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Depoimento de um Músico e Pensador

Felix qui potuit rerum cognoscere causas.
(Feliz aquele que pode conhecer a causa das coisas)
Virgílio (Geórgicas, 2.490)

Os depoimentos de meu ex-aluno e atual professor no High Institute of Music de Damasco, Flávio Metne, causaram repercussão bem expressiva. Recebi inúmeros e-mails e até telefonemas de leitores que se impressionaram com a visão arguta de meu dileto amigo. Houve consenso básico a respeito do pensamento de Flávio Metne. Contudo, a leitura abrangente, a tudo captar, realizada pelo ilustre compositor, orquestrador e pensador francês François Servenière, concentra parte essencial das mensagens que li e ouvi a partir da recepção do blog do dia 1º de Outubro. Impressionou-me o fato que, ao postar o blog às 0:05 do primeiro dia do mês, abri o computador por volta das 9:00 da manhã e o substancioso depoimento já lá estava em minha caixa de e-mails. Com certeza polêmico, ele é pleno do mais profundo interesse e vem ratificar a transcendência do pensamento do músico francês. Transcrevê-lo não apenas evidencia um olhar diferenciado e d’além mar, como nos remete à história geopolítica dos países do Levante e à sua influência sobre o Ocidente. Pedi-lhe consentimento, traduzi seu texto e é com prazer que o compartilho com meus leitores.

“Anotei algumas frases desse post tão interessante. Uma delas, de Flávio Metne, e que tem minha concordância plena, impressionou-me de imediato e refere-se à busca da paz individual: ‘chega-se a um ponto em que tudo o que o cidadão quer, até o mais ilustrado dos homens, é que o deixem respirar’.  É como cá dizemos ‘qu’ils nous fichent la paix’.  Chegamos a compreender, ao estudar a política, que os dirigentes, sejam quais forem os países que governam, nada fazem para o povo que eles pretendem defender e dirigir. Na realidade, os  políticos perseguem apenas um interesse, os seus. Que eles o digam uma vez por todas! O resto  é senão discurso e manipulação. O interesse geral está raramente entre seus objetivos. Tantos têm um homem político na sua manga para que seus assuntos privados tenham resultado. A democracia não é mais um programa. ‘Votem, pois certamente  faremos o contrário do que prometemos’!

Clique para ouvir, com José Eduardo Martins ao piano de Fernando Lopes-Graça: Cosmorame – Quelque part dans le Levant

Gostei imenso do olhar de seu ex-aluno sobre a sociedade de seu país e aquele território que foi, nos tempos dos assírios, fonte da cultura europeia via Grécia pelo Danúbio, diferentemente  daquela outra, que fez o percurso pelo norte da África através das conquistas muçulmanas, como hoje ouvimos tantas vezes através de discursos militantes. A cultura e o conjunto de benfeitorias na Europa vieram do Levante por uma das rotas da seda, Pérsia, Síria, Damasco, Constantinopla, Atenas, Viena… Se de um lado parece-me evidente que o país de seu amigo Flávio Metne é um dos fundadores e está na origem de nossa cultura européia, sob aspecto outro difícil é aceitar – documentei-me durante muito tempo a respeito – a influência prioritária da cultura do sul. Aquela do Levante, portanto do Leste, é eminentemente esclarecida, diferentemente daquela do sul vinda da Arábia e transmitida a seguir para o norte da África. O Levante – Síria,  Líbano, Turquia – são Terras magníficas. Sim, é verdade que historicamente estamos diante de geografia conturbadas, como bem sugere Flávio Metne. É também verdadeiro que sua região é a única passagem entre o Cáucaso montanhoso, glacial e mortal durante o inverno, e o deserto da península árabe, intransponível para as caravanas comerciais pelos motivos do calor e da falta de poços de água para se ir do Oriente e do Meio-Oriente para a Europa. É a região do Ponto Euxino, nome antigo do Mar Negro, mas também o ponto simbólico que liga a Ásia à Europa. Seria natural que todas as invasões e todos os viajantes passassem por essas terras, belicosa ou pacificamente. E não nos esqueçamos do calor dos desertos e o drama da falta de água, o stress hídrico bem conhecido e origem de tantos conflitos e de guerras no mundo (verificar o interessante livro de Erik Orsenna sobre o tema, “L’avenir de l’eau”, Fayard). Nós, que vivemos em países com regiões bem irrigadas, como no Brasil e na Normandia, como sofremos frente à canícula! Naqueles países a canícula é o cotidiano. A água é o mais precioso tesouro, pois fornece alimento e vida. A guerra para obtê-la é, pois, consubstancial à cultura naquelas regiões. O petróleo como fonte de riqueza chega bem mais tarde, nas fronteiras dos séculos XIX – XX, apesar do petra oleum ser conhecido desde a antiguidade. Meu pai se lembra de uma viagem que fez à Palestina em 1947. O país não era ainda dividido entre israelenses e palestinos, o mandato da ONU era ainda britânico. Ele presenciou uma mulher ir a um poço para encher sua jarra de água quando um cavaleiro se aproximou rapidamente e a chicoteou, a fim de que ela se distanciasse do poço, pois devia ser o proprietário… Meu pai ficou profundamente chocado com o episódio por várias razões: a posição social da mulher (animal ou escrava?) e o direito universal à água. Para um ocidental, como ele ou como nós, são experiências que revelam muito mais do que não importa qual discurso, mesmo se considerarmos que a Turquia concedeu o direito ao voto às mulheres em 1924, o Líbano em 1926, a França em 1944 e a Síria em 1954”. No Brasil, o direito da mulher ao voto, a obedecer contudo algumas restrições data de 1932, sendo  essas eliminadas em 1934. Somente em 1946 o voto feminino passou a ser obrigatório.

Continua Servenière: “Eu gostaria muito de visitar a Síria assim que aquele país for pacificado, pois seu regime atual é desumano, tratando-se de uma ditadura sustentada por uma nomenklatura minoritária alauita a cerca de um século… Estado criado pelos franceses (daí o Código Civil) após a primeira guerra mundial, quando tiveram mandato da ONU sobre esse território.

Finalmente, como não se impressionar pela confissão de Flávio Metne, com a qual concordo profundamente em seus princípios filosóficos: ‘Aproveitando meu gosto pela introspecção, pela contemplação, leitura, coisas do espírito enfim, saio o mínimo possível de casa, evitando lugares lotados, ambientes poluídos, trânsito… O retorno é grande, pois leio os grandes mestres, escrevo bastante e o mais importante: dedos nas teclas’. Isso para lembrar aquilo que você escreve na introdução do post: ‘Apesar de lecionar piano, jamais pensei na formação de um pianista que não tivesse em conditio sine qua non uma visão musical mais ampla  e também uma sólida cultura humanística, únicas salvaguardas para a edificação de um músico completo’. Isso para provar que um músico é um órgão sensível integral e não, sob hipótese alguma, um indivíduo fora do mundo, como sugere a imagem de Epinal ou o espírito comum. O músico é um ser que vibra a todas as manifestações da vida, um espírito que retranscreve, com sua linguagem universal, todas as emoções vividas com mais intensidade do que qualquer  idioma nacional ou local poderiam fazê-lo. A música é universal. Ela consegue varrer as fronteiras, ela permite a comunhão de espíritos que, sem ela, ficariam milhares de quilômetros ou de anos-luz separados uns dos outros. A música prova que é universal pelo simples fato de unir os homens de uma maneira superior. Perguntaríamos, então, qual a razão de não ser ela a linguagem da diplomacia? Questão fundamental, a ser desenvolvida nos meios intelectuais ou do poder… eu sou muito sério! O artigo de seu blog é fabuloso e o relato de Flávio Metne, seu ex-aluno e amigo, particularmente envolvente e culto, como aliás você bem o descreve”.

O post é publicado no dia em que meu querido ex-aluno e amigo Flávio Metne retorna ao seu devotamento musical em Damasco. Que seus sonhos voltados à paz duradoura se concretizem!

Last week’s post about Syria gave rise to many comments. One in special I deemed noteworthy: written by the French composer and intellectual François Servenière, it clarifies some facts about the region of the Levant and also expresses a somewhat polemic position on the Muslim influence on European culture and society.

 

 

 

 

 

 

O que a Imprensa não Revela

Celui-là habitera mieux qui, faute d’eau, séche dans le désert,
en rêvant d’un puits qu’il connaît,
dont il entend dans son délire grincer la poulie et craquer la corde,
que celui-là qui, de ne point ressentir la soif,
ignore simplement qu’il est des puits tendres, vers où conduisent les étoiles.
Antoine de Saint-Exupéry  (Citadelle CLXXXVII)

Não poucas vezes mencionei minhas posições como professor universitário. Apesar de lecionar piano, jamais pensei na formação de um pianista que não tivesse em conditio sine qua non uma visão musical mais ampla e também uma sólida cultura humanística, únicas salvaguardas para a edificação de um músico completo. Para quem é do métier, impossível não notar lacunas, mesmo em se tratando de um hábil virtuose de ofício, daquelas atribuições fundamentais. Fora das lides interpretativas, haverá vazio de ideias.

Flávio Metne foi meu aluno na universidade. Questionador, colocava-me sempre em posição atenta às suas elucubrações sobre técnica, repertório, mormente dos países do leste europeu e daqueles pertencente à Ásia Menor. Dialogar com Flávio era um prazer estético. Sua evolução pianística nunca foi desprovida dos porquês dos procedimentos realizados. Sempre indagava sobre as razões do técnico-pianístico ou daqueles interpretativos.  Fonte de entusiasmo para seu velho mestre. O  Trabalho de Conclusão de Curso por ele apresentado foi notável e o aluno de piano não apenas tocou, como discorreu sobre a formação histórica da música nacional do Azerbaijão.

Flávio cresceu musicalmente. Atavicamente ligado aos povos do Levante, aqueles pertencentes à região ao nascente do Mar Mediterrâneo, ou seja, situados na costa ocidental da Ásia por ele banhada, Flávio fixou-se na Síria há mais de uma década, onde desempenha profícua atividade como professor de piano do The High Institut of Music em Damasco. Desenvolve também pesquisas relacionadas tanto à música como à língua árabe. Lê constantemente meus posts e nos correspondemos com certa assiduidade.

A atual situação da Síria, interpretada com exacerbação nem sempre confiável pela mídia, fê-lo colocar suas posições a respeito daquilo que, como cidadão a participar da vida do país, observa e presencia. Pensei pois transmitir ao leitor essas agudas observações. Tendo vindo a São Paulo durante as férias escolares, encontramo-nos diversas vezes e foi um prazer enorme esse contato, que se traduziria em um segundo texto de meu ex-aluno e dileto amigo, resultado também de nossas correspondências e encontros decorrentes dessa sua vinda a São Paulo.

Em Julho escrevia-me instigante e-mail de Damasco. Reproduzo seu texto na íntegra, com sua autorização, pois o desenvolvimento do amigo tem-se dado de maneira homogênea, e o leitor poderá inteirar-se das preocupações de Flávio em áreas outras, distantes das nossas, mas humanísticas.

“A demora em escrever algumas palavras poderia denotar  falta de estima… ao contrário, sua presença como mestre e amigo é contínua, seja através das gravações que ouço e as faço ouvir, seja  pelas preciosas idéias sugeridas em seus artigos. Talvez o mais motivador seja mesmo sua postura ante a vida.

Vamos em frente. Como você pode imaginar, o país esta passando por momentos difíceis e é impossível ficar ileso, mesmo que moralmente… Foram muitas as ponderações e penso que o destino do sistema vigente poderá afetar seriamente a vida de muita gente. Otimisticamente, gostaria de acreditar  que os detentores do poder neste país estão mais capacitados do que certos líderes da Liga e chegarão a um consenso inteligente. Caso isso não aconteça, poderá haver uma longa guerra civil ou a desgraça de uma teocracia, ou talvez a fragmentação do território em pequenos países, de acordo com as maiores religiões e etnias vigentes no Levante, e estas regidas por democracias de fachada.

A sociedade síria é uma trama complexa destas etnias, religiões e suas derivações, em cada uma delas há diferenças também culturais e econômicas, também com seus aliados internos e externos. Isso deve ser levado muito em conta ao se fazer qualquer análise.

Resumidamente, vejo três tipos de oposição. Uma oposição, diríamos, ideológica, ou seja, é fundamentada em idéias, comunistas ou nacional-sírias ou seja lá o que for. Outra grita por liberdade, mas com tendências declaradamente teocratizantes e fascistas. Um terceiro grupo composto por mercenários, com slogans muito pobres, quebrando , matando e fazendo declarações falsas às emissoras tendenciosas.

Tenho, como  você, o hábito de ouvir muito as pessoas. Ouço o  padre, o ministro, o exilado, o aluno, o colega de trabalho, o parente do interior, o filho do preso político, o pedreiro, o chofer, o tintureiro, o muçulmano rico, o muçulmano pobre, o cristão francofônico, o curdo sem nacionalidade, o agente, o militar, o nouveau-riche… as emissoras estatais e estrangeiras. Na maioria deles, o que há em relação à sorte do país é um grande ponto de interrogação estampado no rosto, fora as argumentações contraditórias, o diálogo surdo… O mais desesperador é que muitos indivíduos acreditam piamente que sua religião é a escolhida e que têm o direito, legitimado em seu livro sagrado, de apagar os outros do mapa! Estes também engrossam o caldo da ‘oposição’. A pressão internacional é considerável, tendendo a uma intervenção militar mal intencionada. Por outro lado, temo que se está usando, apesar da crise, os mesmos velhos métodos de manipulação popular; métodos estes que, ao meu ver, são aqueles que poderiam levar o sistema à falência.

Ontem foi sexta-feira, feriado, e ao pôr do sol causticante fui fazer uma visita a um parente. As praças cheias, as pessoas passeando, e no caminho que leva a Damasco centenas de famílias fazendo picnic com seus apetrechos, dos quais não falta o narguile. Que boa vida….Até que ponto o cidadão comum quer se envolver? Será que eles ignoram seu destino? Ou será que, depois de tantos conturbados séculos, sabem que nada podem fazer? Chega-se a um ponto  em que tudo o que o cidadão quer, até  o mais ilustrado dos homens, é que o deixem respirar em paz.

As tais aulas da sobrevivência… desvinculei-me definitivamente de uma pequena escola onde lecionava. Coloquei um ex-aluno meu no lugar para assim não prejudicar o  diretor. Era cansativo demais por tão pouco retorno profissional e financeiro. Fico somente com as aulas no Instituto Superior, cujos alunos prestaram vestibular e passaram por um exame de admissão e onde meus esforços são, pelo menos moralmente, mais bem empregados.

Aproveitando meu gosto pela introspecção, pela contemplação, leitura, coisas do espírito enfim, saio o mínimo possível de casa, evitando lugares lotados, ambientes poluídos, trânsito… O retorno é grande pois leio os grandes mestres, escrevo bastante e o mais importante: dedos nas teclas.

O que tenho escrito? Tenho em minha mesa cinco pastas, cinco assuntos mais ou menos relacionados. O sistema que adotei: leio diversas fontes e é impossível esgotar um assunto em uma semana.Vou lendo, vivendo e refletindo e depois de um tempo começam a se estruturar idéias em frases ou parágrafos. Escrevo e coloco na devida pasta, abastecendo-a de material para ser reavaliado e organizado em forma de texto. Não me preocupo logo no começo em colocá-las em um discurso linear. Se as idéias estiverem corretas, buscam seus pares e tudo correrá bem. Tenho, portanto, a liberdade de abandonar por um tempo um assunto e retornar a outro. Forma-se assim uma espiral ascendente e, cada vez que se retorna a um motivo, as idéias se esclarecem. Nunca se sabe quando uma relação interessante pode ocorrer. As idéias precisam de tempo para amadurecer e um distanciamento é  producente; prática sugerida na adolescência pelo meu  psicanalista.

Estou ocupado, por exemplo, com um estudo, ‘Fórmulas de Polidez’, em vernáculo árabe. Não estão escritas em nenhum compêndio. Devem ser retiradas do convívio com os locais, sejam entrevistas, peças de teatro ou fontes as mais diversas. São milhares de fórmulas – herança linguística – usadas no convívio social e  para cada ocasião uma fala, sua devida resposta e, às vezes, a resposta da resposta. São muito bonitas. Já tinha recolhido há muitos anos algumas frases, mas o impulso final veio a partir do Larousse, que tem uma parte dedicada a ‘Formules de politesse correspondant à divers événements’. Este é um trabalho mais acumulativo do que analítico, mas para o qual estou elaborando um pequeno comentário.

Outra pasta, o problema da avaliação pedagógica. Tenho participado anualmente das bancas examinadoras do Instituto e acredito que falta muito para uma melhor avaliação das provas práticas. Isso  me leva a uma série de reflexões a esse respeito e,  por conseqüência, foram devidamente escritas e serão propostas em futuro próximo.  Não é um texto longo e poderei enviar-lhe o rascunho se for de seu interesse. Interesse maior será o meu em moldar-me às prováveis críticas. Avante, a motivação é maior. As outras pastas também são interessantes, mas penso que já tomei demais seu tempo”.

Resultado de nossas longas conversas em São Paulo neste Setembro, Flávio escreveria:

“Nunca fui um ativista e confesso que, nos meus 40 anos, não teria paciência de sê-lo.  Sempre estou querendo saber e ouvir mais… Minha posição não me impede contudo de manifestar críticas a qualquer sistema existente.

Muitos assuntos eu não tratei em correspondências anteriores e que são, a meu ver, de suma importância. De passagem: o clientelismo impera, a corrupção institucionalizada; o código civil, importado da França,  foi enxertado numa sociedade com história e valores diversos do país de origem, muitas leis herdadas dos idos tempos otomanos ainda parasitam na constituição de uma sociedade que é governada por um partido socialista ‘laico’, alimentado pelo sonho pan-arábico. Previdência social ineficaz, sistema hospitalar péssimo, desrespeito visceral ao meio ambiente, imprensa… mais remedia do que noticia.

A sociedade levantina é puritana por natureza. A palavra como tal é crime e os tabus são muitos. Arrisco dizer que censura e puritanismo legitimam-se mutuamente. Acho pouco provável leis sobreviverem contrariamente à moral vigente. Existe, sim, uma elite educada e esclarecida. Ela tem consciência ambiental, habituou-se a fazer reciclagem, respeita a cultura alheia e integra com naturalidade os espaços em que vive, não corrompe e não é corrompida. Há bons escritores, corais relativamente bem treinados, compositores tentando, dentro de suas possibilidades, desenvolver uma linguagem nacional, programas de assistência social promovidos pela nossa excelente Primeira Dama e coisas afins.

Sob o aspecto cultural, dada a sua localização geográfica, o Levante compartilha imensamente do belo imaginário mediterrâneo. Muçulmanos e Cristãos convivem sem atritos maiores. Algumas cidades sírias poderiam bem estar em Portugal, Espanha, Itália ou Grécia e o inverso seria também válido. É só olhar os semblantes de homens e mulheres, as casas construídas com pedras escuras, ver casamentos, danças, ouvir adufes e gaitas; observar os vinhedos e as oliveiras, assim como as mulheres vestidas de luto e o culto à Virgem.  Acredito que essas semelhanças sobrevivam desde épocas anteriores às conquistas islâmicas. Indo mais a fundo,  a paisagem de cidades mais afastadas do Mediterrâneo, nela incluindo seus habitantes, aproxima-se mais de panorama existente na Península Arábica. Acrescentaria cidades a nordeste com traços mais centro-asiáticos em todos os aspectos.

A História da região não foi nada homogênea e sim plena de conturbações, seja nos tempos de Roma e de seus Césares, ou naqueles de Alexandre, pois o território pareceria fadado às ocupações.

O viajante que empreender um turismo sério, fora dos saguões cinco estrelas e restaurantes com música ‘para inglês ver’, poderá, a partir de uma atenta e prazerosa leitura das paisagens, aprender muito sobre a história da região.

Viver o cotidiano do país por uns bons quinze anos permite-me observar : os sírios vivem num país seguro? Sim. A pobreza é inferior àquela de outros do ‘terceiro mundo’? Sim. Pode-se andar pelas ruas à noite sem medo de assalto? Sim. Há alimento subsidiado pelo Estado? Sim. Há liberdade de culto? Sim. O mais relevante: a tolerância entre as diversas etnias e religiões e a solidariedade entre as pessoas, independentemente destas diferenças, é, de fato, admirável.

Transpondo exageros movidos por parcialidades e desinformação, penso que uma reavaliação mais sensível deveria ser feita, evitando assim julgamentos e decisões políticas de consequências nefastas.”

Flávio me apresentaria fotos por ele tiradas na Síria. Compartilho cinco delas com meus leitores. Tem-se muito do país e do que vai no interior do olhar de meu querido amigo.

Flavio Metne was one of my students at the university in the past and for more than ten years he has been living in Damascus, where he is a piano teacher at the High Institute of Music. We keep in touch by e-mails and meet when he comes to São Paulo on vacation. In this post I transcribe two interesting messages received from him, in which he gives his views on today’s civil unrest in Syria and also on the diverse fabric that makes up the Syrian society.

 

A Magia da Amizade

La grande objection
que les matérialistes ont toujours faite aux spiritualistes
et qu’ils font encore, mais moins hardiment aujourd’hui,
se résume en ceci: Pas de pensées sans cerveau.
L’âme ou l’esprit est une sécretion de la substance cérébrale;
le cerveau mort, la pensée s’arrête et il ne reste rien.

Je ne suis qu’un instant de Dieu,
mais tout instant est éternel.
Maurice Maeterlinck
(Gent – 1862, Nice – 1949)

As relações humanas são muito complexas, mormente quando envolvem a atividade principal do ser. Quando o músico tem o privilégio de gravar no Exterior, pode ele ser instado a fazê-lo em vários centros do planeta. Estou a me lembrar que, após recital na Rode Pomp em 2006, um agente de gravadora super conhecida mundialmente, durante o jantar no restaurante contíguo à sala de concertos, e que funcionava de quinta à sábado à noite após as récitas, convidou-me para com eles gravar, a dizer que a tiragem seria bem superior à artesanal da Rode Pomp e que a difusão, por consequência, resultaria extraordinária. Perguntei-lhe em que lugar eles gravavam. Respondeu-me que dependia das circunstâncias e que elas poderiam ser realizadas em qualquer parte do mundo. Fiz-lhe uma segunda pergunta, já a saber a resposta, pois conhecia inúmeras gravações do importante selo: “posso escrever o texto do CD”? A resposta foi clara, “não”, pois geralmente nem textos explicativos havia nesses CDs. Para mim, o texto do intérprete que acarinhou um projeto contém algo de etéreo e espiritual, a formar o amálgama com a mensagem sonora. Naquele instante chegava André Posman. Diante do agente, disse ao grande amigo que nossas gravações continuariam ad eternitatem a se processarem na mágica capela Sint-Hilarius, em Mullem, sob a direção de meu querido amigo e engenheiro de som Johan Kennivé. O cidadão ficou um tanto quanto pasmo quando me levantei e dei um afetuoso abraço em André Posman. Se anteriormente gravei CDs na Bulgária e, circunstancialmente, em Portugal, para um projeto preciso e dignificante a envolver o extraordinário compositor Lopes-Graça, é em Sint-Hilarius que meu de profundis aflora e que consigo transmitir minha mensagem musical na atmosfera do inefável. É uma dádiva ter um Grande Mestre como Johan Kennivé, sensível e sereno a captar as reverberações de Sint-Hilarius. O que podem significar a grande divulgação ou aquela palavra tão decantada, “sucesso”, diante daquilo que realmente somos? A “herança musical a ser deixada”, proposta por André Posman, tornar-se-ia o desafio incessante em busca da qualidade ímpar.

A honraria outorgada por Sua Majestade Alberto II, Rei dos Belgas, que me foi entregue pelo Sr. Cônsul Geral da Bélgica em São Paulo, Sr. Peter Claes, teve comentários vindos das longínquas terras, que me comoveram sensivelmente. Essas amizades ficaram de tal maneira intensas que seria difícil transmiti-las ao generoso leitor. Três desses amigos que estão presentes no meu cotidiano e que anualmente são motivo de alegria imensa quando chego a Gent, escreveram pequenos textos: Johan Kennivé, André Posman e Tony Herbert. Cada um a mostrar dados que nos uniram indelevelmente. Um quarto depoimento veio de Magnus Bardela, meu ex-aluno na universidade e há tantos anos meu professor absoluto na computação e no apreciar as edições de meus CDs. A ele devo gratidão eterna pela edição de quatro dos meus CDs gravados em Sint-Hilarius quando não tinha as menores condições físicas de fazê-la devido às intensas quimioterapias. Magnus foi impecável, mercê da competência muito elogiada por Johan Kennivé. Da França, François Servenière traça comovente apreciação do relacionamento humano e estabelece bela metáfora. Por fim, Álvaro Guimarães, saudoso amigo, responsável pela minha primeira visita às terras flamengas. Estivesse entre nós, certamente Álvaro teria participado desses momentos que ficarão guardados no coração e na mente (vide Álvaro Guimarães 1956-2009, In Memoriam. 04/07/2009).

“A cada ano em que meu amigo José Eduardo gravava na Capela Sint-Hilarius, em Mullem, num piano vindo especialmente para suas gravações, os compositores podiam apreciar os sons no pequeno cemitério que circunda o templo. O piano de concerto que ocupava a capela tornava-se o centro de uma religião extraordinária e imaterial. Assim como anualmente temos a Páscoa e o Natal, assim também todo o ano meu amigo José Eduardo retornava às gravações. Representava ele a definição da duração de cada ano. Quando nós dois, irmanados, lá estávamos na obscuridade e no silêncio da noite, José Eduardo impedia que o tempo continuasse a sua trajetória, pois o cansaço não o atingia. Diria que meu amigo tinha uma outra noção do tempo. Dez horas da noite, meia noite, 5 da manhã, e a eternidade nunca esteve tão próxima. Nós ambos, o piano, a reverberação de Sint-Hilarius e os compositores que ouviam e entendiam a amizade eterna através da Música.

Penso que agora os compositores não entendem o porquê de a Música ter desaparecido de Mullem. Eu expliquei a eles: José Eduardo começou a correr. Atravessou os oceanos para mostrar aos brasileiros a pequena cidade de Mullem com as suas cervejas Triplet-Trappists, com os túmulos ancestrais do cemitério, com os compositores que reviviam a cada ano, numa ressurreição de seus espíritos e suas músicas, através das mãos do grande pianista José Eduardo Martins. Foi devido a esse trabalho, com repertórios por vezes duríssimos, noites e noites, como o alpinista que deve continuar ou morrer, que José Eduardo sofreria cirurgias na base de seus dois polegares, destruídos pelo esforço. Ele sofreu com amor. Não seria a estética uma maneira de sofrimento? Como amigo eu digo que José Eduardo Martins merece a honra de receber de Sua Majestade Alberto II, Rei dos Belgas, a condecoração “Officier de l’Ordre de la Couronne”. Tenho a certeza de que José Eduardo dirá: ‘Je t’aime beaucoup et je t’embrasse de tout coeur’.
José Eduardo é um amigo para a vida e para a eternidade”.
Johan Kennivé – Engenheiro de som

“Foi em 1999 que André Posman, organizador dos concertos na Rode Pomp, pediu-me para abrigar o grande pianista José Eduardo Martins. À sua virtuosidade como intérprete, José Eduardo tem o dom da curiosidade. Eu gostava de contar a ele tudo o que eu sabia sobre a Bélgica e sobre a minha cidade natal, Gent; José tudo ouvia interessado. Percorremos a cidade ao longo dos anos, e nada lhe era indiferente. Certamente a vida cotidiana e os costumes locais diferem bem daqueles de São Paulo. Tudo o que ele via era motivo de questionamento: como e porquê. Rapidamente vi-me incapaz de lhe dar uma boa resposta. Na realidade eu não sou especialista nesses aspectos da minha Gent. Todavia, José não podia ir dormir sem antes saber todas as respostas. É bem possível supor que ele perguntasse a cada Gantois que cruzava seu caminho, ou ainda ter ele pesquisado na biblioteca – eu não sei – mas no dia seguinte, durante o café da manhã, ele me dava a resposta bem detalhada à pergunta que eu não conseguira responder no dia anterior. Em pouco tempo, José Eduardo sabia mais do que eu sobre a vida cotidiana belga.

Resumo: José Eduardo é como os novos aspiradores robotizados. A informação é para ele o que a poeira é para o aspirador. Ele busca a informação e as assimila, sem nada escapar. Evidentemente, José Eduardo é mais do que um aspirador-robot; tem um coração de ouro, onde a Bélgica ocupa um lugar importante.
E, finalmente, José Eduardo tem um bom senso de humor.
Viva a Bélgica! Leve België! Viva o Brasil”!
Tony Herbert – meu eterno anfitrião em Gent. Sua foto ilustra o post anterior. (vide TTTT e o Saber Viver. 12/04/2008)

“Foi com imenso prazer que eu soube que você receberá a condecoração “Officier de l’Ordre de la Couronne”. Como presidente da entidade cultural De Rode Pomp em Gand, eu estou profundamente orgulhoso, pois ajudei a construir a sua “herança artística” através dos 11 CDs da mais alta qualidade gravados para o nosso selo, assim como organizei mais de vinte apresentações suas como recitalista e camerista em minha sala de concertos em Gand. Também traduzi para o flamengo, para a nossa revista de música “Nieuwe Vlaamse Muziek Revue”, artigos escritos por essas mãos ricas de cultura e de conhecimento, oportunidade que tive para conhecer muitas coisas interessantes sobre a música e a cultura brasileiras.  Curiosamente, eu propus projeto similar de ‘fixação de herança artística’ para muitos grandes artistas, mas você foi o único que o realizou, você foi o único que compreendeu a empreitada, tendo vontade de investir a energia, esportividade em entender as várias situações e o precioso tempo para realizar um projeto internacional que construímos solidários. Eu lhe agradeço de todo o meu coração e chegará o tempo em que  escreverei nossa história desde os primórdios.
Eu desejo ao meu querido amigo muitos anos de fértil produção”.
André Posman – Presidente da Rode Pomp

“Acompanhei meu amigo e professor em algumas de suas atividades nas terras flamengas e lembro-me bem do inverno que enfrentamos em 2004, na ocasião do “Internationale, tweejaarlijkse vertolkerswedstrijd van hedendaagse kamermuziek” (Bienal Internacional de interpretação de música de câmara contemporânea), concurso da Antuérpia, onde JE durante três dias participaria  como membro do júri. A neve e o vento gelado nos castigavam naquelas longas caminhadas entre a estação de trem e o teatro De Singel – o que nos resultou em um resfriado de épicas proporções. Segundo a meteorologia, havia sido o pior inverno dos últimos anos.
Visivelmente cansado, pois passara as madrugadas da semana anterior gravando em Mullem, JE permanecia firme e bem humorado. No entanto, não sabíamos que o considerável esforço físico, somado à perda recente de seu querido genro, iriam despertar os primeiros sintomas de um grave linfoma, o qual combateria, durante os próximos meses, com a fé e o querer-viver incomuns que possui dentro de si.  Lembro-me do grave e-mail enviado pelo amigo: relatava o sombrio diagnóstico dos médicos e dizia que não se deixaria abater. E, de fato, não se abateu, pois fixou metas, deu recitais ainda convalescente e se propôs a gravar a integral dos Estudos de Debussy no ano seguinte – “se Deus assim permitir…”, como dizia.
Para JE, viver era poder retornar aos palcos coloridos criados por Boris Chapovalov na Rode Pomp; era se dirigir à madrugada silenciosa da planície flamenga, ao coração de sua querida Capela St. Hilarius em Mullem e deixar sua herança musical sob a companhia de pedras de mil anos e dos modernos microfones do amigo Johan Kennivé.
De lá para cá, muito aconteceu. O professor teve concedida não apenas a Divina Permissão  para o CD Debussy, mas também para tantas outras gravações, recitais, blogs, livros, honrarias e corridas(!) que vieram e ainda estão por vir.
Assim sendo, penso que a condecoração recebida do Reino da Bélgica no último dia 18 deveria ser entendida de maneira especial. Afinal, não seriam os mais de vinte CDs e inúmeros recitais lá realizados o resultado dessa relação amorosa com o país e as pessoas que JE elegeu para confiar sua música? Se assim entendermos, descobriremos o que a distinta medalha vem realmente reconhecer: o amor e a dedicação incontestes desse grande artista e amigo”.
Magnus Bardela – ex-aluno, hoje meu professor nessa complexa área da informática.

“Essa história de amor com a Bélgica contada por você é apaixonante de se ler. Descobrimos todo o tecido de relações, palavra terrivelmente adequada, quando percebemos que toda essa ramificação, efetuada por mais de 15 anos ao seu redor, foi construída por você ou por outros daquele país, para se chegar aos dias de hoje. Uma aranha não teria construído uma teia tão perfeita”!
François Servenière – compositor e orquestrador francês

In this week’s post I publish messages I received from friends in different countries with stories inspired by the insignia I received from the Belgian government.