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A Mulher Brasileira e seus Textos sobre Música

Finalement, il faut y insister, le XXe siècle signe, avec la scolarisation massive des filles,
l’accès des femmes à la parole théorique, littéraire et artistique,
et cette appropriation de la culture n’as pas encore produit tous ses effects.
Françoise Thébaud

Em reiterados posts tenho-me debruçado sobre dissertações e teses, aceitando integrar júris no Brasil e no Exterior somente ao verificar tratar-se de trabalho acadêmico original e profundamente estudado, assim também, como premissa, saber quem orienta. Não poucas vezes insisti que de um bom orientador pode-se esperar majoritariamente dissertações e teses consistentes, pois este saberá assistir, ler e estar atento inteiramente às tentativas e aos acertos do orientando. Em contrapartida,  um mau orientador “gerará” trabalhos plenos de equívocos. Há casos em que o “orientando”  está tão acima do mau orientador que o ajuste da bússola dependerá unicamente do candidato. Hélas, pululam maus orientadores por esse imenso país, mercê das avaliações burocráticas universitárias e dos institutos de fomento que glorificam a quantidade sem penetrar no âmago das obras produzidas pelos docentes. Currículos que estariam a demonstrar, em tantos casos, a competência apenas aparente.

Ao aceitar a participação no júri que deveria julgar a tese de doutorado da professora Susana Cecília Almeida Igayara-Souza, já partia do pressuposto que não permite o tergiversar. Admiro trabalhos anteriores da professora, a segurança como coralista e regente coral, a  capacidade como musicóloga e o devotamento pleno à causa musical. Integrei o júri que analisou sua dissertação de mestrado, a versar sobre a extraordinária Missa de Requiem, de Henrique Oswald. Sua orientadora no doutorado, a professora Cynthia Pereira de Sousa, da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, apresenta currículo real e é considerada nos meios acadêmicos.

A singularidade da tese já está expressa no título: Entre palcos e páginas: a produção escrita por mulheres sobre música na história da educação musical no Brasil (1907-1958). Entende-se, pois, ter a professora Susana escolhido a Unidade de Educação da USP.

Curiosamente, na pintura, figuras como Georgina de Albuquerque (1885-1962), Anita Malfatti (1889-1964) e Tarsila do Amaral (1886-1973) tiveram suas criações respeitadas e ombreadas àquelas produzidas por pintores renomados brasileiros. Mesmo nessa seara, dois exemplos de pressão da sociedade que entendia a criação como domínio masculino estariam a demonstrar submissão da mulher criativa, ou sob o peso do magister, no caso de Auguste Rodin (1840-1917) e Camille Claudel (1864-1943) em França, ou sob a égide da ideologia camuflada em estética, protagonizada por Monteiro Lobato e Anita Malfatti. Ambas sofreriam perenes sequelas.

Se considerarmos que em 1849 o Brasil se tornaria o terceiro maior importador de partituras da França, músicas essas destinadas à prática doméstica ou aos salões, muitas delas transcrições de obras em voga na Europa; se entendido for o país como também forte  importador  de pianos; se a realidade mostraria ser a mulher a prioritária “pianista” familiar, sendo a prática um dos atributos da boa educação, não seria difícil apreender que, no momento em que uma consciência de liberação feminina surgiu, no campo da música ela se destinasse à transferência de prática até certo ponto caseira - experiência viva -, para textos ou livros em que mulheres corajosas depositaram seus conhecimentos e seus aprofundamentos, que já se faziam sentir. Paradoxalmente, movidas por motivos tantos, a área composicional permaneceria, no campo da música erudita, de concerto ou clássica reservada aos homens. Se exemplos existiram da presença de mulher compositora de méritos no século XX, eles foram raríssimos.   

Preliminarmente louve-se Susana Igayara por ter buscado na área musical segmento que poderia ser considerado árido se comparado à composição. Digno da tese e de tantos outros registros essa forte tendência da mulher de voltar-se aos estudos da educação musical em suas várias divisões no período que se estende de 1907 a 1958. Quais não foram os percalços a fim de que a mulher conseguisse sair de uma experiência pianística majoritariamente amadora para esses descortinos que a levaram à necessidade de transmitir o conhecimento, de aprofundar-se em pesquisas que se mostravam nebulosas? Como bem salientou Susana Igayara em sua competente sustentação, à mulher era vetada até  a presença nas orquestras no início do século XX, pois determinados instrumentos não eram considerados pertinentes à sua condição. Sobre outra égide, a mulher prioritariamente buscava o estudo da área musical no ensino superior. Através do Recenseamento Geral de 1940, de 9.650 mulheres com curso superior, seria a Música a ostentar primazia, pois 2.648 se formaram. A seguir vem a área da Farmácia, com 1.841, e Odontologia, a formar 1.225. Curiosamente, apenas 456 homens estariam formados no segmento da Música, segundo o Censo. Essa realidade corrobora a edificação do pensar de Susana Igayara.

Em sua tese, a autora apresenta diversas categorias de textos ou livros sobre música escritos por mulheres. Esses livros teriam como temática a escolarização; o ensino especializado; a formação técnica; a qualificação cultural e artística; a divulgação. A partir dessas várias opções Susana constrói com segurança o seu trabalho acadêmico e figuras que ficaram esquecidas no turbilhão da história emergem e nos causam admiração pela abrangência com que desenvolveram seus escritos naquela primeira metade do século XX. Ao debruçar-se sobre a professora Alexina de Magalhães Pinto, revela-nos o olhar arguto da personagem, que encontraria nas canções de crianças e do folguedo popular e no folclore rico do país farto material a ser tratado literariamente. Alexina tem a chama do pioneirismo. Susana Igayara estuda Amélia Rezende Martins, imbuída da cultura européia, pois oriunda de família aristocrática e voltada à musica. Um de seus livros, apesar de nítida releitura das obras sobre Beethoven de Romain Rolland, lega  uma apreensão do compositor inédita no Brasil. Sua filha, Maria Amélia, foi professora e excelente pianista.

A primeira metade do século XX assiste ao desabrochar desse olhar atento à educação musical de jovens, assim como um cuidado especial ao repertório. Se a França continuaria a ser um espelho, mormente nos primeiros decênios, frise-se o debruçar sobre o nosso cancioneiro popular e o rico folclore pátrio. Emerge a figura de Heitor Villa-Lobos, que estará a frente de tantas decisões educacionais do Estado. A mulher terá participação decisiva, a atuar como professora, e a denominada normalista seria referência nessa transmissão. Nomei-se o Canto Orfeônico, que seria fundamental a esse aprendizado coletivo, e grupos ou mesmo massa de participantes davam, inclusive, o viés ideológico claro no Estado Novo. Como sempre à testa, como mentor institucional, Villa-Lobos. Susana Igayara observa bem essa “missão” atribuída ao autor das Bachianas. Canto Orfeônico e Canto Coral, temas relevantes que a autora soube bem distinguir, a evidenciar, por vezes, a vontade no período de os ter como quase sinônimos.

Duas figuras emblemáticas são estudadas nesse mister voltado à formação de professores e à condição da mulher a lecionar: Leonila Beuttenmüller e Ceição de Barros Barreto. Autoras de livros publicados no final da década de 30, apresentavam características bem definidas, a primeira ainda a guardar uma tradição onde não faltaria até envolvimento “onírico”, a segunda já a apontar para caminhos que mais acentuadamente conduziriam aos trabalhos acadêmicos, hoje essenciais. Acompanhar embates de Ceição de Barros Barreto com a hierarquia da Instituição é verificar prática que apenas se propagaria posteriormente. Frise-se a produção literária musical da professora, que se estenderia de 1930 a 1950.

A presença do Palco reservado à mulher artista é devidamente estudada. Em sendo o piano o instrumento referencial desde meados do século XIX, dedilhado preferencialmente por mulheres, tornar-se-ia evidente que as três extraordinárias pianistas que ocuparam a atenção no Brasil e no Exterior pertencessem a essa majoritária faixa de praticantes. Antonieta Rudge (1886-1974), Magdalena Tagliaferro (1893-1986) e Guiomar Novaes (1896-1979) encantaram com suas interpretações de altíssimo nível platéias pelo mundo. Registros fonográficos evidenciam a qualidade das três expoentes da arte do piano. Contudo, Susana Igayara detém-se igualmente na arte do canto, com figuras como a excelsa cantora Bidu Sayão (1902-1999) e as notáveis Vera Janacopoulus (1892-1955) e Madalena Lebeis (1912-1984). Menção a Cleofe Person de Matos (1913-2002), regente coral, professora e musicóloga, assim como a tantas outras intérpretes de mérito, a ratificar, em sua tese, o multidirecionamento e a importância da mulher na música brasileira.

Três pianistas que se dedicariam ao texto como veículo maior de suas intenções são apresentadas por Susana Igayara. Victoria Serva Pimenta, aluna de Luigi Chiafarelli, sistematiza em livro  o seu método de ensino; Sofia Melo Oliveira publicaria uma quantidade de textos, a evidenciar o papel preferencial da análise para o conhecimento amplo musical; Iza de Queiroz Santos é autora de obras que ainda hoje são referências, caso específico de Origem e Evolução da Música em Portugal e sua Influência no Brasil (1942).

A tese não deixa de considerar algumas biografias escritas por mulheres sobre personalidades da música brasileira: Iza Queiroz sobre Francisco Braga, Leozinha de Almeida sobre Henrique Oswald. Outros relatos biográficos são mencionados. Durante minha arguição, ponderei a problemática da biografia escrita por admiradoras confessas de músicos estudados, mormente se houve relacionamento musical intenso professor-aluna, compositor-intérprete. Quando escritos sur le tard, esses trabalhos podem adquirir a aura fantasista e dados correriam o risco de ser contestados à luz da evidência. Seria também o caso da legendária pianista francesa Marguerite Long ao escrever, em três livros, suas relações pianísticas com Fauré, Debussy e Ravel.

A tese de Susana Igayara será doravante referencial, pois à quantidade de documentação apresentada soma-se a alta competência vocacionada da autora. Esperemos, que após devidas adaptações visando à publicação destinada a músicos e ao leitor menos especializado, o significativo estudo de Susana Igayara seja essencial para próximos debruçamentos sobre a matéria, que resultarão em novas dissertações e teses, a sedimentar a importância da mulher na cultura musical brasileira no século XX.

A banca examinadora, presidida pela Profª Drª Cynthia Pereira de Sousa, da Faculdade de Educação da USP, teve a participação dos professores-doutores Maria Lúcia Spedo Hilsdorf (F. de Educação-USP), Anibal Francisco Alves Bragança (Universidade Federal Fluminense), Maura Lucia Fernandes Penna (Universidade Federal da Paraíba) e este, aposentado da Universidade de São Paulo.     

Comments on the PhD thesis defended by Susana Igayara at Universidade de São Paulo. It is a historical study that aims to situate and analyze the written production of women about music, related to several educational contexts in Brazil, during the first five decades of the 20th century.

Betho Ieesus

 

Azul, azul do céu
Onde meus olhos se perdem
Onde longe é azul
Intocável azul
Azul da andorinha
Calor
Longe
Ao longe
Betho Ieesus

Estava a estudar quando tocam a campainha. Atendo meu amigo e vizinho Alberto, cujo pseudônimo é Betho Ieesus. Trazia-me impresso seu livro de poemas que acabara de chegar às suas mãos, A Casa de Vidro (São Paulo, Sun Trip, 2011) Conhecia-os todos, pois escrevi o prefácio movido pelo interesse inusitado que as curtas mensagens imbuídas de carga poética me proporcionaram. Conversamos um bom momento a respeito não apenas da feitura gráfica do livro, como das fiéis reproduções dos desenhos de Betho Ieesus nele contidos. Brevemente haverá o lançamento, que poderá ser acompanhado através de seu site www.bethoieesus.com.br. Entendi oportuna a inclusão no post da semana do prefácio de A Casa de Vidro, coletânea de seus poemas. Ei-lo:

Betho Ieesus é figura singular, entendido na multiplicidade curiosa de seu pensar. Poucos têm vários dons e apreendem  a multiplicação. Engenheiro de áudio, pintor, cantor, instrumentista, poeta e conversador polêmico. Em todas as atividades a que se propõe deixa a marca de seu entusiasmo. Na área artística atua sem culpa por mim, palavras suas tiradas de outro contexto, mas que bem poderiam ser transplantadas para o todo de seu multidirecionamento. Betho Ieesus consegue interpretar a vida de maneira crítica, sem perder o humor.

Conhecia alguns de seus quadros, onde não faltam alusões permanentes à musica e ao violão, seu instrumento eleito. A visão pictórica forte não despreza a subjacente reverberação sonora, razão basilar de seu desempenho profissional. Quando se projeta no canto, acompanhando-se ao violão, interpreta sua dupla criação música-poema com uma voz plana, mas não desprovida de interesse. Há tantos exemplos entre cantadores cult consagrados pela mídia que assim desfilam seus repertórios. Percebe-se que busca transmitir a dupla mensagem com sinceridade, sem qualquer empáfia. Letra e música de seu CD Hora Absurda traduzem a inquietude social, mesmo que a realidade do cotidiano tente mascará-la.

Betho Ieesus reuniu vários de seus poemas,  ilustrando-os  com desenhos de sua lavra. Nasceu A Casa de Vidro. Se há nítida admiração pela poesia concreta, se Ieesus é cultor desde sempre de Fernando Pessoa, há certamente ascendências em seu trato poético. Os curtos poemas, contituídos tantas vezes de frases aparentemente sem lógica, se relidos justapõem-se como em um jogo mental de puzzle. Para o leitor apressado ou para o menos avisado, essas frases pareceriam sem nexo. Contudo, uma soturna coerência paira no todo dos 63 poemas.

Diferentemente da visão onírico-nostálgica de Chico Buarque, denuncia a violência à espreita em “A Janela”: As janelas perderam seus vigias/Senhoras que viam o tempo passar/Moças bonitas esperando um belo olhar/agora… a ausência/A grade que impede o olhar.  É-lhe preferencial o tempo, esse passar inexorável em “Olhos que Passam”: Pessoas passam/Como sempre passam/Passarão novas pessoas/Olhando passarão/Olhos fundos/Olhos que passam/Que sempre passarão. A ritualística na significativa metáfora em “Chuva”: … A chuva que passa/Estendida pelo chão/Esquartejada pelas rodas…  A sempre preocupação com o tempo cronológico no poema “Página”, quando Ieesus amalgama físico-mente : Meu tempo de voar é agora/Nem antes ou depois/Já voei com asas/Já voei com a mente/Agora com asas e mente…  Johan Kennivé, o magnífico engenheiro de som da Bélgica, confessava-me que o silêncio é seu equilíbrio para transportá-lo às incontáveis gradações sonoras que compõem seu universo musical. O triângulo de Betho Ieesus é preciso e revelado em “Pedra”: Bater na pedra/Rebater/contar/No canto das pedras/Silêncio/Música/Deus. Sob outra égide, um brincar com as letras daria bem a medida da “Rua Direita”: “Calça ali/Calça leve/Calça aqui, breve/Caça ali/Caça leve/Caça apenas Caça/Breve”. O quebra-cabeça não tem peças basicamente idênticas ?

O lúdico como elemento inseparável vaga por vários poemas. Reminiscências do “Balão”: Colorido balão/Habite meus pensamentos/Volte de lugar nenhum/Dos lugares por aí/De visitar tudo/Sem nunca precisar esquecer. Mais acima do espaço baloneiro vem “Culpa”: Céu de estrelas/Longe cidade/Céu aberto/Um milhão de estrelas/Olimpo/Lá conversam sobre o homem/Lá na terra das estrelas/Nos palácios cheios de infância/Onde vi a estrela cadente e pedi/Pedi por mim/Sem culpa/Por mim.

Um poema é dedicado ao “Violão”, seu instrumento eleito. Ele, Betho, aluno do saudoso Henrique Pinto: Tenho um violão que brilha/Enquanto velho perde a cabeça/Toca coisas para dentro de mim/Sujeito cheio de coisas/Ensina a viver dentro de mim.

Segue Betho Ieesus seu caminho. Por vezes parece-me um sonhador, ou aquele que tudo observa, ou um conquistador de horizontes imaginários. Para quem for à leitura de seus breves poemas, a releitura dará sempre um novo sentido. Um puzzle em movimento, sempre à espera da peça que falta.

Betho Ieesus is a multi-talented artist: sound engineer, painter, guitar player, composer, singer, writer. I’ve in hands his just published book “A Casa de Vidro” (The Glass House), a selection of some of his poems illustrated by the author himself. Short free-verse poems, showing influence of the concrete poetry. I see them as “puzzle poetry”: provocative and often making readers experience a baffling effect, until new readings unravel the secret and one finds the missing piece.

O Músico Frente às Opções

François Servenière. Clique para ampliar.

 Ce que l’on te reproche, cultive-le, c’est  toi même.
Jean Cocteau

Amizades  independem do tempo que escoa. Podem permanecer uma existência inteira, têm a prova de fidelidade, mãe de todas virtudes. Se recentes, mas sob a égide da sinceridade, a concentração se dá, e será possível entendê-las como hors du temps. Não por outro motivo, entre os budistas relações são compreendidas como pertencentes a gerações que podem “levitar” durante séculos ou milênios. Ciclos da renovação.

O acaso levou-me a conhecer François Servenière, compositor, orquestrador e pensador de  méritos. Buscava ele no site musimem.com dados sobre o excelso pianista e professor Jean Doyen, mestre de sua professora de piano e meu também. Ao verificar a foto inserida em meu texto no site mencionado, teve a grata surpresa de ver a mesma imagem, só com outra dedicatória. Ao final da matéria havia o meu site, e assim Servenière me escreveu. Trocamos  e-mails durante bom período.

Quando meu dileto amigo Elson Otake sugeriu a inclusão no YouTube de algumas gravações por mim realizadas na Europa, certo dia recebi um imenso e-mail de François Servenière a considerar as interpretações, deslumbrado pela presença de compositores que desconhecia, como o conimbricense Carlos Seixas (1704-1742), Almeida Prado (1943-2010) e Ricardo Tacuchian (1939- ). Hoje já são 51 músicas no YouTube – som e imagem. Passamos a trocar longos e-mails sobre música, estética, criação, postura do artista frente à mídia e do compositor diante de escritas tortuosas. Penso num futuro publicar nossas reflexões.

Fixamos um encontro quando de minha ida a Paris em Janeiro, a fim de participar do júri de duas teses de doutoramento na Université Sorbonne. Num dia sem atividades acadêmicas, almoçamos e permanecemos à mesa em restaurante em Montparnasse das 12:30 às 18:00 !!! O compositor frente às múltiplas tendências, o intérprete diante do repertório, missão de ambos, mesmice ou renovação, estética, literatura, aventuras, corridas… Temas tratados com empatias. Não faltaram menções jubilosas à família, seus quatro filhos, minhas filhas e netas, nossas mulheres. Tempo para um conhecimento que se nos antolhava ancestral. Entreguei-lhe quase todos os meus CDs gravados na Europa, enviando-lhe mais tarde outros pelo correio. Servenière também me ofereceu CDs que gostei imenso e uma partitura singular, Tribulations d’un Écureil Lambda (coleção a conter sete peças para piano). Durante o almoço, solicitei ao amigo um comentário a respeito das gravações que se traduziria, esperava eu, em mais um e-mail. No final de nosso único encontro caminhamos pelo Boulevard Montparnasse, pegamos o metrô até Convention, e andamos a conversar pela rua do mesmo nome. Dia a não se esquecer.

Em posts anteriores (vide Ecos da Cirurgia da Mão – Rizartrose, 30/10/10 e Rue de Lévis,  20/11/10), abordava o pensamento e a criação musical de François Servenière (1961- ). Excelente compositor, orquestrador e editor musical, mas sobretudo músico sensível na acepção. Algumas de suas composições  podem ser apreendidas através de seu site inserido no menu de meu blog e bem evidenciam os caminhos por ele traçados. Escreve tanto música de concerto como para filmes, ballet e clips, assim como o gênero canção. Sua magnífica criação para dois  pianos, Rhytmics and Repetitives (24 peças para dois pianos), teve gravação em França pelo extraordinário pianista François-René Duchable e Hélène Berger e em Tokyo pelo duo Tetsu e Mazaki.  Mencionaria, entre tantas outras obras de Servenière: Apologie des Fragances (1ª Sinfonia), Énigme (ballet para piano, percussão e amostragens), La Belle et la Bête (Suite Sinfônica), Queue Diable (piano, percussões e orquestra sinfônica), Exercices de styles (25 peças para piano). Há várias criações de Servenière para filmes: Les Pirates de Noël (Suite Sinfônica), Gagliostro, Zigomar contre Nick Carter. Gabriel Yared, Oscar de música do filme O Paciente Inglês, assim escreveria sobre Servenière: “… uma música muito original, estruturada sobre um grande senso de arquitetura, de harmonia e de contraponto. Há muito tempo não ouvia obras que me fazem ter esperanças pela música”.  Após longas reflexões a considerar a composição, especialmente para piano, de escrita extremamente complexa e até de difícil entendimento para o público, chegaria à conclusão que deveria, sem se abster da alta qualidade, criar obras que penetrassem o coração dos homens. E um universo se lhe ofereceu, livre das amarras ditadas pelas tendências hodiernas.  Aberto a todos os gêneros, sua música é extraordinariamente bem escrita, a causar uma sensação penetrante. Foge das elucubrações – as tais obras de primeira e única apresentação. Para quem tem o privilégio de conhecê-lo, seu pensar é vasto e percorre numa conversação de Spinoza a Woody Allen, da Grécia Antiga à modernidade. Cultura enciclopédica, assimilada e reflexiva. Diria, bem o espírito francês clássico de clareza, elegância e criatividade. Uma de suas obras que me encanta é Seasons Vertigo, quádruplo  concerto para piano e orquestra, que pode ser ouvida na íntegra (12 peças) ou em segmentos.

Clique aqui para ouvir a Suite Seasons Vertigo de François Servenière.

Após o meu regresso à minha cidade bairro, Brooklin-Campo Belo, mergulhei  nos meus estudos pianísticos, em meus escritos acadêmicos ou não, nas leituras e retornei às corridas, hoje fazendo parte de minha respiração. Um silêncio de um mês se fez, até que, repentinamente, recebo de François Servenière um dossier completo de todas as minhas gravações, analisadas em seus pormenores. Foi uma emoção muito grande, pois acredito inusitado tão grande debruçamento monolítico sobre a obra pianística de um intérprete. Esperava um e-mail a comentar o apanhado geral crítico, recebi 37 páginas ! Servenière, à maneira de tantos autores russos, analisa, mas se posiciona, e suas experiências pessoais no campo musical intercalam a audição de meus CDs. Ao ouvir La Boîte à Joujoux de Claude Debussy, como exemplo, estava a partilhar o espaço seu filho Tom de 14 meses que, como toda criança nessa idade, não pára. Pois, escreve ele, o miúdo ouviu a obra silenciosamente. Debussy teria atingido seu propósito !

Para um intérprete que há bem mais de vinte anos escreve que basicamente inexiste crítica musical competente  em nossa cidade, foi um grande impacto. Dos dois CDs de Estudos contemporâneos belgas e brasileiros, Servenière pormenoriza cada autor e suas técnicas. Despertam-lhe a atenção os ciclos de Estudos para piano belgas e brasileiros contidos em dois CDs.  De Henrique Oswald, tem a mais reveladora impressão positiva, pois o desconhecia e o coloca entre os mais importantes  compositores do período. “Mas há mais, pois Henrique Oswald surge certamente nesse novo mundo do hemisfério austral  com uma obra a ser colocada na categoria dos pilares da música”, escreve Servenière. E páginas são dedicadas aos três CDs que gravamos para piano solo, violino e piano e câmara e piano em terras flamengas. Mais um reconhecimento pleno, agora em França, à qualidade de Henrique Oswald, após a recepção que se prolonga durante anos na Bélgica. Sobre os quatro CDs de música portuguesa, sofre um choque causado pela qualidade das composições. E só de pensar que os intérpretes de Portugal mais ventilados no Exterior ignoram quase que completamente a criação em terras lusíadas, a constituir tal fato algo muito estranho, para menos dizer.

É, pois, com imenso gosto que inseri no item Essays de meu site www.joseeduardomartins.com o dossier crítico integral de François Servenière. Trata-se de um privilégio a recepção que o notável músico francês concedeu aos meus tantos CDs gravados na Bulgária, Portugal e, preferencialmente, na mágica capela de Sint-Hilarius em Mullem, na planura da Bélgica Flamenga, para o selo De Rode Pomp e sempre sob os cuidados técnicos de um dos maiores engenheiros de som do planeta, Johan Kennivé. Contudo, a fim de facilitar o acesso imediato, insiro neste espaço o link da monografia crítica de François Servenière.

Clique para ler o dossier crítico das gravações de J.E.M., escrito por François Servenière.

The French composer François Servenière and I met by chance on-line and our friendship began via e-mails. Last January in Paris we met face-to-face for the first time and spent an afternoon talking about everything. He is a diversely talented person and has a multiplicity of interests. On the occasion we exchanged our CDs and I mentioned I would like to know his opinion about my recordings. I was expecting a few lines by e-mail but some weeks later, already in Brazil, I was surprised to receive a 37-page dossier dissecting each piece of the 19 CDs! Classical music criticism may be in decline, but not for him. Two links in my blog point to his review of my performances (in French) and also to Servenière’s work Seasons Vertigo, a quadruple concerto for piano and orchestra that delights me.