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“Adagiário Açoriano”
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Parece-me, Sancho,
que não há rifão que não seja verdadeiro,
porque todos eles são sentenças tiradas da própria experiência,
mãe das ciências todas.
Miguel de Cervantes
Don Quixote de La Mancha, Livro III, cap. XXI

 

Luca Vitali, o excelente artista plástico, mora hoje no Guarujá. Sempre que vem a São Paulo visita sua cidade bairro, Brooklin-Campo Belo. O prazer de estarmos juntos para uma conversa descontraída em um dos cafés do bairro torna-se uma constante.

A certa altura me pergunta o porquê dos ditos populares açorianos frequentarem meus blogs em forma de epígrafe. Não é a primeira vez que fazem tal observação.

Se considerarmos a arte e todas as suas categorias ou a literatura como perenidades, o povo, essência essencial, tem sempre de ser lembrado. Ao longo dos séculos, é a manifestação popular que subsiste e transpõe gerações. Geralmente sofrido, tendo de gerar a riqueza dos países, essa massa anônima, tanto no campo como nas cidades, recebe todas as agruras da natureza e pior, o tacão do Estado através de impostos abusivos, mormente a ele destinados e, tantas vezes, a exploração dos poderosos. Porém, a tradição tem de continuar e assiste-se anualmente em todo o planeta à perenização das festas populares, das venerações às figuras sacras, da descontração e do recolhimento interior coletivo em datas especiais. Permanece na história das histórias das civilizações esse pulsar, que é ainda uma das salvaguardas da humanidade.

Em posts anteriores já mencionara o impacto que a tournée que realizei em 1992 por três ilhas do arquipélago dos Açores me proporcionou. No meu imaginário, o Arquipélago está como um dos paraísos possíveis, tão grande foi a minha empatia com as terras percorridas e com aquele povo singular. E de pensar que aquelas ilhas estão numa primeira terça parte, se considerada for a distância Lisboa-Nova York. Sob outro aspecto, fica em região por onde passa uma fenda que se estende do Círculo Polar Ártico à Antártida. Abalos sísmicos por lá são constantes, assim como ondas, por vezes, gigantescas. Presenciei uma delas aproximar e defrontar-se com estrondo sobre uma falésia em Angra do Heroísmo.

O arquipélago dos Açores foi descoberto em 1427, quando os marinheiros portugueses já vislumbravam o além-mar por ordem precisa do Infante D. Henrique (1394-1460). Pertencentes a Portugal, as nove ilhas ocupam 2.300km2, sendo a maior São Miguel, com seus 747km2, e a menor, Corvo, com apenas 18km2. Os Açores foram povoados paulatinamente. A população do arquipélago não chega a 250.000 habitantes, mercê de imigrações acentuadas, mormente para os Estados Unidos. No Brasil, em séculos anteriores a imigração açoriana se fez presente, principalmente em Santa Catarina.

Daquelas terras visitadas para recitais e palestras trouxe quantidade apreciável da literatura açoriana, traduzida em romances, livros de arte e de história. Entre as obras acalentadas, o Adagiário Popular Açoriano (Armando Cortes-Rodrigues. Adagiário Popular Açoriano, Angra do Heroísmo, Antília – Secretaria Regional da Educação e Cultura, 2 volumes, 1982).

Há muitos termos que se apresentam como sinônimos parciais. Adágio, provérbio, ditado, dito popular, rifão e outros mais. Há, contudo, determinadas nuanças interpretativas. Como exemplo, provérbio tem carga a exprimir veracidade a ser considerada, enquanto o adágio contém, por vezes, um certo sentido imediato e jocoso. Como observa Francisco Carreiro da Costa, autor do prefácio do Adagiário Popular Açoriano, “os adágios são um prodigioso manancial para o estudo das tradições populares”. Os ditados populares, de origem anônima e constituídos de frases curtas, são atemporais, pois impossível precisar o nascimento de determinados rifões. Depositados durante anos, decênios ou séculos, os adágios podem sofrer alterações em um ou outro termo, mas restringem-se ao conteúdo essencial, a ser transmitido através da oralidade.

Apesar de profundo parentesco com o adagiário do continente, o popular açoriano é rico em peculiaridades, com distinções, por vezes tênues, entre ditos populares nas várias ilhas. Estudos aprofundados foram realizados ao longo das últimas décadas a respeito do adagiário açoriano, inclusive teses acadêmicas. Há debruçamentos pormenorizando-os em Portugal, nos Açores e no Brasil. O espaço a que me proponho semanalmente no blog impede-me de detalhar essa profícua literatura de estudos, que poderá ser acessada via internet.

Sempre que um tema do cotidiano penetra em seara mais descontraída ou a necessitar de qualquer conceituação, instintivamente lembro-me desse precioso Adagiário Popular Açoriano. Primeiramente pela riqueza e, a seguir, pela proximidade tão evidente entre os ditos populares dos Açores e os frequentes no Brasil. O autor da coleta, Armando Cortes Rodrigues, organizou-o alfabeticamente, o que proporciona o prazer de se apreender as diferenças ocorridas nessas frases nas ilhas espalhadas pelo Atlântico Norte, numa latitude idêntica à continental portuguesa. A metodologia empregada torna mais fácil a busca temática. Sob aspecto outro, o Adagiário reflete bem “a idiossincrasia, os costumes, as tradições e preconceitos morais dos Açorianos”, segundo Francisco Carreiro da Costa.

Faz-se necessária a exemplificação, a traduzir a atávica observação do povo açoriano naquilo que lhe é familiar. Insular, em terras sujeitas a constantes tremores, tem mais acuradamente o senso da percepção. Selecionamos alguns entre os milhares mencionados nos dois volumes.

Arquipélago dos Açores.

Adágios advindos do captar meteorológico:

Abril chuvoso,
Maio ventoso
e Junho amoroso,
fazem um ano formoso.   (Flores)

Baleia no canal,
terás temporal.  (S. Jorge)

Dia de Maio,
dia de má ventura,
m
al amanhece,
logo escurece. (Santa Maria)

Em Janeiro dá a capa ao marinheiro
e em Maio, tira-a. (Pico)

Em Maio,
a chuvinha da Ascensão
dá palhinhas e dá grão. (Terceira)

Em Outubro, Novembro e Dezembro,
quem come do mar,
tem que jejuar. (Pico)

Névoa pela manhã,
sereno hoje,
sereno amanhã
. (S. Jorge)

Nuvens paradas, cor de cobre,
é temporal que se descobre
. (Pico)

Trovão no Verão,
Água na mão
. (Flores)

De ordem moral:

A boca que mente,
Mata a alma. (Pico)

Antes morte
Que vergonha. (Terceira)

Antes uma saia velha
De boa fazenda
Do que uma saia nova…
Nosso Senhor nos entenda. (Flores)

Chuva goteira,
mulher trameleira,
põem um homem na rua. (S.Miguel)

Do amor, que não convém,
nasce o mal e pouco bem. (S.Miguel)

Mais vale honra
do que riqueza. (Corvo)

Ninguém diga o que não sabe
nem afirme o que não viu. (Flores)

Quem perde a honra, por causa do negócio,
perde o negócio mais a honra (S.Jorge)

Viúva honrada,
Porta fechada. (S.Jorge)

Da mesa, do alimento e da bebida:

Antes um naco de pão com amor
do que galinha com dor. (S.Jorge)

Da tigela à boca
se perde a sopa. (Flores)

Disse o leite ao vinho:
- Venhas em boa hora, amigo. (S.Miguel)

Em cima de comer,
nem carta ler. (S.Miguel)

Em cima de melão,
de vinho um tostão. (Santa Maria)

Em Janeiro,
um porco ao sol,
outro no fumeiro. (S.Miguel)

Sabe da panela
quem mexe nela. (Flores)

De ordem do cotidiano jocoso:

Divertido ! Divertido !
deu a mulher no marido. (Pico)

Mula que faz him
e mulher que fala latim
raramente há boa fim *. (S.Miguel)
(* “Na linguagem popular micaelense fim é sempre feminino”)

Mulher barbuda,
de longe a saúda. (Faial)

De categorias várias:

Bem toucada,
não há mulher feia. (S.Miguel)

Dinheiro compra  pão,
não compra gratidão. (S.Miguel)

Enquanto há dívidas,
não há herdeiros. (S.Miguel)

Mais vale muito saber do que muito ter. (Santa Maria)

Mulher de janela,
nem costura nem panela. (S.Miguel)

Não há oiro
sem fezes. (S.Jorge)

Quem menos sabe, mais finge saber. (Santa Maria)

 

Gostaria imenso de inserir tantos outros ricos adágios que se espalham em diversas categorias do viver. O espaço de um blog pressupõe determinados limites. Fica, contudo, nessa diminuta exemplificação, o pulsar do povo insular que permanece através dos séculos, nessa ladainha repetitiva e saborosa que está sempre a sofrer acréscimos. Diferentemente dos modismos das frases que têm vida breve e geralmente oriundas dos meios televisivos, o que realmente se pereniza é essa fala incisiva, ingênua, despretensiosa e, sobretudo, anônima. A única certeza, o adágio não morre.

 
A friend, the graphic designer Luca Vitali, asked me why so many of the epigraphs in my posts are Azorean proverbs. His question brought back memories of my trip to the Azores islands in 1992 and the book of Azorean adages in 2 volumes I bought on the occasion. In this post I comment this collection of short sayings, some brilliantly phrased: their straightforwardness, irony and practical wisdom.

 



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O Interesse dos Leitores

Eu tenho que confessar meu espanto, por vêzes consternação,
face a atitude de certos públicos “especializados” nos santuários
daquilo que nesciamente nomeou-se arte contemporânea.
Por que não falarmos de masoquismo ?
De outra maneira, eu não explicaria essa espécie de empenho
em aceitar a chatice de se ouvir sempre os mesmos disparates técnicos
destinados a “preparar os ouvidos”,
depois esse tipo de  servidão que leva, após o concerto,
expressões fabricadas (“interessante ! divertido ! muito forte !…”),
somente destinadas a mascarar a decepção.
Por que tanta gentileza e amabilidade
quando acabamos de ouvir verdadeiros horrores ?
O que poderia justificar, entre os melômanos sinceros,
a aceitação de tais sofrimentos, a absorção de poções também amargas ?
Serge Nigg

Tantas são as impressões que um livro pode nos causar. A leitura pressupõe interesse, e quão mais uma obra nos diz algo, mais referências ficam gravadas. Livro bom não é esquecido, nem na memória, tampouco na estante.  Acalentado, pode esclarecer-nos,  abrir novos rumos, fazer com que mudemos, inclusive, determinados conceitos.
Resolvi escrever um blog sobre o livro “Serge Nigg, compositeur” porque constatei que, através daquelas páginas que não atingiam a centena, havia conceitos de extraordinária força, pensados por um músico que no final da vida estava a planar sobre o infindável campo do conhecimento. A recepção às ideias de Serge Nigg foi imensa. Leitores – músicos, amadores e leigos -  pronunciaram-se, inclusive um arquiteto, a apreciar trecho de sua área de atuação. Selecionei alguns comentários mercê do espaço proposto para o blog.

Dois compositores brasileiros da maior dimensão escreveram a opinar. Ricardo Tacuchian observa: “Não conheço a obra de Serge Nigg e fiquei impressionado com as ideias dele que você resumiu de modo primoroso. Vou procurar conhecer mais a obra e o pensamento deste homem que, tão solitariamente, desmistifica o mundo ‘populista e oficial’ das artes. Me identifiquei com quase tudo que você cita em seu post. Mais uma vez, parabéns pelo seu trabalho semanal e obrigado por esta valiosa informação  sobre uma figura tão eminente e com um pensamento tão próximo ao meu”. Mario Ficarelli comenta: “Que prazer foi para mim ler o depoimento de Serge Nigg. Foi como estar lendo algum depoimento meu de agora ou no futuro. Compartilho plenamente todo o seu pensamento a respeito da composição”.

De Portugal, a competente professora e gregorianista Idalete Giga considera: “Gostei demais do seu post sobre o compositor Serge Nigg, que eu desconhecia. As respostas a Gérard Dénizeau revelam-nos um compositor profundo, que está já  muito para além do barulho do mundo. São uma verdadeira lição de sabedoria, de coragem, de despojamento. É curioso que, quando fala de modismos, do dodecafonismo, do ‘progresso em arte’, da música electroacústica, dos compositores snobs, da obra aberta, etc. entra em cheio no meu pensamento. Estou em plena sintonia com ele. ‘Captar o passado, Apreender o presente, Pressentir o futuro’  é o essencial para a criação de uma obra de arte, que não deve estar sujeita a ‘modismos’. De facto, são raros, muito raros os compositores que conseguem sintetizar o passado, criar  a partir dele no presente e projectar-se no futuro. Isto sempre senti, por ex., no nosso genial J.S. Bach.”

O compositor e orquestrador francês de reais méritos, François Servenière, tece comentários: “Li e reli seu post consagrado a Serge Nigg. Conhecia, não pessoalmente, o professor compositor do Conservatório de Paris, mas foi ele mestre de inúmeros amigos meus compositores, entre eles Josef Baán, eslovaco. Concordo com muitas de suas conclusões, assim como com sua lucidez em relação ao dodecafonismo através das impressões anteriores de Schöenberg… e sobre muitos outros temas abordados”.

O arquiteto Marcos Leite atém-se à sua área e discorda da comparação feita por Serge Nigg a respeito da comparação arquitetura-música: “A solidez é só parte e consequência da concepção do projeto. A criação é resultado de uma bagagem obrigatória do Arquiteto que sabe que seu projeto tem solução estrutural exequível e, muitas vezes, já o apresenta ao engenheiro calculista. A estética aceitável é bom uso da técnica disponível aplicada à nova proposta de desenho e atendendo à funcionalidade do uso “.

K. Vertessem, da Holanda,  enviou e-mail via site: “Serge Nigg é para mim referência. Colegas meus estudaram com ele e entendiam o seu pensamento enciclopédico, mas coerente quanto à sua linha adotada, do dodecafonismo às obras menos herméticas.  Interessa-me muito essa publicação da Université Sorbonne. Vou providenciar”.

Curiosamente, os três primeiros, competentes músicos, sentem a identificação plena, dizendo que poderiam até ser os autores de determinadas posições adotadas por Serge Nigg. Sobre a música eletroacústica, Serge Nigg mostra-se absolutamente refratário. Recordo-me de ter assistido pela televisão em Paris, na década de 1990, mesa redonda em que dirigentes de gravadoras e jornalistas discutiam sobre a indústria fonográfica. À música erudita ou de concerto estava reservada uma fatia irrisória quanto à vendagem – comparada com a música popular – e dessa fatia a música eletroacústica representava parcela ínfima… da música erudita ! Seria possível pressupor que o contato humano, geralmente inexistente, esteja a apontar as causas, mesmo que Festivais tenham público aficionado. Seria essa ausência “humana”, no complexo elo criação e interpretação, que motivaria Nigg a refletir sobre a matéria. Diferentemente da gravação, onde o pulsar e até a respiração do intérprete podem ser ouvidos, a música eletroacústica apontaria para outro direcionamento. Mesmo quando há interação nessa intermediação eletroacústica e intérprete, haveria sempre uma metamorfose, não dos segmentos eletroacústicos registrados, mas do próprio ato instantâneo do executante. É algo para outras reflexões, apesar de, paradoxalmente, projetos relacionados à eletroacústica serem os que estão a  receber polpudas verbas de institutos de fomento. Acrescentaria, tendências não inteiramente compreendidas pelos fomentadores e minimamente aceitas pelo público de concertos. Voltemos ao blog sobre Serge Nigg que despertou tanto interesse: modismos ?

Importa considerar que os testemunhos de Sérgio Nigg despertaram um tão grande interesse. Prova inconteste de seu pensamento incisivo.

Readers of my post on Serge Nigg  – among them many professional musicians –  wrote to me giving their views on Nigg’s words. The post of this week is a selection of some messages I received.

“Captar o Passado, Apreender o Presente, Pressentir o Futuro”

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Para mim, a criação musical não exige somente talento,
mas também, e antes de tudo, caráter, personalidade,
a certeza de que temos um caminho a seguir,
mesmo que modesto,
e que nada conseguirá nos tirar do caminho.

Serge Nigg

Quer-me parecer que um compositor deve ser,
antes de mais, um homem de cultura
que saiba traçar grandes linhas de força sobre o tempo.

Eurico Carrapatoso

Serge Nigg é compositor francês de grande mérito. Após estudos com Olivier Messiaen, conheceu René Leibowitz, que o introduziu na técnica do dodecafonismo serial logo após a Segunda Grande Guerra. Em 1946 escreve obra primordial, Variações para Piano e 10 Instrumentos, na qual teria pela primeira vez em França utilizado a técnica dodecafônica. A partir de 1950 se distancia da técnica serial, que seria, entretanto, tendência entre os jovens compositores. A partir dos anos 60, a utilização do dodecafonismo em Nigg estaria conjugado com a busca da beleza sonora, da estrutura impecável e da não concessão. Autor de composições reverenciadas e abordando vários gêneros, interpretado por músicos de primeira grandeza, foi professor respeitado no Conservatório Nacional. Prêmios e condecorações, assim como funções essenciais em instituições relevantes da cultura e das artes em França, marcaram a existência de Serge Nigg.
Em depoimentos que se prolongaram durante mais de dez anos (1998-2008), até os estertores da existência, Serge Nigg respondeu a inúmeras perguntas formuladas por Gérard Denizeau (Serge Nigg, compositeur – capter le passé, apprénder le présent, pressentir le futur. Entretiens avec Gérard Denizeau. Paris, Université Paris-Sorbonne, Observatoire Musical Français, Série “Temoignages”, nº 3, 2010). A fazer parte da Collection Observatoire Musical Français, dirigido pela ilustre professora Danièle Pistone, o testemunho de Serge Nigg tem real valor, pois, através de um profícuo diálogo, o compositor revela qualidades inerentes do pensador e temáticas perpassam os depoimentos envolvendo aspectos musicais, humanísticos e da arte como um todo.
Aderiu com fervor à escritura serial dodecafônica. Exemplefiquemos para os leitores não músicos: foi a partir dos anos 20 que o atonalismo – liberdade frente à tradição tonal – se expandiu e avançou pelos países ocidentais. Um novo léxico musical ganhava força. Num breve resumo: existem doze sons na escala temperada ocidental. Tendo o piano como exemplo fácil de entendimento, encontramos sete notas brancas e cinco pretas. Schöenberg e seus discípulos partiram para o emprego de uma série de doze sons sem que houvesse a repetição de qualquer um deles na organização proposta. Dispostos pois sequencialmente, formavam o alicerce de uma obra em sua essência. Nigg, na sua juventude, entusiasma-se com essa soma de mais cinco notas suplementares às sete da escala tonal. Como um dos exemplos dessa cartilha que obedecera, a recusa da repetição exata, como praticaram compositores barrocos e clássicos. Considera: “ignorava na época que a ‘repetição’ carregava a ornamentação”, princípio tão praticado nos períodos citados. Observa: “Schöenberg no fim da vida, compreenderia o caráter desumano de seu método”. Teria consciência mais tarde dos excessos produzidos pelo fanatismo a que tinha chegado, fazendo a crítica tardia a essa exacerbação que se apoderou de toda uma geração naqueles anos pós guerra, a entender como infortunado o músico que não aderisse às novas tendências.
Contrário a concessões e desconfiado de sucessos imediatos, Serge Nigg entende que há tênue fronteira, por vezes, entre obra prima e outra, medíocre. Ter ouvido obras de compositores que tiveram aceitação em suas épocas e muito bem escritas e, sob outro contexto, criações consagradas, mas desprovidas de originalidade, leva-o a pensar na diferença fundamental entre a arquitetura e a música. Naquela, a solidez é premissa, mesmo que esteticamente o edifício se apresente como um fracasso. Na música “grandes sucessos musicais poderão não satisfazer aos teóricos, da mesma maneira que uma disposição harmônica agradável aos olhos pode soar apenas aceitável. Em contrapartida, partituras impecáveis do ponto de vista escritural e das técnicas de composição podem muito bem atingir um miserável resultado sonoro”.
Por meio de metáfora, compara o ex-aluno que não consegue libertar-se do aprendizado à criança que, ao começar a ensaiar os primeiros passos, titubeia. Contudo, ao tornar-se maior, andará normalmente, ao contrário do eterno aluno. Defende a liberdade de expressão, mas observa: “o artista sabe, melhor do que ninguém, a que ponto o livre arbítrio é conquista perigosa; para apreciar a liberdade plenamente, deve ele ganhar uma certa serenidade, condição de sua realização como criador, na plena acepção do termo”. Conscientemente questiona o criador: “O que é o verdadeiro artista criador, a não ser aquele que conjuga o controle do instinto, a evidência do estilo, a recusa de soluções fáceis e, sobretudo, a originalidade do emprego de meios – mais que os meios em si – com uma afetividade profunda ? Mas sem a técnica, e se apenas subsiste a afetividade, a obra não existe”.
É cáustico ao abordar modismos. Entende perigosa a posição de tantos compositores e intérpretes que se preocupam com o que está vigente, numa alusão não apenas a procedimentos como à possibilidade material. Afirma: “Nenhum compositor poderá afirmar que sua música sobreviverá; mas, um método seguro para escapar da posteridade é seguir os ukases da moda. Ela passará seguramente, a música nesses termos também, enquanto, em outro contexto, a música pensada fora dos modismos conserva uma chance de se increver na história”. Torna-se um axioma para Nigg frase atribuída a Arnold Schöenberg e de “admirável consistência moral”, que poderia ser aplicada a todos os artistas criadores: “há meios degradantes de emocionar”. Serge Nigg combateria durante décadas aquilo que ele considerava a febril busca da reputação, a necessidade feérica de tantos, através da mídia, de agradar sob qualquer pretexto, contrapondo-se à reflexão: “apreciam-se melhor os raros oásis do gosto e da beleza que pagariam todo o resto”. Em outro contexto, comenta que novas gerações adoram julgar obras a partir da dificuldade que ela possa apresentar. Os depoimentos colhidos anos antes da morte encontram Nigg num espírito de síntese, a considerar a criação pelo essencial, independente da acolhida pública hostil ou favorável. Detém-se sobre a única questão que merece resposta: a obra traz alguma coisa para a música, para sua história, para a sua estética” ?
Sabemos que a música eletro-acústica é bem ventilada pela mídia. Apesar disso, merece por parte do público guarida bem discreta, se comparada à grande acolhida do repertório instrumental. Seria possível pressupor que o contato humano direto, geralmente inexistente, esteja a apontar as causas, mesmo que Festivais tenham público aficionado. Nigg observa “De minha parte, fui sempre totalmente alérgico à música eletro-acústica. Por temperamento, eu não a suporto: esse material é algo que me é perfeitamente estranho. Para mim, os sons eletro-acústicos são sons mortos, enquanto que nada me parece mais belo que o som do violoncelo, de um oboé ou de um violino. Por quê ? Pelo fato de serem sons fabricados pelo homem, produzidos por sua ação, e que ele pode modificar à vontade. Eis o que é um som vivo ! Sempre fui partidário da música instrumental pura, por gosto e temperamento. Acrescento que acredito extremamente grave que alguns possam imaginar que a música do futuro seja música de engenheiros com jalecos brancos, manipulando botões. A ideia da máquina intrusa e da ciência puramente especulativa na música, expressão a mais profunda do gênio humano, é uma noção que me aterroriza”.
Serge Nigg vê com cautela a proliferação de compositores, a acreditar que muitos jovens, ao sairem dos bancos escolares, já se consideram criadores. Para ele, todo grande compositor é um grande técnico, conhecedor profundo do métier. Saberá esquecer receitas adquiridas no aprendizado e terá sua linguagem, após consciente assimilação. O grande é, simplesmente. Considera que, se no passado conhecia músicos de todas as áreas, atualmente não existem senão “… compositores ! Diria que todos foram subitamente tocados pelas graças das musas” ! Cita Schöenberg, que afirmaria que, dos mais de mil alunos que teve durante cinquenta anos de ensino, dez teriam feito carreira. Destes, segundo Nigg, permaneceram Webern, Berg, Eisler, Zillig, Robert Gerhard e Skalkottas. Se considerarmos que apenas os dois primeiros podem figurar no firmamento dos ‘grandes compositores’, tem-se algo para reflexões”. E dessa quantidade abusiva de compositores hoje, conclui: “Quando um Festival especializado anuncia, como exemplo, ’80 criações mundiais’, tem-se frio na espinha”.
Serge Nigg tece instigante observação nessa ampla visão que a idade proporcionaria: “É necessário compreender que o compositor, ao atingir o crepúsculo, é um homem que consagrou quase todas as forças para construir um mundo abstrato, um universo sonoro que corresponde fielmente àquilo que ele pretendeu. Asseverou-se de estabelecer leis e respeitá-las, jamais cessando de observar que os frutos de seu trabalho o levaram a múltiplas interrogações. Combateu todas as tentações da fantasia que podem permitir derivações, mas sempre a ter em conta a impalpável palavra nomeada inspiração… e que nem sempre está disponível ! Seu caminho é de uma lógica inevitável, mas a que preço, a não ser o da solidão” ?
Após tecer admiração pelos intérpretes profissionais – “escuta segura, instinto musical, senso dos andamentos, infalibilidade rítmica, etc.”- Nigg comenta determinado tipo de compositor “É muito desagradável verificar homens desprovidos da mais elementar bagagem musical imporem a grandes executantes diretivas que eles não dominam sob qualquer hipótese”. Pormenoriza-se nesse caminho complexo, no qual experiências até bufas são aceitas, considerando-as como falsificação. Agrada aos snobs inconsequentes e à crítica incompetente”. É severo e convicto quando julga “Não sou contra certa forma de provocação, não me desagrada essa mexida nos hábitos do público habitual, mas não admitirei jamais que o gesto sagrado da criação artística seja ridicularizado, mormente quando a grosseira mistificação tem como única função dissimular a vacuidade do saltimbanco de plantão”.
A respeito da obra aberta é categórico. Sem condená-la, pois não se mostra ditatorial, acredita que obra esboçada, a ser completada pelo intérprete, não pode receber o status de obra, entendendo-se a sua compreensão desde o Renascimento. Desenvolve raciocínio lógico ao observar: “Que seria de um romance a ser completado pelo leitor, da estátua na qual tenhamos a liberdade de suprimir ou acrescentar um membro ? A grandeza de uma obra reside na aposta, que faz supor o acabamento”.
Sobre a tão decantada desacralização, Nigg diz que a palavra o irrita. “Desacralizar o quê ? A Arte, o artista ? A obra ou seu autor ? Na verdade, trata-se, de certa maneira, de tentativa de certos funcionários da ‘Cultura’ justificarem suas existências, suas atividades… eventualmente seus salários” ! Mostra-se implacável ao dizer que “acreditar que basta um pequeno toque de varinha mágica para esvaziar milênios de tradição, isso se chama utopia”.
A uma pergunta provocativa de Gérard Denizeau, responde a questionar “O que é na realidade progresso em arte ? Outra coisa concernente ao passado, bem entendido; mas podemos falar de um progresso em forma de qualidade ? Podemos fazer algo melhor do que o canto gregoriano, do que a Catedral de Chartres ou da Missa em si, ou mesmo Don Giovanni… ? Que haja obrigação de renovar-se o material, os meios técnicos; porém, os princípios de elaboração de uma obra, a história nos ensinou”. Seu pensamento se estende à necessidade de redefinição inclusive da finalidade da arte e, nesse raciocínio, seu vocabulário e sua sintaxe. Nesse permanente fluxo, que pressupõe movimento e evolução, Nigg questiona se é possível fazer-se melhor, sobretudo se forem pensados períodos históricos difíceis.
As posições precisas, onde não há espaço para o tergiversar, tiveram exemplo claro na sua postura quando participou de júris: “Não é fácil quando se é compositor, mas o essencial é não se referir ao seu próprio gosto, à sua própria estética. Haveria nesses casos um intolerável abuso de poder; pois, no desenrolar de sua carreira, o artista já terá de suportar a ditadura do gosto, do dinheiro, do comércio, da política, etc. Melhor não o intimidar já nos primeiros passos”.
Os depoimentos de Serge Nigg bem evidenciam o artista em sua avaliação autocrítica nos anos finais da existência. Compositor e pensador mostram-se amalgamados e a concessão ficaria rigorosamente soterrada. Ao dizer, no curso do longo depoimento de uma década, que “a abnegação é necessária, como a paciência, a perseverança, a coragem a toda prova, uma certa capacidade de suportar o isolamento físico e a solidão moral”, já não demonstraria qualidades inalienáveis que o tornaram um dos grandes músicos franceses do século XX ? Pouco a pouco, Serge Nigg compositor ressurge. É bom sinal.