O retorno aprazível

Se não apontares ao impossível, te sairá baixo o tiro ao possível.
Agostinho da Silva
“Espólio”

Foi no longínquo 1971, ano em que a cidade de Goiânia comemorava seus 38 anos de fundação, que pela primeira vez me apresentei na cidade. Já demonstrava a vocação de ser uma das pujantes do Centro-Oeste, apenas superada por Brasília em termos populacionais. Minha relação com a cidade se prolonga ao longo de meio século, volvendo periodicamente a fim de recitais promovidos por diversas entidades, mas também para cursos, congressos e bancas universitárias junto à Universidade Federal de Goiás.

Estou a me lembrar de ter oferecido curso na Escola Mvsika para jovens postulantes à carreira musical, após realizar duas apresentações em anos sucessivos.  O convite veio através da referencial pianista e professora Glacy Antunes de Oliveira, uma das fundadoras do estabelecimento. Foi no biênio 1974-1975 que frequentei a cidade no fim de cada mês para aqueles encontros didático-musicais. Com alegria reencontrei na atual visita antigos frequentadores do curso e que hoje desempenham profícua atividade musical na cidade.

O universo dos afetos contempla geograficamente cidades que são caras por motivos diversos. Não é fácil saber os motivos das escolhas, pois eles naturalmente se instalam em nosso de profundis. Se Paris ficou-me indelével pela formação primordial entre os anos fronteiriços às décadas 1950-60 e pela relação posterior intensa em torno de Claude Debussy; se Gand, na Bélgica, me é preferencial sob outra perspectiva, pois lá me apresentei mais de vinte vezes e pelo selo De Rode Pomp foi lançada a maioria de meus 25 CDs gravados na mágica capela Saint-Hilarius, em Mullen, milenar pequena cidade próxima à Gand, sendo que espero finalizar minha atividade pianística nessa cidade flamenga, mercê do legado e de indelével relacionamento humano; se Portugal como um todo, pois cerca de vinte cidades foram visitadas para recitais prioritariamente, mas também para outras atividades culturais ao longo de 60 anos e afetos imaculados incontáveis; em termos pátrios uma cidade tem para mim significado especial, Goiânia. Quantas outras foram repetidamente visitadas e das quais guardo recordações que perduram! No crepúsculo da atividade pianística seria possível aceitar que o curso mencionado nos inícios da década de 1970 fincou sólidas bases, o que fez com que aos sucessivos convites para várias atividades ligadas à música tivessem singular posicionamento. Diria que os elos forjados naqueles tempos permaneceram imunes a quaisquer possibilidades adversas.

Durante o período mais sombrio da pandemia resolvi doar parte substancial de minha biblioteca musical, incluindo partituras, à Universidade Federal de Goiás. Uma camioneta da UFG retiraria 14 caixas com esse primeiro acervo. Alguns amigos e professores comentaram que a destinação deveria ter sido a Universidade de São Paulo, onde permaneci durante 27 anos. Não obstante essas salutares divergências, entendo que o Sudeste já está contemplado por acervos consideráveis não apenas nas três universidades paulistas, como nas do Rio de Janeiro e outras mais… Le coeur a ses raisons que la raison ignore, já professava Blaise Pascal (1623-1662). Diria que razão e coração se incluem na minha decisão, que será completa quando de minha ida para os anjinhos. Minha mulher e filhas não apenas acatam, como estimulam o envio à UFG do acervo que ainda mantenho e que me possibilita continuar pesquisas… A modesta contribuição será propícia àqueles pesquisadores do Centro-Oeste e, só de pensar nesse futuro debruçamento de estudiosos, traz-me aquilo que professava meu padrinho de crisma, D. Henrique Golland Trindade (1897-1974), arcebispo de Botucatu,  que oficiou meu casamento com Regina em 1963: “santo orgulho”. Saber destinações.

O convite de Gyovana Carneiro, professora da UFG e “agitadora” cultural em Goiânia, e que no início dos anos 1990 frequentou curso que ministrei na pós-graduação na USP, foi no intuito da realização de um recital na nova sala da cidade, pequena e aconchegante, “Estúdio de Piano & Experiência Musical Natália Mendoza”. Trata-se de uma nova proposta que atende, paradoxalmente, ao decréscimo da aceitação da denominada música de concerto, mormente para as novas gerações, bombardeadas diariamente por um sem número de outros anseios através dos mutantes meios internéticos. O pequeno espaço, à la manière das ancestrais comunidades cristãs, que se reuniam sempre com intensidade exemplar, torna-se igualmente um local de resistência. Grata surpresa foi a presença de figuras relevantes do meio universitário e cultural de Goiânia, entre elas o Reitor da UFG, professor Edward Madureira, e outros docentes das várias áreas do conhecimento, entre os quais Anselmo Pessoa (literatura italiana),  assim como membros da sociedade amantes da música de concerto que compareceram ao evento que, numa primeira parte, homenageava o nosso ilustre Gilberto Mendes, mercê do centenário do compositor (1922-2016). A seguir interpretei criações de Bach-Liszt, Debussy, Oswald e Scriabine (sesquicentenário de nascimento).

Faço minhas as palavras de Mario Vargas Llosa que, em seu consagrado livro “La Civilización del espectáculo”, vaticinava a queda da cultura erudita. Ela se processa a passos largos. Se considerarmos os mais ventilados sites portais do país, logo nas páginas de abertura não mais há quaisquer resquícios alusivos à atividade da “outrora” alta cultura, duas palavras que eram habituais, inclusive a designar importante instituição portuguesa, “Instituto de Alta Cultura”. O leitor se lembrará de que anos atrás tencionaram retirar dos currículos escolares brasileiros autores como Camões e tantos outros luminares, numa tentativa rasteira de minimizar a cultura tida por esses mentores como elitista. Não houvesse resistência entraríamos num obscurantismo literário. Os sites mais frequentados do país privilegiam o supérfluo, a derrocada dos costumes e da moralidade, pois temas ligados a sexo e suas “modalidades” estampam as primeiras páginas desses concorridos portais com vexatória permissividade, em acréscimo abandonando o trato basilar da língua mater. Estou a me lembrar de tempos outros em que, durante uma década, escrevi para o Suplemento Cultural de “O Estado de São Paulo”. O saudoso e notável editor responsável, Nilo Scalzo, dizia que na redação havia um especialista que revisava todos os textos do denominado “Estadão” e do “Jornal da Tarde”, a fim de que erros ortográficos, de sintaxe e outros mais não aparecessem nas publicações. Quantos não foram meus textos de três páginas sobre música e arte publicados nesse outrora veículo exemplar?   A permissividade atual dos portais apresenta-se plena, sem pejo e todo um besteirol é transmitido às novas gerações. Infiltrado nas mentes, proliferam como erva daninha. Arte, literatura, música pareceriam pertencer, para esses portais, atividades “jurássicas”. Sob a égide da música efêmera, multidões, mormente de jovens, acorrem aos espetáculos de altos decibéis e rigorosamente descartáveis. Valor intrínseco, nenhum. Dizia eu em Goiânia que a morte trágica de cantora goianiense levou cerca de um milhão de pessoas aos seu sepultamento. Naqueles dias faleceu o maior pianista brasileiro da segunda metade do século XX e reconhecido no mundo como um expoente, Nelson Freire. Menções relativizadas e mínimas na mídia. Semanas após, pouco se falava da cantora. Nelson Freire permanecerá através de um legado indiscutível, felizmente registrado em gravações memoráveis.

Acredito firmemente que, apesar da nítida decadência da cultura erudita, focos de resistência existirão. Se décadas atrás tínhamos várias salas de concerto em São Paulo, como exemplo, e músicos consagrados e os jovens promissores recebiam público numeroso, hoje um teatro e uma sala, ambos grandes, recebem público considerável, mormente quando nomes consagrados no Exterior aqui aportam para récitas. As pequenas salas fecharam suas portas, e duas ou três continuam heroicamente a resistir. Intérpretes qualitativos nelas se apresentam e recebem ouvintes selecionados, que ainda cultuam a atividade musical erudita. Inúmeras vezes mencionei que na década de 1950 São Paulo tinha treze críticos musicais, que resenhavam considerações competentes tanto para os luminares como para os iniciantes. A maioria deles era versada em música. A cidade agigantou-se e a crítica musical estiolou-se. Não mais há o crítico musical de ofício, apesar de alguns assim  se autodenominarem. É de se lamentar.

É pois relevante a inauguração de uma sala pequena, mas que servirá de estímulo às manifestações de recitais e cursos. Se Goiânia teve, entre baluartes da arte pianística, a amiga saudosa Belkiss Carneiro de Mendonça (1928-2005), formadora de uma geração de competentes pianistas e que me concedeu o privilégio de prefaciar seu último CD, a chama da música de concerto não feneceu e o piano deverá continuar a revelar talentos, apesar dos tempos desalentadores. Que a esperança não feneça!

It is always a pleasure returning to Goiânia for musical activity. I have been there to present a recital in honour of the remarkable composer Gilberto Mendes in the small and cosy room of the “Studio of Piano & Musical Experience Natália Mendoza“, in the presence of a select audience.