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Um livro referencial de Carolina Ramos

“Canta… Sabiá!” não é, somente,
manifestação poética da inteligência de Carolina Ramos, sua autora.
É, também, canto lírico do seu coração entoado em florilégios,
como saudação à Pátria,
brindando a alma brasileira com o que há de mais belo
na criatividade dos seus sentimentos patrióticos.
Domingos Trigueiro Lins
(Academia Santista de Letras)

A autora, natural de Santos, tem obra consolidada como escritora e poetisa, sendo também artista plástica e musicista.  Seus livros abordam contos, contos natalinos, poesias, trovas e biografias. Membro de várias Academias de Letras, presidiu a UBT – União Brasileira de Trovadores Seção de Santos, de 1968 a 2018.

Carolina Ramos compareceu ao meu recital derradeiro na Pinacoteca Benedicto Calixto, em Santos, no dia 31 de Agosto e me ofereceu um dos seus livros, “Canta…Sabiá” (Santos, Folclore, 2021).

“Canta…Sabiá!”, ao abordar extensa pauta em seus capítulos, percorre de maneira plena as nossas raízes autênticas. Os dois primeiros capítulos são dedicados ao folclore. Define o folclore, sua importância nas Artes, estende-o ao Brasil em suas múltiplas manifestações, penetrando a seguir no mapeamento a abranger os Estados brasileiros. Didaticamente, nessas premissas Carolina predispõe o leitor a conhecer o que há de mais precioso da cultura popular perpetrada em sua abrangência no Brasil.  Não o faz sem o auxílio de vasta bibliografia, que dimensiona suas apreciações pessoais. Menciona largamente os autores que a precederam nesse incansável labor.

Um terceiro capítulo encanta pela riqueza de uma temática que, ao correr do tempo, tem sido basicamente relegada, não apenas pelo açodamento de outros derivativos, que de maneira avassaladora obliteram tradições perpetradas pela oralidade. O advento da era internética trouxe consigo transformações de hábitos, deterioração da linguagem e desinteresse pelas raízes autênticas do povo. Carolina resgata com carinho, em pequenos subcapítulos, provérbios, parlendas e ditos populares, ditados e refrãos, trava-línguas, pregões, cantigas de ninar, cantigas de roda, superstições, amuletos, crendices e simpatias, adivinhas, frases de caminhões. É realmente um deleite a revisitação desse adagiário que ainda ecoa no de profundis de gerações. Conhecê-lo é entender a riqueza dessas tradições, infelizmente tantas delas estioladas.

O subcapítulo “Trava-línguas” é definido pela autora: “Trava-línguas é uma espécie de Parlenda com repetição propositada de sílabas difíceis de serem pronunciadas. Daí o nome a sugerir tal dificuldade”. Entre as várias citadas: “Sabia que a mãe do sabiá não sabia que o sabiá sabia assobiar?” Carolina Ramos insere três Trovas “Trava-línguas” de sua autoria:

Trava a língua… trava o passo,
trava todo o batalhão…
- quando a tropa troca o passo,
troca a paz… por confusão

Não tema que o tema eu tema,
temas não temo, porque,
que importa qual seja o tema,
meu tema é sempre:- Você!

Minha vida ganha impulso
e mais impulso ganho eu,
sempre que sinto o teu pulso,
pulsando junto do meu!

No quarto capítulo a poetisa se expõe: Poesias e Trovas de Sabor Folclórico, Saci-Pererê, O Riomar I, II e II, O Canto do Uirapuru, Paiquerê, Foguete de Lágrimas, Negrinho do Pastoreio, Café, A Morte do Verde, Lobisomem, Velho Rio, Por uma Noite… Rainha!, Protesto do Rio, Seca, Árvore, Ser Emília, Bumba-Meu-Boi, A História que a Fonte Contou, Cataratas do Iguaçu, Canção do Sertanejo, E o Carnaval Começa, Boiúna de Prata, Trovas, Personagens do Folclore, Ecológicas. E é Carolina Ramos a buscar inspiração nesse rico material da nossa cultura popular através da sensível veia poética:

“Café”

Cabeça erguida, a sugerir confiança,
num passo firme de quem não rasteja,
surge do solo fértil a pujança
do cafezal, promessa benfazeja!

Chega a florada! O verde que é a esperança,
pintalga-se de branco! E gira e adeja
a brisa à sua volta, igual criança
que nas flores o fruto já deseja!

E de rubis o cafezal se cobre!
Logo em seguida, sem clamor hostil,
é despojado do seu manto nobre!

E o seu aroma, cálido e viril,
vai perfumar o lar do rico… ou pobre!
Café – sangue moreno do Brasil!

No quinto e último capítulo, Carolina Ramos, após perscrutar as profundezas das raízes do folclore pátrio, expõe uma deliciosa parcela de contos de sua lavra, “Contos Rústicos, Telúricos e outros mais”. Alguns temas já revelam, pelos títulos, a atenta observadora que dá asas à imaginação, alicerçada num convívio permanente com as manifestações genuínas de um povo ainda não contaminado pelo advento da internet e de suas múltiplas decorrências. Tem-se, nessa vasta temática, alguns títulos instigantes: “Velha Rixa”, “Palavra de bandido”, “Santinha”, “O ‘Meu’ Sanhaço”, “Zéco”, “Férias na Roça”, “O horror de uma queimada”, “Catatau”, “Zé Sanfoneiro”, “O conto contado”.

A leitura de “Canta… Sabiá!” leva-nos a deduzir que se trata de uma verdadeira enciclopédia, não acadêmica, diga-se, mas afetiva de nossas raízes mais profundas voltadas à hoje tão minimizada cultura popular autêntica. Carolina Ramos dedicou sua existência a captar o que há de mais sensível nessa gente simples, devota, responsável. Nela inexiste a palavra superficial. Tudo brota do persistir no culto das tradições dos antepassados, único caminho desse povo tão esquecido. Carolina Ramos atinge o âmago desses personagens sem rosto para a sociedade que, a cada geração, mais deles se distancia.

Recomendo vivamente “Canta… Sabiá”!. Faz-nos pensar, e muito…

Carolina Ramos, teacher, poet, writer, musician and visual artist, on her book “Canta… Sabiá!” unveils sensitive segments of Brazil’s rich folklore in its most varied manifestations. A reference book on this subject.

 

Visões enriquecedoras sobre o livro de Dino Buzzati

Todo bom livro deve saber provocar a espera:
ler é esperar a sequência.
Frédéric Beigbeder (1965-)
(escritor e crítico francês)

A recepção ao post anterior foi expressiva, quase todos os e-mails com frases curtas louvando o instigante romance de Dino Buzzati.

Selecionei algumas mensagens de leitores que já conheciam o livro. Alguns também assistiram ao filme que leva o mesmo título. O certo é que “O Deserto dos Tártaros” é uma obra que suscita não apenas uma leitura. A tradutora Aurora Bernardini me afirmou que o notável sociólogo, crítico literário e professor Antônio Cândido (1918-2017) leu o livro reiteradas vezes, tendo escrito um ensaio crítico basilar sobre o conteúdo.

Ricardo Tacuchian, compositor e professor universitário, escreve:

“Quanta profundidade em sua resenha sobre o livro de Dino Buzzati! Estaríamos todos nós internados numa fortaleza, aguardando a invasão dos Tártaros? No entanto, um belo texto como o seu é um refrigério para todo este deserto que pode ser, também, um florescente parque.”

Carolina Ramos, escritora, poetisa, artista plástica:

“Não posso calar a  minha surpresa com relação à sua  explanação sobre o livro ‘O Deserto dos Tártaros’ que, ‘abelhudamente’, fui buscar no seu blog. Não apenas seus dedos mas também a sua pena é de ouro!”

Flávio Amoreira, escritor, poeta e crítico literário, pondera:

“José Eduardo, deve-nos mais análises desse quilate de outros autores, sua dissecação de uma obra que inaugura toda uma vertente de realismo fantástico e congêneres sugere mais e mais autores por ti lidos. Fico muito feliz por ter aproximado a imensa mestra Aurora Bernardini de você, que sucede Gilberto Mendes em minhas raras afeições associadas à interlocução intelectual que escasseia num mundo ‘frivolizado’. Saúdo o amigo e a literatura italiana na semana em que celebramos outro vate universal: Ítalo Calvino, que faria cem anos neste domingo, 15 de outubro. Enfatizo a  importância de mais literatura no teu antológico blog.”

Marcos Leite, arquiteto, comenta:

“Hoje me atrasei na leitura do seu blog, não o peguei na saída do forno aos 11 minutos, mas o devorei agora pela manhã. Esse livro, ‘O Deserto dos Tártaros’, me foi marcante, ganhei-o de presente de aniversário no início dos anos 80 de uma querida estagiária que trabalhava no meu escritório. Visto agora, passados 40 anos e com a memória rebuscada pelas suas sempre pertinentes e aguçadas considerações, me fez refletir sobre o sentido filosófico das esperanças e perspectivas humanas projetadas e a realidade que vai se descortinando na vida ao longo dos dias, dos anos e das décadas. Os acontecimentos, bons e maus, são consequências das nossas ações pretéritas e não apenas das nossas vontades. Assistir passivo ao nascer e ao por do Sol do alto da muralha não alterará a rotina e esse é um ensinamento da escola da vida que todos, em seu íntimo, percebem, mas poucos se sujeitam a por em prática, esperando que a horda dos Tártaros venha lhe dar um novo rumo. Os seres humanos deste bendito planeta ainda têm muitas fortalezas a abandonar e muitos desertos a desbravar.”

Eliane Ghigonetto Mendes, viúva do compositor Gilberto Mendes, tece ponderações sob a égide espiritualista:

“De fato, morre-se mais de cansaço de não saber por que se vive do que de cancro e do coração. O não saber do porquê da nossa existência, que é saber o que é o Amor, precisando para isso que se realize a Grande Obra de nossa Viagem Interna em direção à Perfeição pela Razão e pela Sabedoria de volta a reinar… Alma, espírito e corpo, unidos em cada segundo de nossas vidas, inseparáveis, para que a nossa Consciência Suprema possa sempre nos observar e guiar…”

Regina Maria, revisora, apresenta comentário arguto sobre a interpretação do livro frente ao filme:

“Assisti ao filme O Deserto dos Tártaros, mas nunca li o livro. Através de seu blog notei algumas diferenças entre os dois. O filme não é atemporal, por exemplo, porque logo no início define-se o ano, 1907, em que Giovanni Drogo termina a escola militar e segue para uma fortaleza numa fronteira distante. O próprio ator principal comentou numa entrevista que o filme não foi uma adaptação fiel do livro, porém manteve suas contradições e tensão dramática. Imagino que algumas situações tenham sido inventadas na passagem para a linguagem cinematográfica. A diferença maior, verdadeira surpresa, é reservada para o final. Se no livro o ataque inimigo nunca se concretiza, no filme a invasão dos tártaros realmente acontece. A meu ver, foi uma alteração bem-vinda. Drogo, que esperara toda a vida por esse momento, adoece e não comparece ao encontro que justificaria sua existência. Se, como no livro, os invasores não tivessem chegado, a espera dos militares no forte continuaria indefinidamente e o revés do personagem principal não teria tanto peso. Mas seus colegas, alguns, como ele, tendo passado anos à espera do confronto, estão a postos. Nas palavras de um dos soldados, muitos dariam tudo para ficar e aproveitar a ocasião. Para os que ficam, a expectativa de transformação se cumprirá com o combate iminente. Esse detalhe do filme, a meu ver, superdimensiona a desdita de Drogo. Ele fracassa duas vezes: não consumando seu projeto de vida e vendo seus companheiros de armas fazê-lo.”

Gildo Magalhães, professor titular de Ciência da Comunicação da FFLESCH- USP:

De ‘O Deserto dos Tártaros’ apreciei também a competente versão fílmica de Valerio Zurlini (com Jacques Perrin, Philippe Noiret, Vittorio Gassman e outros). Todavia, tem razões o caro amigo, pois não há como um filme ‘traduzir’ um livro (traduttore – tradittore….) Parece-me um pouco como as transcrições musicais – mesmo quando boas, serão algo diferentes do original?”

Depende da competência de quem transcreve uma obra musical. No caso específico das composições de J.S.Bach para órgão ou coral transcritas para piano, há resultados extraordinários, que se tornaram legado para os intérpretes, mercê das qualidades de Liszt, Busoni, Siloti, Kempff, Myra Hess e outros, pianistas excelsos.

Apraz-me saber que leitores que desconheciam o livro de Dino Buzzati propuseram-se  a adquiri-lo, levando em conta o conteúdo tão apropriado às esperas interrogativas do mundo atual.

The previous blog, focusing on Dino Buzzati’s “The Stronghold”, was the subject of many messages, all of them relevant. I’ve selected five for this post, confirming the immense quality of this great novel.

 

A espera e a existência estiolada

Morre menos gente de cancro ou de coração
do que de não saber para que vive;
e a velhice, no sentido de caducidade,
de que tantos se vão,
tem por origem exatamente isto:
o cansaço de se não saber para que se está a viver.
Agostinho da Silva
(”As Aproximações”)

A morte é a curva da estrada,
Morrer é só não ser visto.
Fernando Pessoa

Recebi semanas atrás, da minha dileta amiga Aurora Bernardini, professora titular da Universidade de São Paulo, notável tradutora, escritora e crítica literária, “O Deserto dos Tártaros”, de Dino Buzzati (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 8ª edição, 2020). Deve-se a ela e a Homero Freitas de Andrade a tradução do instigante livro. Na década de 1980 li “O Nome da Rosa”, de Umberto Eco, impecavelmente traduzido por Aurora.

Dino Buzzati (1906-1972) atuou em várias áreas, pois jornalista, escritor e artista plástico. Uma das personalidades mais destacadas da literatura não apenas italiana, mas também da Europa. Entre seus livros destaca-se “O Deserto dos Tártaros” (1940), obra-prima do autor, que ganharia extraordinária repercussão nos meios literários.

Dino Buzzati não situa os palcos dos acontecimentos. O livro é ageográfico e atemporal, mas faz supor que as ações se passem ao norte da Itália, pois o autor nasceu em Belluno, comuna italiana da região do Vêneto, no norte da Itália. Montanhas abruptas, estão próximas à cidade. Esses ingredientes possibilitam o entendimento, ao menos pictórico, do cenário. O período igualmente é vago. Comunicações, armamentos, carruagens, luneta, iluminação podem sugerir o século XIX. Essas imprecisões dimensionam a concentração no essencial, a espera, através de gerações de militares, de um vir a ser que se estiola graças ao imobilismo ditado pelas incertezas.

O autor do prefácio, Ugo Giorgetti, insere em seu texto preciso um testemunho de Buzzati que possibilita antever a narrativa: “De 1933 a 1939 trabalhei no Corrieri della Sera no período noturno. Era um trabalho monótono e aborrecido, e os meses passavam, e passavam os anos, e eu me perguntava se seria sempre assim, se as esperanças, os sonhos, inevitáveis quando se é jovem, iriam se atrofiar pouco a pouco, se a grande ocasião viria ou não”.

A figura central, o jovem militar Giovani Drogo, morador da cidade, teria de cumprir estágio em uma enorme e sombria fortificação em região montanhosa que, desde épocas remotas, era anteparo à possível invasão dos tártaros. O acesso, realizado a cavalo, é longo e cansativo. Ao chegar, a descrição de segmento do forte aguça a imaginação do leitor quanto à sua dimensão, pois Drogo é guiado por um tenente da guarda: “… os dois se dirigiram para um vasto corredor, do qual não se conseguia ver o fim”. Buzzati pormenoriza ao longo do livro as tantas outras configurações da fortaleza, internas e externas. Centenas de soldados lá viviam a guarda-las. Da vontade de retornar à cidade quase imediatamente após a chegada, à espera do desenrolar dos quatro meses iniciais após “promessa” de militar superior, “…e talvez houvesse por trás disso o pensamento consolador de que estaria sempre em tempo de partir”, décadas seguiram o seu curso.

Não sem questionamentos interiores, a sedimentação de anseios e dúvidas selaria o destino de Giovani Drogo.

Dino Buzzati descreve reiteradas vezes segmentos do entorno da fortificação: “montanhas rochosas”, “despenhadeiros pontiagudos”, “penhascos escarpados” e “…adiante existe um grande deserto” Nas muitas alusões, talvez para reforçar o narrar, fica evidente a presença do sombrio a contrastar com a ausência descritiva do belo. As estações e intempéries são reiteradas vezes mencionadas com pinceladas desprovidas de emoção. Cenário adequado para complementar o enredo.

São dois os retornos de Giovani Drogo à cidade natal. Num primeiro, sente um distanciamento de sua mãe, se considerado for o convívio no mesmo espaço até a sua primeira ida ao forte aos 20 e tais anos. Encontra-se com uma amiga e laços anteriores possibilitariam um recomeço afetuoso. O som de um piano, talvez como estímulo ao clima do encontro voluntário, é várias vezes mencionado. Nesse ambiente, envolto pelas sonoridades, bastariam umas poucas palavras para que a saga de Giovani Drogo fosse outra. Elas não vieram. “No íntimo, existe até uma tímida satisfação de ter evitado bruscas mudanças de vida, de poder entrar de novo tal e qual na velha rotina”. Muitos anos após uma segunda visita, conscientiza-se de que a relação com seus conhecidos fenecera. Aqueles com quem outrora convivera tiveram suas realizações e Giovani Drogo surge quase como um estranho: a mãe não mais existia, a amiga afetuosa há tempos partira para a Holanda. Tudo a indicar o destino definitivo, a fortificação. Nele permanece, sempre a aguardar o inimigo. Sinais de luzes observados pelas sentinelas, periodicamente, antevendo a esperada chegada dos tártaros, insinuam a espera sempre adiada. Expectativa e esperanças que evaporam e o evento maior não acontece. Os tártaros não chegam. Envelhecido, doente, vive momentos angustiantes, pois há indícios de que o inimigo se aproxima.  Todavia, uma carruagem, com o fim expresso de retirar Giovani Drogo às pressas para tratamento na cidade, chega à construção militar. Em breves palavras, Buzzati sintetiza o drama, “enxotado do forte como peso importuno”. Dos novos militares, apenas “…uma despedida curtíssima, com aquela afeição genérica que é própria dos jovens para com as velhas gerações”. No retorno faz parada em uma pousada. Esvai-se a existência… Giovani Drogo fracassa ao não assistir ao único desiderato de vida, o enfrentamento. À noite, solitário e moribundo, encontra o fim. A morte como redentora.

“O Deserto dos Tártaros” é uma obra com várias interpretações, daí sua riqueza reflexiva. O homem a buscar a plena humanidade? Hesitações que o levam à estagnação não sonhada, mercê da asfixiante rotina que o impede de perceber devidamente a corrida do tempo. Para Giovani Drogo, a espera do confronto era a esperança. “No fundo teria bastado uma simples batalha, uma única batalha, mas na verdade, atacando em uniforme de gala e sendo capaz de sorrir ao precipitar-se em direção dos rostos herméticos dos inimigos”.

Aspectos fulcrais da rígida disciplina militar permeiam a saga daqueles que permaneciam na fortificação. Os personagens de “O Deserto dos Tártaros” transitam em suas diversas funções e obedecem à hierarquia. O afeto é sufocado pela visionária espera sempre adiada.

Em situação rotineira, Giovani Drogo vigia o lugar mais alto de uma parte do forte, “… o reduto inteiro e cem metros de muralha dependeriam só dele”. “Veio-lhe a mente que não ficava bem, para o oficial de guarda, dormir”. Não obstante, em outro tempo, ele não resiste e dorme ao alvorecer, após noite gélida. Faz-me lembrar do livro capital de Antoine de Saint-Exupéry (1900-1944), “Citadelle”, obra igualmente atemporal e ageográfica. O narrador, senhor berbere que reinava sobre o Império, ao fiscalizar a fortificação encontra uma sentinela a dormir. Apesar de considerações serenas a respeito da responsabilidade e do apreço à sentinela, condena-a à morte, pois, ao ter adormecido em uma função essencial, colocou o império à mercê de um possível ataque inimigo. Sob outra égide, Buzzati narra a tragédia do soldado que, tentando retornar ao forte, não se lembrava da senha obrigatória e sempre renovada. Embora reconhecido pelas sentinelas, é abatido com um tiro. Obediência aos protocolos. Um segundo militar encontra a morte durante uma cavalgada investigativa com outros parceiros, “…morrera no topo de uma montanha, no cerne da tempestade, conforme ele quis, realmente com muita elegância”. São as duas vítimas fatais do romance, a anteceder a morte de Giovani Drogo.

Numerosos os personagens de “O Deserto dos Tártaros”. Atravessam a vida de Giovani Drogo com suas personalidades distintas, uns mais amistosos, outros apenas frutos da convivência cotidiana. Conversas, alguns raros passeios, refeições conjuntas, jogos de cartas, inexistência da amizade estreita. Dos superiores hierárquicos aos de menor patente, o convívio de Giovani Drogo se estabelece, em princípio, sob a égide da invasão dos tártaros. O quando do instante do acontecido? De um major, após um vislumbre falso de ataque inimigo: “Agora então, depois da última experiência, quem você quer que ainda acredite nisso seriamente?”

Por vezes Buzzati prolonga-se à exaustão sobre determinado episódio, aparentemente sem interesse. Quanto aos longos diálogos entre os personagens do forte sobre temas do cotidiano, estariam deslocados se não estivessem inseridos no contexto do ritmo sem brilho e inexpressivo da rotina. Reprises da espera, nuances interpretativas e “O tempo, inexplicavelmente, pusera-se a correr cada vez com maior velocidade, engolindo os dias uns após os outros”. Não obstante, seria possível entender que essa técnica tem significado se associada à monotonia da rotina, maiormente nas várias situações voltadas às luzes detectadas à distância pelas sentinelas. A luz como alerta, a luz como prenúncio do fim da espera? Tomado por extrema e perturbadora atonia, no peristilo da morte, “O major Giovani Drogo, consumido pela doença e pelos anos, pobre homem, forçou o imenso portal negro e deu-se conta de que os batentes caíam, abrindo espaço para a luz”. A luz como esperança da vida e da morte. Sente que “jogara fora os melhores anos, agora queria ao menos esperar até o último momento”.

“O Deserto dos Tártaros”, ao aprofundar-se na imaterialidade da espera, põe a nu a tragédia humana. Indagado, o homem de qualquer geografia aguarda algo. Mesmo que não tenha qualquer almejo na vida, sua certeza é a morte, e o preceito medieval mors certa, hora incerta é o único sem contestação.

“The Stronghold”, also translated as he “Tartar Steppe”, a work by Dino Buzzati, is an indispensable book, one of the great novels of the 20th century. The setting of the novel is undetermined, with no specific location and time.  The reader is told the story of a young soldier who is sent to a fortress and, amidst doubts and a few certainties, remains there for decades, waiting for the Tartars’ invasion, which never happens. A lifetime passes and, sick, his only certainty is a redemptive death.