Um Grande Mestre na arte do Shakuhati
(flauta de bambu clássica japonesa)

A vida, para a vida, é sempre longa;
mas para a arte é sempre breve;
só quando não se faz nada há sempre tempo.
Agostinho da Silva
(“Sete Cartas a um Jovem Filósofo”)

Não foram poucos os leitores que se interessaram pelo livro Dai-Nippon, de Wenceslau de Moraes, e buscarão obtê-lo. Notícia alvissareira. Alguns outros queriam saber mais sobre Tsuna Iwami, após os três poemas para piano que inseri nos dois blogs dedicados ao Dai-Nippon. Coincidentemente, comemora-se neste ano o centenário de nascimento de Tsuna Iwami.

Distintamente de Moraes, Iwami, engenheiro, ao aportar no Brasil em 1956 se casaria e constituiria família, mas jamais se desprenderia de suas profundas raízes, independentemente do afeto à terra que o abrigaria até a morte. Realizava suas orações budistas, cultuava as tradições, vestindo-se, quando em sua morada, com quimono, e era atento ao cerimonial do chá. Sua esposa Haydée era sensível especialista nas iguarias japonesas.

Conheci-o na década de 1970 e nos tornamos amigos na acepção do termo. Em sua profícua formação, Iwami também estudou composição e, paralelamente, foi exímio intérprete da milenar flauta Shakuhati. Era um profundo admirador de segmentos da música ocidental, mormente de Claude Debussy (1862-1918), que tanto apreendeu da cultura do Extremo-Oriente. Quantas não foram as vezes em que, antes de uma apresentação pública na qual interpretaria programa novo, repassava-o em sua residência, serões esses que sempre tinham a presença do médico Ruy Yamanichi, saudoso amigo, e sua esposa Margareth. Após a récita, e antes do cerimonial do chá, à meia luz, Tsuna Iwami interpretava uma ou mais peças ao Shakuhati, para nossa grande admiração.

As mensagens recebidas fizeram-me lembrar de um número da “Revista do Instituto de Estudos Brasileiros” da Universidade de São Paulo (1995 – nº 39) dedicado às comemorações dos 100 anos do Tratado de Amizade entre o Brasil e o Japão. À época, a Direção da Revista estava sob os cuidados da atuante Profa. Marta Rossetti Batista (1940-2007). Tive o privilégio de integrar o Conselho Editorial presidido pelo ilustre acadêmico Nilo Scalzo (1929-2007) e, entre os conselheiros, José Paulo Paes (1926-1998), José de Souza Martins, Franklin Leopoldo e Silva, Telê Ancona Lopez e outros ilustres membros. Encarreguei-me de um artigo-entrevista sob o título “Tsuna Iwami – A recepção da Música Tradicional Japonesa no Brasil”. Apreende-se, através das sábias respostas, o pensamento vivo do polivalente artista japonês, mormente no que concerne ao culto da música de seu país natal no Brasil. Presentemente, ao entrar em contato com o IEB a pedir autorização para apresentar o artigo-entrevista aos leitores, gentilmente o Editor-Executivo da Revista, Pedro B. de Menezes Bolle, aquiesceu.

“O compositor e intérprete de Shakuhati, Tsuna Iwami, nasceu em Tóquio no ano de 1923, radicando-se em São Paulo em 1956. Engenheiro por profissão, o mestre Iwami teve sólida formação, estruturada na tradição da cultura musical japonesa. Ainda no Japão, tornou-se o Baikyoku V, título máximo conferido a um executante de Shakuhati de Kinko-Ryo. No Brasil, disseminou entre os discípulos brasileiros e do Exterior (principalmente pós-graduandos norte-americanos) o culto ao niponismo musical erudito do passado. Como compositor, o mestre Iwami criou obras para orquestra com solo de Shakuhati, obras para piano solo, para canto e piano e para flauta e piano, pois o autor é igualmente intérprete de flauta transversa.

Na entrevista concedida a José Eduardo Martins, o mestre Tsuna Iwami discorre a respeito da música nipônica não-erudita aqui praticada; da recepção da música erudita tradicional no Brasil; dos instrumentos japoneses; dos mestres em música que aqui aportaram; da tradição transmitida através das gerações, baseada na mais pura competência.

JEM – A imigração de outros povos para o Brasil, sobremaneira o europeu e o latino-americano, possibilitou a continuação, em terras brasileiras, de práticas folclóricas. Conjuntos se formaram e as gerações sucedâneas mantêm reuniões festivas periódicas, quando grupos executam repertório dos ascendentes, trajando-se ao estilo de origem e conservando o gestual de danças características. O que o mestre Iwami poderia nos falar sobre a música folclórica japonesa praticada no Brasil?

Tsuna Iwami – Trata-se de uma música de origem popular, contrastando com a que mencionarei durante a entrevista. É evidente que grupos pertencentes à imensa colônia japonesa pratiquem, nas datas festivas, o culto ao japonismo. Grupos formados por cantores, dançarinos e acompanhados por instrumentistas ao Shamisen e na percussão, trajados com quimonos simples, constituem o que poderíamos chamar de ‘preservação da cultura popular japonesa’. São muitos e espalhados nos centros onde a colônia se mostra mais numerosa. Cumprem, sim, um papel importante nessa sustentação dos traços fundamentais de um milenar japonismo.

JEM – Como se processou, certamente sob outra égide, a aceitação da música erudita tradicional japonesa no Brasil?

TI – A partir da década de 30, mais acentuadamente, realizou-se o processo. Um primeiro recital de música japonesa em São Paulo deu-se em 1936, realizado por Juzan Miyoshi (Shakuhati) e Miwa Miyoshi (Koto), sob os auspícios do Consulado do Japão. Datam, pois, das fronteiras dos anos 20-30 os tímidos inícios de um japonismo tradicional em São Paulo. A expansão, desde aquela época, dessa prática erudita foi lenta, reduzida durante a Segunda Grande Guerra, mas desde a década de 50, podemos afirmar, um desenvolvimento, não rápido, mas constante, está num caminho seguro.

JEM – Esta segurança de que fala o mestre Iwami seria a resultante da existência do ensino da música tradicional japonesa no Brasil? Haveria escolas ou professores isolados, ou ambos?

TI – Constatamos a existência de professores de Shakuhati (flauta de bambu), Koto (harpa horizontal de treze cordas, executada pelo intérprete munido de unha artificial ou marfim) e de Shamisen (tipo de guitarra de três cordas, tangidas pelo executante por plectro de marfim). Na verdade, não encontramos escolas dedicadas à difusão da música tradicional nipônica. Professores particulares perpetram ensinamentos a gerações definidas, pois há um perfil daquele que se dedica a este gênero de música. Os alunos nem sempre são orientais.

JEM – Quantitativamente, qual seria o número aproximado de praticantes desses instrumentos no Brasil? Tem havido difusão e expansão do japonismo tradicional musical?

TI – Só em São Paulo, aproximadamente cem pessoas tocam instrumentos de música japonesa, das quais mais ou menos setenta e cinco são brasileiros; e destes, talvez 60% de descendência nipônica. Em Belém e em Curitiba, e mais outros centros, podemos encontrar grupos numericamente menos expressivos.

JEM – No Brasil, fabricam-se instrumentos sacralizados pela cultura erudita europeia. A qualidade deles, exceção talvez única a determinados violões construídos por lutaios da maior competência, é, infelizmente, duvidosa, apesar de massacrante propaganda divulgadora. Maturação das madeiras, chapas de ferro de qualidade menor, metais não à altura de padrões internacionais dificultam a equiparação qualitativa dos instrumentos brasileiros, se submetidos às exigências de países de tecnologia de ponta. Existem instrumentos da cultura nipônica produzidos no Brasil? E qual a qualidade?

TI - O Problema é complexo. Realmente você tem razão quanto aos modelos ocidentais fabricados no Brasil. Há nítida defasagem de qualidade. Estamos experimentando, no que tange aos instrumentos japoneses, por exemplo, fabricar Shakuhati em São Paulo. As dificuldades são sempre as mesmas e se refletem na qualidade das matérias primas: bambu adequado e charão.

JEM – O escritor português Wenceslau de Moraes niponizou-se integralmente, deixando textos, como o célebre Dai-Nippon, que revelam a sua admiração profunda pelos costumes nipônicos e apontam com precisão para transformações insulares em direção à modernidade. O autor impregnou-se visceralmente, sob outro aspecto, da cultura japonesa. O olhar era aquele de um ocidental, o texto, pleno de lirismo contagiante, o amálgama da identidade plena entre Ocidente e Oriente. O mestre Iwami, radicado no Brasil há quase quarenta anos, teria sofrido o processo inverso?

TI – No que se refere ao culto da música tradicional japonesa e à minha maneira de tocar, praticamente não sofri, no Brasil, nenhuma influência. Há um enraizamento muito profundo de todo este culto milenar, difícil de ser compreendido por um ocidental. É lógico que influências sofri na minha maneira de compor. Nunca na maneira de tocar o repertório tradicional adquirido e nem na maneira de ensiná-lo.

JEM – Esta sua resposta leva-me a perguntar ao mestre Iwami se os praticantes da música tradicional japonesa, seus alunos, sofreram, na interpretação, influências da cultura musical brasileira.

TI – Praticamente nulas.

JEM – No Kasato-Maru vieram músicos que permaneceram como imigrantes? E nos anos posteriores? O mestre Iwami pode nos citar músicos instrumentistas que aqui aportaram?

TI – No Kasato-Maru não vieram músicos, pelo menos que se dedicassem exclusivamente à música. O que podemos afirmar é que alguns instrumentistas de talento foram aportando inicialmente em Santos e, posteriormente, aterrissando em aeroportos internacionais brasileiros. Citaria, por ordem cronológica, as prováveis datas de fixação em São Paulo: Kisue Hayashida (Koto, Shamisen) – 1931; Jusan Miyoshi (Shakuhati), Miwa Miyoshi (Koto e Shhamisen) 1931; Kanemiki Tokiwazu (Shamisen) – década de 30; Ryosaku Miyashita (Shakuhati) – anos 40; Shinzan Saito , Yôzan Sagara e Sôzan Yoshioka – década de 50; Sonoko Kamieda (Shamizen) – 1956; minha mãe, Tomil Iwami (Koto e Shamisen) e eu (Shakuhati) em 1956, precisamente.

JEM – Todos estes mestres citados, pertencentes provavelmente a escolas diversas, passaram às gerações, no Brasil, o conhecimento da música tradicional japonesa. Seria importante o mestre Iwami, a título de exemplo, discorrer sobre a sua própria origem como instrumentista, tão distante dos padrões ocidentais. Quais os seus ascendentes? Qual o significado exato de seu título máximo de Baikyoku V?

TI – A pergunta tem fundamento e ‘antagoniza’ essencialidades de nossas culturas. Não é fácil para um músico ocidental entender nossas longas gestações. Citaria o piano moderno, por exemplo, instrumento que se consolidou há pouco mais de um século. Dificilmente, o instrumentista ocidental, mesmo um violinista, poderia citar três gerações ascendentes de professores. O Shakuhati é um instrumento que teve origem nos séculos VII e VIII da era ocidentalmente conhecida como cristã. Sofreu transformações e o moderno Shakuhati de bambu especialíssimo, contendo cinco orifícios, data do século XVI. A moderna música para Shakuhati teve início no século XVII, com Kinko, um Iemoto ou mestre de escola, que foi o chefe do Konko-Ryo. Os seus ensinamentos permaneceram durante três gerações de discípulos. Posteriormente, tivemos a escola de Fuyo Hisamatsu, aluno da segunda geração da escola de Kinko. Após, Fûkei Kodo, discípulo de Hisamatsu, foi o seu sucessor que, por sua vez, passou os ensinamentos a Kodo II, também denominado Baikyoku I. Gerações se sucederam e eu sou o representante de toda uma tradição. Sou o Baikyoku V, assim como existe o Kodo V, mais jovem do que eu e que, após estudos em Universidades americanas, retornou ao Japão. Apesar de quase quarenta anos vividos no Brasil, ainda não elegi meu sucessor, o Baikyoku VI. Preocupa-me, a mim e ao mestre Kodo V, a unificação desse conhecimento secular. Pensamos eleger um mestre excepcional, cujo talento evidente e o caráter impoluto possam preservar a arte do Shakuhati, apreendida através dos séculos sem desvirtuamentos. Quem sabe não poderá ser um brasileiro o Baikyoku VI?”

Clique para ouvir, de Tsuna Iwami, “Fragmento Cantabile” e “Estudo para a mão esquerda”, na interpretação da pianista Regina Normanha Martins:

(87) Tsuna Iwami – Fragmento Cantabile – Regina Normanha Martins – piano – YouTube

(87) Tsuna Iwami – Left Hand Study – Regina Normanha Martins – piano – YouTube

Entre aqueles que estudaram com Tsuna Iwami, destacaria seu principal discípulo, Danilo Baikyo Tomic, que continua ativamente a perenizar os ensinamentos do mestre, agregando ao Shakuhati novas tendências musicais. Felizmente, outros intérpretes de Shakuhati, alguns que estudaram com Tsuna Iwami, têm realizado um significativo trabalho de divulgação, igualmente incorporando ao instrumento novos caminhos repertoriais, independentemente do culto à música tradicional do Japão, coluna mestra a ser preservada. Da entrevista de 1995 ao presente, há esperanças quanto à perpetuação do Shakuhati no Brasil, com um número apreciável de praticantes.

Infelizmente, um vídeo a ter Tsuna Iwami tocando Shakuhati está com falha, sofrendo abrupta interrupção quase no início da peça executada. Inseri “Beautiful Demon”, na interpretação do multi-instrumentista norte-americano, Cornelius Boots, professor de Shakuhati:

https://www.google.com/search?q=youtube+Cornelius+Boots+beautiful+demon+dhakuhati&oq=youtube+Cornelius+Boots+beautiful+demon+dhakuhati&aqs=chrome..69i57j33i160l3.34119j0j7&sourceid=chrome&ie=UTF-8#fpstate=ive&vld=cid:25f3279e,vid:BSDKLJsWdq4

Tsuna Iwami admirava a cerâmica e realizaria em seu ateliê peças cuidadosamente elaboradas. Tive o privilégio de receber um pote com meu nome em ideograma nipônico. Faz-me lembrar de uma figura rigorosamente singular, que me privilegiou com sua amizade. Um músico a ser perenizado.

The reception to “Dai-Nippon” by Wenceslau de Moraes was great. Readers would also like to know more about the composer Tsuna Baikyoku Iwami. I transcribe an interview I conducted with him, published by the Journal of the Brazilian Studies Institute (Instituto de Estudos Brasileiros – IEB) of the University of São Paulo in 1995.