A espera e a existência estiolada

Morre menos gente de cancro ou de coração
do que de não saber para que vive;
e a velhice, no sentido de caducidade,
de que tantos se vão,
tem por origem exatamente isto:
o cansaço de se não saber para que se está a viver.
Agostinho da Silva
(”As Aproximações”)

A morte é a curva da estrada,
Morrer é só não ser visto.
Fernando Pessoa

Recebi semanas atrás, da minha dileta amiga Aurora Bernardini, professora titular da Universidade de São Paulo, notável tradutora, escritora e crítica literária, “O Deserto dos Tártaros”, de Dino Buzzati (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 8ª edição, 2020). Deve-se a ela e a Homero Freitas de Andrade a tradução do instigante livro. Na década de 1980 li “O Nome da Rosa”, de Umberto Eco, impecavelmente traduzido por Aurora.

Dino Buzzati (1906-1972) atuou em várias áreas, pois jornalista, escritor e artista plástico. Uma das personalidades mais destacadas da literatura não apenas italiana, mas também da Europa. Entre seus livros destaca-se “O Deserto dos Tártaros” (1940), obra-prima do autor, que ganharia extraordinária repercussão nos meios literários.

Dino Buzzati não situa os palcos dos acontecimentos. O livro é ageográfico e atemporal, mas faz supor que as ações se passem ao norte da Itália, pois o autor nasceu em Belluno, comuna italiana da região do Vêneto, no norte da Itália. Montanhas abruptas, estão próximas à cidade. Esses ingredientes possibilitam o entendimento, ao menos pictórico, do cenário. O período igualmente é vago. Comunicações, armamentos, carruagens, luneta, iluminação podem sugerir o século XIX. Essas imprecisões dimensionam a concentração no essencial, a espera, através de gerações de militares, de um vir a ser que se estiola graças ao imobilismo ditado pelas incertezas.

O autor do prefácio, Ugo Giorgetti, insere em seu texto preciso um testemunho de Buzzati que possibilita antever a narrativa: “De 1933 a 1939 trabalhei no Corrieri della Sera no período noturno. Era um trabalho monótono e aborrecido, e os meses passavam, e passavam os anos, e eu me perguntava se seria sempre assim, se as esperanças, os sonhos, inevitáveis quando se é jovem, iriam se atrofiar pouco a pouco, se a grande ocasião viria ou não”.

A figura central, o jovem militar Giovani Drogo, morador da cidade, teria de cumprir estágio em uma enorme e sombria fortificação em região montanhosa que, desde épocas remotas, era anteparo à possível invasão dos tártaros. O acesso, realizado a cavalo, é longo e cansativo. Ao chegar, a descrição de segmento do forte aguça a imaginação do leitor quanto à sua dimensão, pois Drogo é guiado por um tenente da guarda: “… os dois se dirigiram para um vasto corredor, do qual não se conseguia ver o fim”. Buzzati pormenoriza ao longo do livro as tantas outras configurações da fortaleza, internas e externas. Centenas de soldados lá viviam a guarda-las. Da vontade de retornar à cidade quase imediatamente após a chegada, à espera do desenrolar dos quatro meses iniciais após “promessa” de militar superior, “…e talvez houvesse por trás disso o pensamento consolador de que estaria sempre em tempo de partir”, décadas seguiram o seu curso.

Não sem questionamentos interiores, a sedimentação de anseios e dúvidas selaria o destino de Giovani Drogo.

Dino Buzzati descreve reiteradas vezes segmentos do entorno da fortificação: “montanhas rochosas”, “despenhadeiros pontiagudos”, “penhascos escarpados” e “…adiante existe um grande deserto” Nas muitas alusões, talvez para reforçar o narrar, fica evidente a presença do sombrio a contrastar com a ausência descritiva do belo. As estações e intempéries são reiteradas vezes mencionadas com pinceladas desprovidas de emoção. Cenário adequado para complementar o enredo.

São dois os retornos de Giovani Drogo à cidade natal. Num primeiro, sente um distanciamento de sua mãe, se considerado for o convívio no mesmo espaço até a sua primeira ida ao forte aos 20 e tais anos. Encontra-se com uma amiga e laços anteriores possibilitariam um recomeço afetuoso. O som de um piano, talvez como estímulo ao clima do encontro voluntário, é várias vezes mencionado. Nesse ambiente, envolto pelas sonoridades, bastariam umas poucas palavras para que a saga de Giovani Drogo fosse outra. Elas não vieram. “No íntimo, existe até uma tímida satisfação de ter evitado bruscas mudanças de vida, de poder entrar de novo tal e qual na velha rotina”. Muitos anos após uma segunda visita, conscientiza-se de que a relação com seus conhecidos fenecera. Aqueles com quem outrora convivera tiveram suas realizações e Giovani Drogo surge quase como um estranho: a mãe não mais existia, a amiga afetuosa há tempos partira para a Holanda. Tudo a indicar o destino definitivo, a fortificação. Nele permanece, sempre a aguardar o inimigo. Sinais de luzes observados pelas sentinelas, periodicamente, antevendo a esperada chegada dos tártaros, insinuam a espera sempre adiada. Expectativa e esperanças que evaporam e o evento maior não acontece. Os tártaros não chegam. Envelhecido, doente, vive momentos angustiantes, pois há indícios de que o inimigo se aproxima.  Todavia, uma carruagem, com o fim expresso de retirar Giovani Drogo às pressas para tratamento na cidade, chega à construção militar. Em breves palavras, Buzzati sintetiza o drama, “enxotado do forte como peso importuno”. Dos novos militares, apenas “…uma despedida curtíssima, com aquela afeição genérica que é própria dos jovens para com as velhas gerações”. No retorno faz parada em uma pousada. Esvai-se a existência… Giovani Drogo fracassa ao não assistir ao único desiderato de vida, o enfrentamento. À noite, solitário e moribundo, encontra o fim. A morte como redentora.

“O Deserto dos Tártaros” é uma obra com várias interpretações, daí sua riqueza reflexiva. O homem a buscar a plena humanidade? Hesitações que o levam à estagnação não sonhada, mercê da asfixiante rotina que o impede de perceber devidamente a corrida do tempo. Para Giovani Drogo, a espera do confronto era a esperança. “No fundo teria bastado uma simples batalha, uma única batalha, mas na verdade, atacando em uniforme de gala e sendo capaz de sorrir ao precipitar-se em direção dos rostos herméticos dos inimigos”.

Aspectos fulcrais da rígida disciplina militar permeiam a saga daqueles que permaneciam na fortificação. Os personagens de “O Deserto dos Tártaros” transitam em suas diversas funções e obedecem à hierarquia. O afeto é sufocado pela visionária espera sempre adiada.

Em situação rotineira, Giovani Drogo vigia o lugar mais alto de uma parte do forte, “… o reduto inteiro e cem metros de muralha dependeriam só dele”. “Veio-lhe a mente que não ficava bem, para o oficial de guarda, dormir”. Não obstante, em outro tempo, ele não resiste e dorme ao alvorecer, após noite gélida. Faz-me lembrar do livro capital de Antoine de Saint-Exupéry (1900-1944), “Citadelle”, obra igualmente atemporal e ageográfica. O narrador, senhor berbere que reinava sobre o Império, ao fiscalizar a fortificação encontra uma sentinela a dormir. Apesar de considerações serenas a respeito da responsabilidade e do apreço à sentinela, condena-a à morte, pois, ao ter adormecido em uma função essencial, colocou o império à mercê de um possível ataque inimigo. Sob outra égide, Buzzati narra a tragédia do soldado que, tentando retornar ao forte, não se lembrava da senha obrigatória e sempre renovada. Embora reconhecido pelas sentinelas, é abatido com um tiro. Obediência aos protocolos. Um segundo militar encontra a morte durante uma cavalgada investigativa com outros parceiros, “…morrera no topo de uma montanha, no cerne da tempestade, conforme ele quis, realmente com muita elegância”. São as duas vítimas fatais do romance, a anteceder a morte de Giovani Drogo.

Numerosos os personagens de “O Deserto dos Tártaros”. Atravessam a vida de Giovani Drogo com suas personalidades distintas, uns mais amistosos, outros apenas frutos da convivência cotidiana. Conversas, alguns raros passeios, refeições conjuntas, jogos de cartas, inexistência da amizade estreita. Dos superiores hierárquicos aos de menor patente, o convívio de Giovani Drogo se estabelece, em princípio, sob a égide da invasão dos tártaros. O quando do instante do acontecido? De um major, após um vislumbre falso de ataque inimigo: “Agora então, depois da última experiência, quem você quer que ainda acredite nisso seriamente?”

Por vezes Buzzati prolonga-se à exaustão sobre determinado episódio, aparentemente sem interesse. Quanto aos longos diálogos entre os personagens do forte sobre temas do cotidiano, estariam deslocados se não estivessem inseridos no contexto do ritmo sem brilho e inexpressivo da rotina. Reprises da espera, nuances interpretativas e “O tempo, inexplicavelmente, pusera-se a correr cada vez com maior velocidade, engolindo os dias uns após os outros”. Não obstante, seria possível entender que essa técnica tem significado se associada à monotonia da rotina, maiormente nas várias situações voltadas às luzes detectadas à distância pelas sentinelas. A luz como alerta, a luz como prenúncio do fim da espera? Tomado por extrema e perturbadora atonia, no peristilo da morte, “O major Giovani Drogo, consumido pela doença e pelos anos, pobre homem, forçou o imenso portal negro e deu-se conta de que os batentes caíam, abrindo espaço para a luz”. A luz como esperança da vida e da morte. Sente que “jogara fora os melhores anos, agora queria ao menos esperar até o último momento”.

“O Deserto dos Tártaros”, ao aprofundar-se na imaterialidade da espera, põe a nu a tragédia humana. Indagado, o homem de qualquer geografia aguarda algo. Mesmo que não tenha qualquer almejo na vida, sua certeza é a morte, e o preceito medieval mors certa, hora incerta é o único sem contestação.

“The Stronghold”, also translated as he “Tartar Steppe”, a work by Dino Buzzati, is an indispensable book, one of the great novels of the 20th century. The setting of the novel is undetermined, with no specific location and time.  The reader is told the story of a young soldier who is sent to a fortress and, amidst doubts and a few certainties, remains there for decades, waiting for the Tartars’ invasion, which never happens. A lifetime passes and, sick, his only certainty is a redemptive death.