Navegando Posts em Cotidiano

Quando a amizade Transcende

Aquele é bom,
tudo reza bem dele.
Adágio popular açoriano (Faial)

Foram vários os e-mails. Geralmente breves, traduziam a apreensão da mensagem contida no blog anterior. Uma pergunta merece resposta: “Qual a razão de um distanciamento tão grande durante tanto tempo?” Respondo a Rafael da Silva. São tantas as circunstâncias que nos tornam reféns de determinados bloqueios!!! Ao acabar o curso de Direito, sabia que não iria advogar, pois não tinha vocação, apesar de ter captado tantos ensinamentos. Minha vida é a música, desde a tenra infância, e sabia que um difícil caminho iria trilhar. Família constituída, tive que, por longo período, dedicar-me simultaneamente à atividade outra de sustento, sem declinar de estudos pianísticos, pesquisas e apresentações públicas. Ao entrar na Universidade de São Paulo, a dedicação foi exclusiva à Música. Esse longo período “sedentário” – viagens ao Exterior eram de curta duração, mas sempre ligadas à atividade musical – distanciou-me de Amizades essenciais, sem que, porém, deixasse de nelas pensar com afeto.

Meu colega na Universidade de São Paulo, o ilustre professor Gildo Magalhães, escreveu algo fundamental. “Crônica tocante, suspeito que mais velhos, como eu, podem apreciá-la na sua inteira singeleza e sinceridade”. Realmente, foi da geração que já ultrapassou o cinquentenário que mensagens chegaram. Observação aguda.

Já mencionei que meu dileto amigo, há tempos partner de tantos blogs, o compositor e pensador francês François Servenière, tem olhar de lince. Ao ler na Normandia, na manhã do último sábado, o blog recém-publicado, transmitiu mensagem significativa. Em torno de Gabriel Meirelles de Miranda, Servenière ergue um hino ao entendimento. Ei-lo:

“Magnífica a frase ‘Nós, homens, verdadeiros deuses’. Concordo inteiramente com as palavras de seu amigo Gabriel. Deus, na minha concepção, é a metáfora forjada pelos homens desde a antiguidade para expressar a riqueza interior que cada um de nós pode atingir através da corajem, da fé na existência, do trabalho, da empatia, do amor, da amizade…

Lendo o seu magnífico texto, dedicado ao seu amigo distante no tempo e no espaço, mas tão próximo no coração, pensei nos membros de minha família, ilustres farmacêuticos ou médicos, do campo ou de hospitais parisienses, que dividiam os mesmos valores e as mesmas práticas relacionadas à clientela de várias camadas sociais. O blog me fez lembrar de meu avô, Rémy, que, jovem farmacêutico, esteve no hospital de Verdun entre 1914 e 1918, em plena primeira Grande Guerra, tornando-se assistente de cirurgia e, após, cirurgião, por falta de pessoal e forçado pela lei, pois os estropiados tombavam aos milhares. Os mortos não eram o problema maior, centenas de milhares – milhões, no final da guerra -, mas os feridos que, ultrajadamente impossibilitados, tinham de ser ‘reabilitados’ para, talvez, retornar à frente do combate.

Ouvi de meu médico, Dr. Jean-Paul le Cam, especialista em medicina tropical, tendo exercido a função na África do Sul e na Inglaterra, que foi nesses lugares, verdadeiros açougues de guerra, que se forjou a técnica de cirurgia reparadora da qual o mundo de hoje é tributário. Quando li seu texto pensei nesses heróis da medicina. Meu pai foi um desses, pois doentes deslocavam-se 30km, na alta madrugada, dirigindo-se à sua farmácia, única onde podiam obter socorro ou medicamentos. Nada comparado aos pósteros que têm sobretudo vocação para cifras e  otimização do tempo de trabalho. Desgraçadamente, a Idade de Ouro desse espírito está bem longe da visão monetarista de hoje. E, garanto-lhe, ela existiu e teve ilustres representantes.

Chamou-me a atenção um outro trecho de seu texto. A sua formação em Direito na Faculdade de Pouso Alegre, que lembrou-me a que tive em Ciências Econômicas. Não seria esse outro olhar humanístico a permitir a reflexão sobre a sociedade e nossa arte, fruto das ciências humanas fundamentais que tivemos de abordar nessas Escolas? Para mim, foi um desvio – um pouco para provar que nessa área não encontraria meu caminho – antes de aprofundar-me no objeto vocacional, a música. Aliás, recebi todo o apoio familiar para a escolha definitiva. Certamente você o recebeu ambém.

Desde minha infância tive contato intenso com a prática médica. O amor e a empatia pela humanidade, encontráveis em tantos médicos abnegados, é um bálsamo e eu senti essa atmosfera nos anos que se estenderam pela juventude. Para mim, um engenheiro matemático que não fala ao coração dos homens é um mau profissional. Mesmo um mecânico que ama o ofício compreende melhor o motor do carro quando este começa a funcionar.

Admiro os que praticam farmácia e medicina, pois são eles engenheiros do corpo (e do espírito, tantas vezes) tendo a capacidade de captar pelo simples olhar e transmitir ao paciente os cuidados necessários a serem tomados bem antes da decisão de um receituário. Quando entro num consultório médico ou farmácia – sei que é sensação generalizada dos pacientes -, sinto-me já quase diagnosticado pela escuta e pela capacidade do médico vocacionado de sentir vibrações. Tudo lá está. A empatia é a vibração que se sente do outro, seu pulsar, sua energia e suas ondas. Sensações que podem ser negativas. Os músicos conhecem bem a simpatia, essa maravilha da ressonância que permite a todos os instrumentos ressoarem entre eles. A orquestra é um exemplo, tão dificilmente podendo ser reproduzida pela informática, quase impossível, artificialmente. Não somos diferentes dos instrumentos, mas somos sim, instrumentos de comunicação viva. Simpatia, empatia, quantas semelhanças! Consequência direta, o efeito placebo. O verdadeiro médico generalista é assim. Inocula confiança no corpo do paciente e este deve encontrar muitas vezes seus medicamentos ‘internos’ para salvar-se.

Artistas, filósofos e místicos são médicos da alma. Salvam os seres pela beleza e pela evocação do melhor da alma humana, materializada pela frase de seu amigo Gabriel Meirelles de Miranda: ‘Nós, homens, verdadeiros deuses’. Tudo está dito. Tudo está no fundo de nosso coração, no nosso de profundis capaz de criar compartimentos encantadores, desses que corroboram o salvamento do espírito e da alma nos momentos mais sombrios: ‘a beleza salvará o mundo’ (Dostoievsky, certamente).

Quando li seu texto pensei em meus ascendentes, que disseminaram esse mesmo estado de espírito nas suas regiões de influência, tal qual seu amigo Gabriel. Leva-me a pensar na sábia frase do cantor Sting, que eu espero não trair nesta mensagem: ‘Para mudar o mundo, é necessário começar ao seu redor’. Essas personagens públicas de que falamos são exemplos. A nós retomarmos essa flama e a herança como nossos meios e ferramentas. Mas sempre com o mesmo espírito. Atitude absolutamente contrária à mentalidade que dissemina o ódio, a discórdia e a guerra.

A medicina também tem seus aspectos sombrios, desenvolve formas de pesquisa para necessidades militares com o desiderato precípuo de matar o mais rapidamente possível o maior número de indivíduos. Parte dessa sombra da humanidade devemos combater a partir de nosso espírito positivo em  nossas atividades musicais. O compositor armênio Aram Khatchaturian tem fabulosa e célebre citação, que considera como objetivo ‘uma música que seja bela em si, nem grande nem pequena, mas simplesmente bela, aberta, expansiva, que traduza a felicidade de viver. Há muita feiura e desesperança no mundo para que não as deixemos invadir nossa arte’.

Finalmente, não há acaso em nossos posicionamentos artísticos respectivos, desenvolvidos comumente em nossas linhas hebdomadárias. Fomos influenciados, numa vasta comparação, pelos mesmos tipos de pessoas, pelos mesmos professores, pelos mesmos artistas e os mesmos praticantes da medicina… Todos eles nos falaram simplesmente de uma empatia pela vida e pela humanidade. Generosidade, amor, amizade. Valores que prazerosamente compartilhamos.

O que de mais precioso do que essa prática que também comungamos, o elogio da lentidão!!! Gostaria de terminar meu e-mail semanal a comentar seus blogs por uma observação desses dois rostos na foto do post sobre seu grande amigo Gabriel e que exprimem, simplesmente, felicidade e bondade. Eis o que é ‘realizar-se na vida’ “. (tradução: J.E.M.)

The last post about friendship received much feedback. This week I mention some e-mails from readers on the subject and transcribe passages of a long e-mail from the French composer François Servenière about friendship and also about his family, reminding us that he was born into a family of altruistic doctors and pharmacists, so distant from the business-minded approach of today’s professionals.

 

 


Amizade que Desafiou Tempo e Distância

Entre um homem e outro homem há barreiras que nunca se transpõem.
Só sabemos, seguramente, de uma amizade ou de um amor:
o que temos pelos outros.
De que os outros nos amem nunca poderemos estar certos.
E é por isso talvez que a grande amizade e o grande amor
são aqueles que dão sem pedir,
que fazem e não esperam ser feitos;
que são sempre voz ativa, não passiva.
Agostinho da Silva

Em Portugal, não por outro motivo, quando se quer grafar o nome do verdadeiro amigo, escreve-se com A maiúsculo. A dádiva da amizade sempre esteve além de uma percepção cotidiana. O Amigo é, existe, e tempo e distância não obliteram a intensidade do afeto.

No capítulo CCXIX de “Citadelle”, de Saint Exupéry, essa obra monumental que, no dizer de sua irmã, Simone de Saint-Exupéry, “aborda todos os problema da destinação humana e do condicionamento do homem”, o autor conta a história de dois amigos jardineiros que trabalhavam com espírito fraterno, encontravam-se sempre para o chá ao entardecer, trocavam confidências e ideias sobre plantas. Diálogo em poucas palavras. Quando passeavam juntos olhavam flores, árvores e o céu. Gestos com a cabeça eram o suficiente para a compreensão da fauna e da vida. Certo dia, um mercador contratou um deles para juntar-se à sua caravana por algumas semanas apenas. Mas vicissitudes mil levaram-no aos confins do mundo. Separados, não tiveram mais contato. Decênios se passaram e o jardineiro sedentário recebeu um dia carta de seu velho amigo. Emocionado, apreende o breve escrito: “Esta manhã podei minhas roseiras”. Três anos se passaram e o jardineiro a pensar na distância separando-o do amigo e em como responder à sua carta. Enfim, seu amo encontra um emissário que poderia ser portador da resposta, que atravessaria desertos e mares até seu amigo ausente. Dias a rabiscar e a rasurar a mensagem, que chega enfim a termo. Feliz, entrega ao amo. Dizia apenas: “Esta manhã, eu também podei minhas roseiras”.

Conheci Gabriel Meirelles de Miranda no final dos anos 1960. Médico e cirurgião em Pouso Alegre, Minas Gerais, Gabriel é uma das mais ilustres figuras da cidade. Foi aos recitais de piano que dei no Conservatório Estadual de Música de Pouso Alegre, a convite da professora Horma Valadares. No início dos anos 1970 prestei vestibular para curso na Faculdade de Direito do Sul de Minas e durante anos, até  a conclusão em 1975, frequentei semanalmente a cidade, pois as aulas eram oferecidas às sextas-feiras à tarde e à noite e aos sábados pela manhã. Ao todo, 18 aulas!!! Viajar de carro naquele período era uma aventura, pois a Fernão Dias oferecia apenas uma pista, curvas mal planejadas, acostamento por vezes inexistente, asfalto pleno de crateras. Como acréscimo, ausência do cinto de segurança que passaria a ser obrigatório a partir de 1994. Todos os anos alguns alunos perdiam a vida nessa perigosa viagem. Optei pelo Direito, pois créditos em música que obtivera em Paris não eram aceitos àquela altura nos recentes cursos universitários em São Paulo. Gostei do curso de Direito que me deu, primeiramente, condição de entrar na Universidade de São Paulo em 1982, lá permanecendo até 2008. Apesar de jamais ter exercido a profissão de advogado, em Pouso Alegre adquiri bases jurídicas que me foram úteis, e dezenas e dezenas de pareceres emiti na USP quando, a convite de vários reitores, integrei algumas das mais importantes comissões da Universidade.

Essa premissa pessoal faz-se necessária. Naqueles anos em que cursei a Faculdade, quase todas as sextas-feiras, após as aulas, por volta das 23h45min, o Dr. Gabriel, como sempre foi chamado em Pouso Alegre, estava a me esperar para irmos comer uma pizza. Tranquilo a fumar seu cigarrinho, andar lento, fala serena, Gabriel ensinou-me, sem o saber, a entender a vida “pausadamente”. Mostrava-me, ao narrar episódios de sua vida desde a infância, uma outra maneira de compreender o outro. Jamais o vi intranquilo. Quantas não foram as vezes em que, na pizzaria, ficávamos silenciosos. Estar juntos era por si só motivo de alegria interior. Nossas confidências tinham o dom da viagem mental. Imaginávamos um mundo ideal.

Descende de notáveis médicos que permaneceram na história mineira: seu avô, Olinto Deodato dos Reis Meirelles, foi um dos fundadores da Faculdade de Medicina de Belo Horizonte e prefeito da capital mineira de 1910 a 1914; seu pai, médico ilustre também, Custódio Ribeiro de Miranda, responsável pela construção do hospital Samuel Libânio em Pouso Alegre e prefeito da cidade de 1951 a 1956.

Na cidade mineira, Gabriel Meirelles de Miranda teve toda uma vida dedicada à medicina. Inicialmente, trabalhou com seu pai no hospital Samuel Libânio, onde não apenas exerceu a atividade, como foi diretor durante cinco anos.  Especialista em cirurgia geral, clínica geral, pediatria e obstetrícia, seu diagnóstico preciso granjeou-lhe reputação inconteste. Na Faculdade de Medicina da Fundação de Ensino Superior do Vale do Sapucaí assumiu a cadeira de cirurgia geral. Sua dedicação à medicina fê-lo continuar até fins de 2010 o ensino na cadeira de professor de Ginecologia!!!

Estou a me lembrar de que Gabriel atendia pacientes no consultório montado em sua casa. Causava-me admiração a diversidade daqueles que o procuravam, dos vários níveis sociais. Gabriel dispensava a mesma atenção, não se importando com patamares sociais. E sempre com a mesma serenidade. Ele, como bom samaritano, a atender tantos doentes sem buscar a menor remuneração. Sim, ela existia na única forma de gratidão dessa gente simples: um frango, ovos, legumes, frutas, uma lágrima. Confessava-me que essas oferendas simbólicas representavam o que de mais precioso o sofrido paciente podia oferecer. Eu, já naqueles anos de reestruturação, contava-lhe meu desiderato voltado à divulgação de obras excelsas, mas escondidas. Dizia-lhe, nos meus trinta e poucos anos, que tinha consciência de um tributo a pagar, mas correria o risco. E corri sem me arrepender, apesar do preço saldado. Gabriel encorajava-me.

Convivi com sua esposa, a saudosa Aparecida, e com seus cinco filhos adoráveis. Regina acompanhou-me algumas vezes e a amizade familiar frutificaria. Aos sábados, antes de regressar a São Paulo, passava por sua casa para me despedir e não foram poucas as oportunidades em que almocei junto aos seus. Sob outro aspecto, quando, por motivos vários – a ausência de um professor ou a infausta morte de um colega na fatídica estrada – não havia aula, ia à sua morada e estudava no piano da edícula.

Findo o curso de Direito, retornaria à Pouso Alegre para o casamento de sua encantadora filha, Maria Leonor, com o jovem médico José Carlos, hoje professor e diretor do Instituto de Patologia José Carlos Corrêa. Umas poucas vezes mais encontrei-me com Gabriel, quando vinha a São Paulo visitar um de seus filhos. Almoçávamos e trocávamos confidências, como sempre. Passaram-se decênios e um silêncio se fez. Não é raro o fato entre grandes Amigos. Distância, atividades tantas não provocaram névoas. Restaria para sempre o afeto da amizade inquebrantável.

O acaso tornou possível o acesso de seu telefone em Pouso Alegre através de bom amigo que mora em Jaguariúna, Mário Sérgio Mariottoni, pois seu irmão é médico na cidade mineira. Após uma distância temporal incomensurável, cerca de 40 anos, telefonei-lhe. Imediatamente Gabriel, com firmeza, disse meu nome. Dupla emoção. Tanto para dizer… vontade mútua de um encontro. Deu-se. Seus netos marcaram jantar em São Paulo, na morada de um deles. Encontrei Gabriel nos seus 92 de idade. Nossos olhares traduziram no silêncio bem mais do que as palavras. Muita comoção. Noite mágica a não ser esquecida. Uma certeza ficou desse “primeiro” encontro. Naquela noite, juntos, nós dois podamos nossas roseiras.

P.S. Ao acessar dois links o leitor poderá conhecer essa figura extraordinária, simplesmente Gabriel, como sempre quis ser chamado.

Dr.Gabriel – “Nós, homens, verdadeiros deuses”

TVFuvs: Homenagem ao Dr. Gabriel Meirelles de Miranda

On the priceless gem of friendship and my bond with Gabriel Meirelles de Miranda, a doctor I knew in the city of Pouso Alegre in the sixties, a deep relationship that time and distance did nothing to diminish.

 

 

 

 

 

 

 

O Texto como Respiração

Todo o homem é diferente de mim e único no Universo;
não sou eu, por conseguinte, que tem de reflectir por ele,
não sou eu quem sabe o que é melhor para ele,
não sou eu quem tem de traçar o caminho;
com ele só tenho o direito, que é ao mesmo tempo um dever:
o de ajudar a ser ele próprio;
como o dever essencial que tenho comigo é o de ser o que sou,
por muito incómodo que tal seja, e tem sido, para mim mesmo e para os outros.
Agostinho da Silva

Aos dois de Março de 2007 nascia o primeiro post publicado no blog. Já comentei anteriormente que nada teria acontecido não fosse uma observação de meu ex-aluno Magnus Bardela. No final de Fevereiro daquele ano, após conversa amistosa a rememorar fatos,  ele – que frequentou durante quatro anos minha classe de piano na USP, formando-se brilhantemente -, propôs-me a construção de um blog. Hesitei instantaneamente, mas a argumentação de Magnus foi convincente e dias após, sem que eu soubesse, durante conselhos que me dava sobre internet, construiu o blog, dizendo-me: “Está pronto, é só inserir seus textos”. Atônito, ainda hesitei, mas aos 2 de Março “Praeambulum” dava início ao caminhar com os leitores.

Mencionei várias vezes que a não interrupção desde 2007 jamais foi um problema. Certo dia o amigo Daniel Marcos me questionou “Você não se dá férias, ao menos um mês?”. A resposta foi imediata: “Nunca dei férias para minha respiração”. O ato de escrever, de  estudar piano ou de correr faz parte desse respirar, cotidiano ativo. Quanto aos blogs, a não interrupção uma semana sequer (o post entra aos sábados às 00h05min) durante esses oito anos é fruto do pensar enquanto realizo treinamentos a correr pelas ruas de minha cidade bairro, Brooklin-Campo Belo, já mencionado em tantos blogs anteriores. A aceleração cardíaca age sobre os neurônios e as ideias fluem com naturalidade. Focalizado um tema, é só desenvolvê-lo na primeira madrugada e o texto desliza, corrente. Problemas técnicos adiaram por um ou dois dias uns poucos textos.

A pressão de ter de escrever tantos caracteres para a uma determinada publicação em tempo previamente fixado não daria resultado em meu caso particular. Essa liberdade não me impõe restrições quanto à dimensão, quiçá conteúdo. Observando os pássaros, dificilmente eles obedecem a roteiros, salvo os pombos – mormente o pombo correio ou as aves migratórias. A temática simplesmente acontece e tem acontecido sem interrupção. Música, sempre, cotidiano e suas surpresas, resenhas de livros que me atraem, impressões colhidas durante viagens e que se processam no de profundis, tardiamente quantas vezes. Diria que a observação “viajar é olhar”, da grande poetisa portuguesa Sophia de Mello Breyner Andresen pode ser interior. Todos os impactos que diariamente vivemos se acumulam e ficam numa espécie de álbum interior, pleno de figuras e observações. Basta um impulso, sugestão que seja, e aquela determinada página escondida no álbum interior ressurge por inteiro. “Viajar é olhar”, seja externa ou internamente. Meu celular é daqueles jurássicos, só recebe ou transmite ligações. Nada mais. Certa vez em que minhas netas se divertiam tirando fotos e selfies com aparelhos sofisticados, disse à Emanuela, a menor, que iria tirar uma foto mental simulando uma foto com tão antigo celular. Pôs-se a rir. Horas após, enviei-lhe e-mail com a imagem de meu celular e escrevi: “feche os olhos e lembre-se daquele momento, pois ele está gravado em sua mente”. Valeu como descontração, mas Emanuela guardou o episódio.

Raramente visito o universo nebuloso da política, mormente nestes últimos anos em que a mentira é vendida como verdade e a corrupção enlameia o cotidiano. Por vezes, sem o desejar, emito considerações. Jornalistas que costumo frequentar pela leitura ou escuta radiofônica têm exercido com competência a denúncia como alerta, o confronto como dialética necessária e saneadora. Há esperanças. O país não se submeterá à primazia que está a fazer sucumbir democracias latinas. Não merece.

Temas fluem e nosso universo depende invariavelmente dos tópicos atrativos. Eles lá estão. Buscamo-los à maneira de um peregrino que, ao caminhar, pormenoriza-se naquilo que já está “pré-moldado” em sua mente. Sim, há o acaso. Não o desprezo, nunca.

Para que a sequência não tenha sofrido uma interrupção sequer ao longo dos tantos sábados, há a necessidade de querer. Meu saudoso e sábio pai nos ensinou básicos princípios que serviram aos quatro filhos: disciplina, perseverança, constância, concentração e fé naquilo em que acreditamos. Esses tópicos foram aplicados diferentemente pelos irmãos de sangue, a depender da visão individual das coisas.

Nada teria acontecido não fosse Magnus ter pressentido a ideia. Continuava a reter textos mentais em ebulição permanente, como sempre, desde meus primeiros anos. A memória tem esse poder mágico de manter o que os olhos viram externa e internamente, amalgamar olhares sem perder a precisão e, quando acionada, revelar por inteiro experiências vividas. O arquivo mental é uma de nossas dádivas maiores.

Este blog não existiria sem colaboradores dedicados que, ao longo destes anos, jamais hesitaram em ajudar-me, ignorante que sou dessa parafernália tecnológica a todo instante renovada. Difícil, nos meus 76 anos, acompanhar essas transições rápidas, sempre em direção a uma outra inovação. Desisti. Conheço o básico do básico e, graças aos amigos diletos, supro a não atualização internética.

Regina Pitta, Magnus Bardela, François Servenière, Elson Otake e Luca Vitali (in memoriam). É um privilégio tê-los a me dar suporte em esferas distintas. Desde o primeiro post, minha dileta amiga e vizinha, Regina Pitta, lê os textos e faz revisão impecável. O compositor romântico Henrique Oswald (1852-1931) escreveria ao seu amigo, Furio Franceschini, que o pior revisor é o autor e, entre esses, era ele o pior. Assertiva. O texto flui  num impulso nas madrugadas e as duas ou três leituras não são suficientes para sanar gralhas (assim os portugueses definem incorreções) que parecem querer se ocultar. E como se escondem!  É humano. Regina passa a lupa, mercê de seu conhecimento de nossa gramática. Quando dúvidas pairam, recorre à Filologia. Sinto-me seguro. Após as devidas correções e sugestões – nem sempre aceitas, mas é bom ter uma outra opinião -, escreve um resumo em inglês, devido aos leitores acima do Equador que me honram com a leitura dos blogs, traduzidos sofrivelmente pelo programa do Google.

Magnus tem sido meu guru internético. Foi ele que me ensinou o que sei, isso em 2003. Só não aprendi mais por total descaso com a aceleração infalível da tecnologia. O básico possibilita-me o convívio com teclado e tela e os acessos que consigo atingir. Quando um impasse surge, é Magnus que me socorre, pois de seu computador pode acessar o meu e sempre, até agora, tudo se resolveu. Mente privilegiada a deste amigo que diariamente envia-me gravações fabulosas que dia a dia têm enriquecido o bom lado do YouTube, a contrastar com o besteirol que infesta esse meio de comunicação.

Elson Otake, não diretamente ligado ao meu blog, tem sido o responsável pela introdução no YouTube de cerca de 80 músicas por mim gravadas no Exterior. Preciosista, tem o dom da concisão e suas montagens são louvadas aqui e alhures. Maratonista, em muitas corridas de rua abdica de sua velocidade para correr ao meu lado. Um estímulo.

François Servenière. Compositor e pensador francês de altíssimo mérito, Servenière privilegia-me com mensagens de extraordinário teor. Nossa correspondência, nascida em 2008, é abastecida semanalmente. Todos os posts têm sua leitura acurada. Se a tradução Google tem tantas falhas, Servenière consegue sempre apreender a essência dos blogs e seus comentários enriquecem meus textos, pois o amigo insere leituras paralelas e reflexões profundas sobre o tema. Tão ricas são suas mensagens que o considero, hoje, um partner de meu blog. O leitor tem acompanhado, através dos Ecos, que ele está sempre presente. Fundamental é a possibilidade de novo olhar de um autêntico intelectual francês. Estimula a comparação, faz-nos apreender aspectos que por vezes nos passam desapercebidos. Privilégio.

Rendo tributo ao meu saudosíssimo amigo e extraordinário artista plástico Luca Vitali (1940-2013). Durante anos, Luca foi colaborador dedicado. Tantas vezes mencionei que o amigo tinha um lápis no cérebro. Ao conhecer um texto, um ou dois dias após enviava-me um desenho alusivo ao tema. Alguns eram charges de humor bem refinado. Faz-me muita falta o convívio semanal que mantinha com Luca. Arte era nosso assunto fulcral. François Servenière, ao ver as ilustrações da magnífica Série Cósmica (acrílico sobre tela) do artista, ficou tão impactado que escreveu sete Études Cosmiques para piano e, após a partida de Luca, mais um Estudo, Outono Cósmico. Em Abril voltarei ao tema, pois deverei gravá-los na Bélgica juntamente com Estudos Contemporâneos de outros compositores.

A família. Sem a harmonia que nos faz unidos indelevelmente, confesso que dificilmente conseguiria empreender trajetórias. Ela me traz a serenidade necessária. Epicentro essencial.

Se já ultrapassamos os 600.000 acessos, devo esse estímulo unicamente aos leitores que têm prestigiado minha coluna. Continuarei. É o que sei fazer.

This week my blog completes eight years of nonstop work, leading me to reflect on the pleasure of posting an entry every week – a flow of ideas that come to me during my street races. In this post I recall the subjects that are dear to me, expressing gratitude for the services of those who, behind the scenes, help me in this endeavor.