Navegando Posts em Literatura

A Força das Imagens

Clique para ampliar.

Tenhamos confiança absoluta nas energias da vontade.
Saber querer é o sagrado mister dos corações sensíveis.

Austregésilo de Athayde

Há livros que prendem nossa atenção mercê do impacto iconográfico. Alguns adquirem inclusive o status de obra de arte, sempre de subjetiva avaliação, a depender do talento e das escolhas empreendidas pelos organizadores. Stefan Gan foi o responsável por texto, pesquisa de imagens e edição de fotografias do livro João Carlos Martins (São Paulo, Parágrafo, 2008, 168 págs.). Poder-se-ia considerar o livro, em formato substancioso, como uma publicação de arte, mormente pelas fotografias especiais que percorrem, em panorâmica expressiva, parte da trajetória do pianista, hoje regente, João Carlos Martins. Tem-se mais de sessenta anos relatados através de fotos extraordinárias, que não apenas contam a história do grande intérprete da obra de J.S.Bach desde a sua infância, mas oferecem também a Stefan Gan possibilidade de organizá-las numa leitura sócio-iconográfica, pois auditórios e as várias categorias de público são focalizados. As imagens, grande parte em branco e preto, o que significa maior fidelidade, apresentam o músico diante de sua realidade: o miúdo no início de seus estudos, os ambientes que freqüentou como intérprete, assim como a legião daqueles que o cercaram e cercam, ilustres ou anônimos.
João Carlos Martins é um livro bonito. Destaca, a partir de um crescendo – termo por nós, músicos, utilizado – o estágio atual do pianista, hoje regente. Carismático, João Carlos soube, através de uma insofismável bagagem pianística, impor-se nacional e internacionalmente. De posse desse tesouro obtido a partir de disciplina férrea, tenacidade, concentração e talento, o instrumentista atingiu naturalmente o estágio de mito após sofrer todas as vicissitudes que o levaram à impossibilidade de tocar piano. Que pianista, entre nossos intérpretes, teria essas histórias como lastro reservado ao herói? Que regente tem hoje tão grande empatia com o público de todas as classes sociais? Essa primazia, pois, seria sustentada pela grande mídia, e João Carlos, com agudeza – característica dos carismáticos – sempre soube apreender os meandros da comunicação. Se é hoje, possivelmente, o mais ventilado músico erudito do país, bom para a música como um todo.

Em pé, da esquerda para a direita: João Carlos, Souza Lima, Alberto Ginastera, José Kliass. Sentado: Camargo Guarnieri. Foto José da Silva Martins, 1961, pág. 57. Clique para ampliar.

Stefan Gan teve o cuidado de inserir com sensibilidade textos sobre João Carlos. Colheu depoimentos relevantes de personalidades como Dave Brubeck, fantástico pianista de jazz; Heiner Stadler, produtor das gravações J.S. Bach; Jay Hoffman, agente de tantas décadas nos Estados Unidos. Milton Glaser, Marluce Dias, Jô Soares e Marcos Frota prestam igualmente tributo a João Carlos. Ficariam reservados dois depoimentos de colegas pianistas: Arthur Moreira Lima, amigo e parceiro em tantas memoráveis apresentações Bach-Chopin, assim como minha homenagem.
Transcrevo-a na íntegra:
“Escrever sobre João Carlos faz-me apelar às lembranças. A nossa infância e juventude foram bem compartilhadas, pois nos dedicávamos à mesma atividade musical e dormíamos no mesmo quarto. De todos da família, apenas nós dois persistimos pianisticamente, estudando com os mesmos professores: Giammarusti, Berkovitz e, bem mais longamente, com José Kliass. Período decisivo de nossas existências. Sob forte e salutar disciplina, cumpríamos os horários estabelecidos por nosso pai e, nos intervalos de dez minutos entre dois espaços de tempo pianísticos, brincávamos com uma bola no grande quintal de nossa casa.
Foi a partir de 1958 que o destino levou-nos a regiões geográficas determinantes em nossas trajetórias. João teria o aperfeiçoamento pianístico e cultural nos Estados Unidos e eu fiquei alguns anos em Paris. Se permanecia ‘recluso’ em França, comprometido com o ato de estudar música e entender a cultura francesa, João Carlos precocemente iniciava uma promissora carreira pianística, com sucesso extraordinário até a desventura do primeiro acidente com o braço direito, mercê de uma queda em prática esportiva. Reerguer-se-ia várias vezes em todo o seu caminhar, lutando bravamente com dramas outros a acometerem seus braços e mãos até o epílogo recente, a impedir definitivamente o prosseguimento da carreira pianística.
Durante décadas, o nosso relacionamento sempre amistoso permanece esporádico por motivos ligados às nossas próprias opções. Esse distanciamento jamais interveio num sincero e mútuo respeito. Ratifico a minha profunda admiração por sua interpretação da obra completa de Bach para teclado, executada ao piano de maneira ousada e como verdadeiro desafio ao establishment existente. Se Gleen Gould já rompera tradições enraizadas, por que não buscar caminho outro? Assim João Carlos pensou em relação a J.S. Bach e, dessa maneira, conseguiu edificar a sua construção pianística. Se distante da traditio, não seguida como padrão, a interpretação de João Carlos está a apontar para um horizonte novo que poderá propiciar visitações diferenciadas à obra do grande Kantor.
No peristilo de sua ‘aposentadoria’ pianística, quando sua mão direita já não mais suportava os impactos digitais sobre o teclado, graças ao ataque de um celerado em Sófia um anos antes, João Carlos e eu gravamos na capital da Bulgária os dois Concertos para dois teclados (pianos) de J.S. Bach, acompanhados pelos Solistas de Sófia. Estreitávamos os nossos laços e entendi o grande drama pelo qual passava. Durante as gravações, reiteradas vezes teve de interromper as sessões, mercê de desmesurado inchaço em sua mão direita. Esse triste fato prolongar-se-ia durante os três longos dias de gravações. Dores e contorções contrapunham-se à vontade de ver finalizado o seu hercúleo trabalho bachiano. Felizmente, a duras penas chegamos ao final de dramática mas bela gravação, e os dois Concertos incorporaram-se à opera omnia para teclado do grande Bach.
O novo desafio visualizado, a regência, deu a João Carlos a certeza da continuidade. Catarse, conceitos que conscientemente ou não já integravam o seu de profundis, encaminharam-no para o homem da grande mídia. De longe acompanho o seu sucesso. Fiel às minhas origens, permaneço a entender a música como magia e mistério e a servi-la sem desviar-me de rumos traçados. Esse aparente antagonismo, longe de distanciar-nos, apenas ratifica admirações que sabemos mútuas”.

João Carlos e José Eduardo. Teatro São Pedro, 1968, pág. 71. Clique para ampliar.

Como sempre faço (vide Bragança Paulista, Razões de uma Escolha, 23/07/07 e Bragança Paulista (II), O Retorno Necessário, 29/08/08), estava em Bragança em fins de Outubro a escrever um longo texto em francês para publicação na Bélgica. Na portaria do Grande Hotel Bragança disseram-me que famoso maestro viria à cidade, a fim de reger sua própria orquestra. Perguntaram-me: “Professor, ele também é Martins. O Sr. O conhece?” Sem nada responder, liguei para o celular do João, que se encontrava no Rio de Janeiro. Contei-lhe a viva voz o curioso episódio. Sabia ele que Bragança é meu refúgio a acalentar idéias que afloram, desaguando para o papel na bucólica praça José Bonifácio. Imediatamente convidou-me para tocar duas obras no seu concerto, que se deu no dia 8 deste mês. Ele mesmo escolheu: L’isle Joyeuse de Claude Debussy e o Estudo Patético de Alexander Scriabine. Sem contar nossa gravação em Sófia em 1996, não subia a um palco com o irmão desde os anos 80. Foi uma grande alegria, e o público que superlotou a Casa de Cultura pôde sentir o carisma de João Carlos, hoje absoluto frente à orquestra e às platéias. Ao piano, com os poucos dedos que ainda podem tocar, foram executadas obras de J.S.Bach, dois andamentos lentos de Concertos para piano e orquestra de Mozart − sob a regência competente do spalla, Laércio Diniz −, mais Piazzolla e Tom Jobim, levando o auditório ao delírio. Essa mescla ratifica a justa adoração de João Carlos por J.S.Bach e evidencia a opção por outros repertórios também. Os ouvintes saíram comovidos, inebriados com a chamada música de concerto. João Carlos conquistou “minha” Bragança Paulista na plenitude (vide fotos do FotoBlog A Música Venceu!).
“Carisma” sem lastro, entendo-o como simulacro. O caso João Carlos é carisma em sua abrangência. J.S.Bach e sua integral ao piano, Alberto Ginastera e a primeira audição absoluta de seu Concerto para piano e orquestra, o Carnegie Hall de Nova York em inúmeras apresentações com sala repleta, dramas e tragédias, estes são alguns exemplos que representam o profundo embasamento a levá-lo ao patamar do músico lendário. Se o pianista teve de interromper seu caminho por motivos alheios à sua vontade, o regente não apenas teve a acolhida instantânea do público espalhado pelo país, como, através da Fundação Bachiana, criada por João Carlos, está a propiciar o ensino e a audição da boa música a centenas de crianças e jovens menos favorecidos.
É portanto de especial valia o conhecimento de João Carlos Martins, de Stefan Gan. Agora lançado, o leitor poderá, através da imagem, seguir uma trajetória singular. Que João Carlos persista em seu imenso trabalho. Creio ser o voto de todos nós.

Clique aqui para ouvir o 3o. movimento do Concerto para Dois Teclados e Orquestra em Dó menor, de J. S. Bach.
Gravação do ensaio de 1996 na Bulgária, na execução de João Carlos e José Eduardo Martins e Solistas de Sofia, sob a regência de Plamen Djurov.

A book entitled “João Carlos Martins” has just been published. Superbly illustrated, it portrays the charismatic Brazilian pianist and conductor from childhood to the present. It is a brief recollection of his life, work and spiritual strength, enhanced by testimonials of friends and fellow musicians.

Evidências Reveladoras da Sinceridade

Clique para ampliar.

Os sonhos dividem-se em duas categorias.
Na primeira, aquele que cria o sonho torna-se mestre dos acontecimentos
que se desenvolvem em seu devaneio,
no qual ele é como um mágico, um demiurgo.
Na segunda, o sonhador não consegue controlar as coisas,
ele é passivo, impotente e incapaz
para se defender contra a sua visão.
Aquilo que lhe acontece é exatamente o que ele receia,
o que ocasiona terror e tortura.

Andreï Tarkovski

A trajetória do ser humano é marcada por impactos os mais variados. É possível que ela se mantenha serena durante o percurso completo, ou sofra maiores ou menores turbulências que afetarão a conduta, o vislumbre do caminho a ser percorrido, a relação com o próximo, as regras relativas à boa manutenção físico-psíquica, o entendimento espiritual. A qualidade do impacto poderá determinar as flexibilizações da existência, ou a ruptura absoluta com os padrões seguidos anteriormente. Seria possível compreender as palavras de Jiddu Krishnamurti, que asseverava que somos peregrinos sobre a Terra e que não nos devemos deter, mas sim continuar a senda trilhada. Fatos geradores de grandes transformações seriam, creio eu, passagens que podem afetar profundamente a nossa conduta. Seria o equilíbrio interpretativo que realizamos a nossa maior salvaguarda, a fim de que haja razão nesse permanente caminhar, e que o olhar, a partir da filtração que fazemos do fato que causa impacto, torne-se diferenciado.
Trocara idéias com uma vizinha no episódio Metrô – felizmente, decidiram-se pela Estação Águas Espraiadas, juntamente com o Terminal de Ônibus – quando Penha falou-me a respeito de seu filho, morador em Curitiba, que tivera um linfoma do tipo Hodkins, já extinto. Como aquele que me atingiu era mais agressivo, Tipo T de células pequenas, quis conhecê-lo. Sob aspecto outro, mudanças ocorridas em sua vida, mercê da doença, fizeram-no mudar sua visão de mundo. Uma guinada absoluta se daria e Vitor Caruso Jr. tornar-se-ia um outro homem. Tive o prazer de manter com ele longa e prazerosa conversa e realmente apreendi muito deste jovem voltado a empreendimentos ligados à Ciência Meditativa (www.cienciameditativa.com) e a ações voluntárias junto à APACN – Associação Paranaense de Apoio à Criança com Neoplasia (www.apacn.org.br).
Vitor é hoje budista, praticante de Yoga e emana contagiante alegria. O nosso diálogo abordou desde a luta individual contra o câncer, como aspectos ligados à existência. Apesar do distanciamento etário, creio que enfrentamos o mal com ferramentas bem parecidas. Vitor Caruso teve a coragem de expor em livro todo o processo do mal que o afligiu, em seus mínimos pormenores, assim como os mecanismos que o levaram a enfrentar com determinação o mal de Hodkins. Jamais se submeteu aos diagnósticos plúmbeos. Toda essa epopéia está relatada em Com Qualquer Um de Nós (São Paulo, Rinacy, 2003, 66 págs.). A doença, que eu não quis revelar em seus pormenores, vejo através da pena do autor narrada de maneira direta e sincera, sem preocupações estilísticas, tampouco visando a agradar segmentos corporativos. Trata-se de um desabafo necessário, a servir de alento a todos os que lutam, vencem e não se submetem ao infortúnio. Mesmo àqueles que estão a sucumbir, há a palavra reconfortante de Vitor Caruso Jr. Um ponto chamou-nos a atenção. Em plena químio, contrariando os médicos, Vitor, hoje com 38 anos, disse ao oncologista que iria correr a São Silvestre, tradicional prova de 15 km que se realiza em São Paulo aos 31 de Dezembro. Este, pasmo pela notícia, desaconselhou vivamente o “irresponsável”. Vitor não apenas correu como bateu o seu recorde pessoal. Isso em pleno tratamento. Como não lembrar exemplo que vivi bem posteriormente (vide Sobreviver com Qualidade de Vida, 07/06/08)? Contei ao agora jovem amigo que eu também, desaconselhado pelos médicos, internado no Hospital Nove de Julho, com agulha a importunar minha mão esquerda – o que levou a um grande edema que durou 48 horas para ser absorvido -, estudei durante dez dias em um teclado mudo, pois havia um desafio a vencer: o recital comemorativo ao tri-centenário de nascimento do notável compositor português Carlos Seixas (1704-1742), conimbricense. O recital deu-se na Biblioteca Joanina – uma das Jóias da Humanidade – em Coimbra, na extraordinária Universidade do mesmo nome. Com uma bengala, pois as pernas fraquejavam, adentrei o mágico recinto e encarei o recital inteiramente dedicado ao compositor, retornando dois dias depois a São Paulo, a fim de continuar o tratamento. Durante a apresentação, passei por momentos dramáticos, pois nas peças mais rápidas por várias vezes tive cãimbras nas mãos, o que me obrigou a encontrar solução alternativa imediata – sem prejuízo ao todo – à execução. Um sufoco ! Conseqüências quimioterápicas.

Os peregrinos, pormenor do tímpano Cristo Ressuscitado. Catedral de Autun, França, Séc. XII. Clique para ampliar.

Com Qualquer Um de Nós é uma ode à vida. Seguir a tribulação de Vitor, preso anteriormente a uma multinacional, como tantas e tantas extraindo até a alma de seus funcionários; ser atingido pelo tumor de Hodkins e vencê-lo; entender a vida posterior como uma graça que o fez desligar-se de um tipo de morte à qualidade de vida, preocupação derradeira dessas empresas tentaculares; encarar tantos desafios; contrariar metodologias médicas ortodoxas após leituras insistentes sobre o mal; todos esses aspectos tornam a leitura da narrativa de Vitor Caruso Jr. uma extraordinária lição de vida. Os médicos acertam o diagnóstico, mas falham por não entender o ser humano em sua individualidade. Recomenda o autor a urgência da psicologia àqueles que “uniformizam” o paciente, não o vendo como uma pessoa, única e fragilizada em seu extremo limite físico-psíquico. Conversar com o doente, transmitir-lhe a verdade sem a frieza tão comum, eis o que muitos médicos deveriam aprender. Vitor passou por momentos estressantes frente aos doutores. Em acréscimo, considera as dificuldades que determinados Planos de Saúde impõem aos segurados portadores de câncer, doença muito dispendiosa. De maneira coloquial, os curtos capítulos servem de guia para cancerosos e para todos aqueles que queiram evitar a doença. Regime alimentar, exercícios, meditação são vários os temas abordados pelo autor na busca do encontro de uma vida saudável.
Outros livros mais foram escritos por Vitor, já sob a aura de visão espiritualista que o budismo lhe proporcionou. Conheceu Sua Santidade o Dalai Lama, freqüenta monastério ao norte da India e desempenha um humanitário trabalho junto às comunidades e às crianças em Curitiba. Curado fisicamente, e espiritualmente um outro homem, Vitor Caruso Jr. terá muito a transmitir neste nosso país tão carente de valores voluntários e desinteressados.
Saí substanciado após nosso diálogo e li com interesse seu livro. Continuarei com meus exames periódicos, mas a esperança que foi dele, e é minha também, leva-me sempre a acreditar. Nós temos forças que na realidade mal conhecemos. Caminho a ser percorrido, olhar confiante e a crença na ajuda de um Poder Maior. Nossa vida transforma-se. Quantas não são as coisas que entendíamos fundamentais que perdem completamente o significado. E quão importante são os laços de sangue, os entes solidários. Vitor tem a bela família e o aprofundamento espiritual; eu, igualmente a preciosa família, a música, que é meu descortino diário, e o convívio que tanto amo na minha cidade bairro, Brooklin-Campo Belo. Somos peregrinos a entender que o tempo que nos é dado caminhar nada mais é do que uma grande dádiva.

My chance meeting with Vitor Caruso who, after a Hodgkin’s lymphoma, left the constant strain of a job in a multinational corporation, becoming a Buddhist and a yogi with a high level of spiritual insight. He is the author of a number of books on philosophical and spiritual subjects, among them “Com Qualquer Um de Nós” (To Anyone of Us), a story of his successful struggle against the lymphoma. The book involved me completely because I have a non-Hodgkin’s lymphoma myself and drew a parallel between his experience and mine. Like Vitor Caruso, I believe that determination and faith are the weapons to carry us through this battle.

Problemática e Possíveis Soluções

Clique para ampliar.

Quando teço reflexões a respeito
de meus sucessos e meus fracassos,
constato uma ligação estreita entre a vida que eu levava
durante os dias a precederem o resultado final.
O repouso, o estado de saúde,
o equilíbrio do corpo e do espírito são condições da realização
.
Henrich Neuhaus (pianista e pedagogo)

Em post bem anterior abordei um mal físico que pode afetar os intérpretes de maneira temporária ou definitiva (vide L.E.R. – Lesão por Esforço Repetitivo, 16/11/07). Muitos são aqueles que, diante de empecilho a afetar dedos, mãos e braços, desiludem-se, frustram-se e buscam caminhos incertos.
Há contudo um mal comum à quase totalidade dos músicos, atores, bailarinos, atletas e acrobatas, possível de ser bem administrado durante toda a trajetória, mas a provocar, em pessoas mais sensíveis, danos irreparáveis na seqüência de seus desempenhos. Refiro-me ao medo do palco, le trac, em francês.
Dois livros exemplares, abordando essa presença que pode levar à insegurança total, esclarecem pontos até obscuros da problemática, e expõem várias categorias de tratamento (André-François Arcier. Le Trac: le comprendre pour mieux l’apprivoisier e Le Trac: stratégies pour le maîtriser. France, Alexitère – Collection Médicine des Arts, 1998, 288 págs. e 2004, 271 págs., respectivamente). Se no primeiro Arcier fixa com clareza fatores prováveis a favorecerem a inibição e aponta meios de administrar e até dominar a terrível, mas majoritária, presença do medo, no segundo, escrito alguns anos após, alarga as possibilidades de tratamentos, que se estendem desde medicamentos alopáticos, entre os quais as benzodiazepinas e os beta-bloqueadores, àqueles alternativos, como a homeopatia, a fitoterapia e a acupuntura. Aborda estratégias corporais que podem efetivamente levar à diminuição das tensões, como os métodos Feldenkrais e Jacobson ou a técnica Alexander, ou ainda o Yoga e outras práticas orientais. Pormenoriza as técnicas relaxantes, a sofrologia e penetra na seara da programação neurolingüística e do desenvolvimento da auto estima. “A estima de si mesmo se aprende e se cultiva” como afirma o autor, finalizando pelas estratégias comportamentais e cognitivas.
O domínio da angústia que antecede a apresentação pública é uma das preocupações de médicos, psicólogos, psicanalistas e especialistas nas muitas vertentes que levam ao relaxamento físico e mental, no desiderato de, através de estudos cada vez mais aprofundados, ao menos atenuar a real ansiedade que existe entre músicos, atores, atletas e outros, que têm de se defrontar com um público, seja este leigo ou especializado, entre os quais uma Comissão Julgadora quando de concursos tipificados. Arcier focaliza preferencialmente os músicos solistas ou de orquestra e atores, daí o palco ser o epicentro a causar a euforia, a plena realização ou o desequilíbrio físico-emocional que prejudica a performance. Os trabalhos de André-François Arcier poderiam ser entendidos como simplesmente acadêmicos, não fosse a quantidade apreciável de depoimentos fulcrais, de músicos e atores da maior respeitabilidade, que aprenderam a conviver com a aflição, entendendo-a, administrando-a da maneira a mais razoável possível e, em muitos casos, buscando auxílio médico, psicológico ou relaxante. Que le trac existe, existe. Ao apresentar estatísticas entre músicos de orquestra, é considerável o número daqueles que sofrem de ansiedade pré-apresentação.
Diferentes tipos de angústia exigem tratamentos variados, pois jamais o medo tem característica padrão, apresentando infinidade de nuances, conforme os perfis estudados por Arcier. Gráficos estão sempre a apontar, numa simplificação para o leitor, as modalidades, resultados, estatísticas. Quando segmentos do corpo humano são apresentados, locais onde nasce e age le trac são pedagogicamente explicados.
Há aqueles para os quais o palco tornou-se um terror. Muitas carreiras tiveram de ser interrompidas pela não adaptação à realidade necessária à performance, pois em cena a tensão pode traduzir-se em obstáculo insuperável. Determinados medicamentos alopáticos, como exemplo, podem ter eficácia para o executante de um instrumento e não para um cantor, outros podem agir atenuando transpirações pré-apresentação, batimentos cardíacos acentuados, problemas no aparelho digestivo, todos ocorrendo nos momentos que precedem a representação.

Clique para ampliar.

André-François Arcier penetra fundo em todos os possíveis traumas causadores do trac, passível de múltiplos tratamentos. Não obstante o “medo” do inesperado existir para todos os que enfrentam o palco, o autor preocupa-se com aqueles para os quais a ansiedade ultrapassa a razoabilidade. Considera também que a ausência absoluta do medo pode caracterizar até um outro tipo de anomalia.
Traumas oriundos da infância, quando de apresentações não satisfatórias; pressão dos pais nessa antevisão do menino prodígio a provocar no futuro a idiossincrasia absoluta pelo palco por parte do jovem, já não mais uma revelação; a insegurança frente a um repertório musical ou teatral; a presença de um público competente; a banca examinadora de concursos; episódios múltiplos de ordem absolutamente individual, mas com antecedentes preocupantes; a necessidade – para muitos – de ser o melhor, o que os torna sensíveis à recepção que o público fará de suas apresentações; o terror das falhas técnicas ou do chamado “branco” em relação à memória, todos são fatores que levam intérpretes e atores ao stress, à instabilidade emocional frente ao público e, quando o limite é sentido, a algum acompanhamento médico, terapêutico, fisiológico, relaxante ou psicanalítico.
Quando o pianista canadense Glenn Gould asseverava não sentir le trac antes da apresentação, evidenciava contudo um problema em torno do medo, o pavor de verificar o seu batimento cardíaco aumentar – uma variante da ansiedade, causa provável que o levou a abandonar a apresentação pública, dedicando-se a certa altura da brilhante carreira unicamente às gravações. Teria sido esse sofrimento cênico que conduziria ilustres intérpretes, em períodos determinados, ao afastamento temporário ou definitivo do palco. Vladimir Horowitz teve traumas provocados pela ansiedade pré-apresentação. Martha Argerich confessa, segundo o exposto na obra de Arcier (2004): “Hoje, eu poderia muito bem deixar de dar concertos. É um ato contra a natureza. O prazer é tão raro. No palco não temos a naturalidade de quando em nossa casa, pois não realizamos os mesmos gestos com as mãos frias, há os joelhos que tremem, o nariz que escorre. A interpretação se modifica. E mais, o peso dos olhares sobre você… O efeito da multidão que te observa… julga. Eu não suporto mais ser prisioneira de uma programação, eu que hesito, tateio permanentemente… Hoje, quando te apreciam, fixam um novo encontro dentro de três anos. Eu tenho pesadelos ao pensar”. A grande pianista refere-se às temporadas musicais acima do equador, sempre agendadas com enorme antecedência. Por sua vez, o extraordinário pianista Georges Cziffra afirmou que “adentrar um palco é um ato de coragem. É nesse instante que reside a fragilidade do intérprete. Leva-se uma mensagem que tem de ser passada em hora precisa, por vezes fixada anos antes, sendo um paradoxo que oscila entre a ação de graça e o suplício de Tântalo”. A uma pergunta a respeito do prazer de tocar em público, o pianista Murray Perahia afirmaria: “Não, não é um trauma, se bem que sinto le trac que não é tão indolor como eu desejaria, mas a música é comunicação e é comunicando-se que aprendemos, daí serem necessários os concertos”. E a convivência com essa angústia indesejada, mas sempre presente, seria um fato. Talvez possamos entender as considerações do pianista francês Jean-Philippe Collard citadas por Arcier como uma síntese existente do medo do palco. Considera Collard le trac um companheiro que o pianista conhece bem, entendendo-o necessário, impedindo-o, por vezes, de exprimir-se como gostaria. E afirma: “um companheiro que torna algumas apresentações dolorosas comparadas à fugacidade dos instantes de embriaguês impalpável que existem apenas na geografia de uma sala”.
Entre músicos e atores, a ansiedade pode advir no instante a preceder a apresentação, ou horas, dias ou meses antes de um evento. Dependerá das estruturas mentais de cada artista. Haveria, como afirma André-François Arcier, a necessidade não de suprimir le trac, mas de domesticá-lo. Saber entender que a existência do medo a preceder a apresentação faz parte dessa íntima relação intérprete-público é compreender não apenas a responsabilidade do artista frente àqueles que estão ávidos por receber a mensagem, como também entender a fragilidade humana perante o desafio.

A few comments on two books written by the French doctor André-François Arcier, a research on the causes and effects of stage fright – “trac” in French, the performance anxiety to some extent affecting all performers, from beginners to professionals, when they step on-stage – and a variety of strategies to control it.