10 anos colaborei com artigos sobre música, principalmente, e tantos deles tinham três páginas!!! Resultaram em livro publicado em 1990 (Belém, Cejup) sob o título “Encontros sob Música”, com prefácio do saudoso e ilustre acadêmico Nilo Scalzo. A certa altura, um comunicado da direção aos colaboradores – entre estes havia figuras referenciais na literatura e nas artes da cidade – rezava que os artigos teriam de ser mais econômicos e que o jornal poderia, se necessário, diminuir a dimensão de determinadas contribuições. Escrevi à direção desligando-me e argumentando que não poderia admitir interferência nos artigos enviados, pois nunca antes tinha havido ingerência do editor-chefe; pelo contrário, apenas estímulo. Progressivamente o Suplemento descaracterizou-se. Jamais voltei a ler o Jornal que o mantinha e realmente não sei se ainda existe aquele veículo cultural, referência na cidade.

No incisivo artigo “Sem férias de ti”, Flávio Viegas Amoreira evidencia a importância sempre fulcral da literatura. A inspirar o texto, o atual período de férias. Focaliza um autor emblemático, Michel de Montaigne (1533-1592), e faz vários questionamentos cujas respostas, na atualidade, estão explícitas nos “Essais” do notável filósofo, escritor, humanista e moralista francês.

A anteceder a justa louvação a Montaigne, Amoreira insere posicionamento claro e objetivo sobre a decadência sempre em ascensão de valores antes cultuados. Essa colocação vem ao encontro de temática que insistentemente integra meus posts nesses já quase 16 anos de blogs hebdomadários e ininterruptos. Escreve Flávio Viegas Amoreira: “Visito sites e, quando abro a homepage de algumas plataformas de notícias, sou bombardeado por informações insólitas, o que só reforça a necessidade de um jornal impresso ou eletrônico que me dê nexo e credibilidade interpretativa em meio a tanta fadiga digital. Vivemos na era da euforia. Tudo precisa causar e bombar. A moda diz mais que estilo. Euforia, originária do grego, é isso: reagir a tudo, extrapolar do seu eixo, o eu para fora, aloprar para ser mais atual”. Acrescentaria que um dos mais importantes sites de notícias do país, já na homepage, entre várias chamadas sobre política, sempre ideologicamente construídas, e a respeito do cotidiano bem duvidoso, exibe imagens e anúncio da mais abjeta pornografia, só para assinantes abrirem e, logicamente, há aqueles que acessam. Todavia, a simples exibição das imagens já traduz a decadência moral que invade as colunas noticiosas, uma verdadeira blasfêmia. Chegamos ao impasse referente à preservação de costumes e moralidade.

Corroborando as precisas palavras de Amoreira, transcrevo posição de Gildo Magalhães relativa a um de meus últimos posts, em que comento excepcionalidades: “São constatações justas, embora pareçam duras. Podem-se aplicar a todos os ramos de atividade, desde intérpretes e compositores até pintores, professores, marceneiros, etc. Naturalmente surge ademais a questão do reconhecimento através das premiações. Estas em si têm certa dose de relativismo – vide, por exemplo, o prêmio Nobel. De quantos agraciados com o Nobel de literatura poderíamos dizer que sua obra sobrevive? Novamente seria uma minoria. Isto para não dizer que o prêmio ignora luminares que, apesar de não ganharem, têm uma perenidade desconcertante. Creio que isto se aplica até mesmo aos prêmios relativos à ciência, como a física ou  a química. Para contrariar aquilo que foi a contemporaneidade, vez por outra um talento especial é resgatado do oblívio da História, como acontece com algum compositor do passado, por exemplo. É este um dos meus incentivos para o ofício de historiador, de reavaliar aquilo que vem rotulado com a estampilha do Sic transit gloria mundi” (assim transita a glória do mundo).

Não pude deixar de pensar em Mário Quintana (1906-1994), notável poeta, jornalista e tradutor, mencionado em “Sem férias de ti” e que, nos comentários de Flávio Viegas Amoreira, tem seu perfil delineado: “Mário Quintana – que viveu para os livros, celibatário, solitário feliz e mestre respeitado nacionalmente – pouco saiu de Porto Alegre. Tradutor de Proust, erudito modesto que foi rejeitado pela Academia Brasileira de Letras, nunca se insurgiu: era leitor de Montaigne”. Repetia-se na ABL o que ocorre entre os agraciados com o Nobel, mormente na literatura, a inobservância por vezes do pleno mérito, privilegiando-se as figuras mediáticas sob fortes holofotes e desprovidas de obra literária consolidada. Nada a fazer, pois premiações e condecorações estão sujeitas a tantos outros interesses!!!

Nos termos do tema do último post sobre excepcionalidades, em que coloquei como requisito essencial o denodo, a aplicação, a disciplina e a concentração, Gildo Magalhães tece relevante comentário sobre figuras excelsas que percorreram a existência breve ou longamente dedicando-se a várias atividades com perseverança. Escreve: “São notáveis mesmo estes exemplos de talentos múltiplos, entre eles o de Paderewski, como você mesmo discorreu em outro excelente blog (vide Ignaz Jan Paderewski, 19/03/2022). E sobre o trabalho febril e ao mesmo tempo genial, a ciência também tem exemplos. Um deles é o de Évariste Galois, que morreu em 1832 aos 20 anos, num duelo. Ele passou a noite anterior ao encontro fatal escrevendo e fazendo cálculos para uma memória, que acabou ao amanhecer e mandou entregar ao amigo Cauchy, ‘caso morresse’ – funesta premonição. Esse trabalho resolveu um problema secular e se demonstraria com o tempo a peça basilar para a criação de um novo ramo da álgebra, com desdobramentos até os dias de hoje”.

Os argumentos de Flávio Viegas Amoreira e de Gildo Magalhães corroboram posicionamentos de tantas personalidades conscientes dessa hecatombe dos valores culturais, dos costumes e da moralidade. Vozes que, não obstante, não influenciam os detentores do poder, a mídia atual e, principalmente, aqueles que manipulam essas tendências que levam à degeneração e que visam sempre ao lucro como desiderato final. Hélas, trois fois hélas, como bem reza a língua francesa para designar com ênfase a nossa tão presente palavra infelizmente.

An incisive article by writer and critic Flávio Viegas Amoreira agrees with positions that I have been putting forward in my posts, the decadence of values accepted for centuries. The full professor of the University of São Paulo Gildo Magalhães, for his part, comments on the previous post, emphasizing that awards not always honor the right figures in history.