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Criação, Trajetória, Novos Horizontes

Revista Música (1990-2007). Vinte Números.

Ainsi n’écoute jamais ceux qui te veulent servir
en te conseillant de renoncer à l’une de tes aspirations.

Antoine de Saint-Exupéry

No longínquo 1990, a Revista Música foi criada. Lutei por essa conquista a partir de meu ingresso na Universidade de São Paulo, em 1982. Desde o primeiro número, publicado em Maio daquele ano, estive como editor responsável, a ter como assistente o colega Marcos Branda Lacerda.
Pareceu-me sempre muito perigosa a premência pela produção acadêmica por parte dos Institutos de Fomento e das Universidades Públicas, prática nacional que obriga aqueles que seguem caminhos universitários a publicar em prazos certos, mas com resultados tantas vezes incertos. O açodamento leva à quantidade, não à qualidade. Soma-se um item ao currículo individual, mas a densidade, ou mesmo, num sentido mais originário, a vocação ficariam constantemente à margem, pois itens desconsiderados numa avaliação simples. Desta maneira, parte considerável das publicações universitárias estaria a abrigar artigos rigorosamente descartáveis, mas “indispensáveis” à somatória que será avaliada em tantos sentidos a beneficiar interessados: curricular, concursos, possibilidade de viagens para participação em Congressos, estágios prolongados visando a doutorados ou aos chamados pós-doc, obtenção de bolsas individuais ou aquelas a atender a projetos temáticos ou outros mais, que adquirem designações dependendo dos dirigentes acadêmicos de plantão. Acumulam-se dissertações e teses nas muitas universidades brasileiras sem o embasamento necessário, mas que atenderam aos requisitos institucionais e responderam aos relatórios extensos e friamente burocráticos (vide O Drama da Pós-Graduação, 21/06/07). O governo rejubila-se ao apresentar índices crescentes relativos à pós-graduação e às somas que foram dedicadas à pesquisa. Dados estatísticos tantas vezes tergiversantes.
Na minha área específica, sucessivas viagens ao exterior fizeram-me entender que uma publicação acadêmica no Brasil necessitaria de permanente diálogo com outros países, onde a Música tem raízes sólidas e aprofundamentos fazem-se sentir há milênios. Precisaríamos de longo debruçar nessa busca de conhecimentos diferentemente orientados, a enriquecer toda uma comunidade universitária. O excelente compositor Aurelio de la Vega, então professor da Universidade da Califórnia, em entrevista lapidar a mim concedida e publicada no saudoso “Cultura” de O Estado de São Paulo (nº 309, ano V, 18/05/86, págs. 11-12), ao discorrer sobre a criação erudito-musical do Brasil, afirmou que “o isolamento pronunciado em que se mantém o compositor brasileiro é perigoso, pois cria uma atmosfera cômoda de autocomplacência, afugenta a comparação crítica, muitas vezes proveitosa, e rebaixa com os anos o nível técnico-criativo do compositor”. Mutatis mutandis, essa prática autocomplacente não teria penetrado em outras áreas musicais, como as referentes a teses, artigos, performances, em que uma atitude condescendente existe? As Revistas sobre Música no Brasil não estariam exageradamente acalentando uma extensa rede musical endogênica? Não haveria, por falta de diálogos mais abrangentes com o Exterior e pela necessidade da publicação brasileira que leva a pontuações nos currículos apresentados aos Institutos de Fomento, uma espécie de perigosa reserva de mercado?
Não foi fácil estabelecer parâmetros porcentuais aos artigos internacionais, que pudessem ao menos indicar pensares outros, constantemente trazendo subsídios de grande valia para a ampla área da Música, seja na teoria, na musicologia como um todo ou na interpretação. Sofri críticas as mais díspares por ter insistido nesse caminho, que entendo profícuo à ventilação de outros conhecimentos. Esse olhar diferenciado não apenas nos enriquece, como provoca a necessidade do aperfeiçoamento. Frisaria que, ao buscar a excelência – inúmeras vezes presente entre nossos estudiosos -, deparamo-nos com o choque, pois são múltiplas as tendências além-fronteiras. Nesse desiderato, mantivemos no idioma original artigos escritos em inglês, francês, espanhol e italiano, pois são as línguas mais familiares aos estudos universitários.
Mencionemos, como reconhecimento, os colaboradores internacionais nestes dezessete anos, seguindo a cronologia da Revista Música. São eles: Günter Mayer, Karlheinz Stockhausen, Mario Lavista, Wilhelm Zobl, Bruno Prunés, Myriam Chimènes, Aurelio de la Vega, Giuseppe Chiari, Keith Swanwick, Kwabena Nketia, Vincent Déhoux, Massimo Caselli, Humberto D’Ávila, Kasadi Mukuna, J.M. Bettencourt da Câmara, Ricardo dal Farra, Juan Pablo Gonzáles, Robert Blackburn, Jorge Peixinho, Antônio Sérgio Azevedo, Didier Gigue, Anik Devriés-Lesure, Caroline Rae, Enrico Fubini, Pierre Boulez, Angela Tosheva, François Lesure, Herman Sabbe, Rui Vieira Nery, José Maria Pedrosa Cardoso, Nancy Lee Harper, Elisa Lessa. Quanto aos estudiosos brasileiros, inúmeros estiveram a enriquecer o conteúdo da publicação com artigos que se tornaram referências. Dentre os autores responsáveis por artigos argutos e originais, sempre em ordem cronológica: Marcos Branda Lacerda, Régis Duprat, Walter Zanini, Maurício Dottori, Paulo Chagas, Carlos Tarcha, Celso Mojola, Paulo Costa Lima, Paulo Castagna, Arnaldo Daraya Contier, Mario Ficarelli, José Paulo Paes, Gilberto Mendes, Lorenzo Mammi, Enio Squeff, Willy Corrêa de Oliveira, Luiz Tatit, Antônio Luis Cagnin, Pedro Paulo Salles, Luís Antôno Giron, Paulo Roberto Peloso Augusto, Marco Antônio da Silva Ramos, Ricardo Tacuchian, Susana Cecília Igayara, Ecléa Bosi, Benedito Lima de Toledo, Mario D’Agostino. A qualidade dos artigos tem servido de fonte importante para tantos outros estudos e de luz para pesquisas de destaque.
Importa considerar que a Revista Música jamais, friso, jamais solicitou ajuda aos Institutos de Fomento do Estado ou do Governo Central. Sim, é muito difícil a sobrevivência sem o auxílio oficial. A fim de que não houvesse quaisquer interferências, seja através de pareceres por vezes estranhos, seja pela enorme burocracia a levar à publicação, seja nessa característica da Revista Música de forte alento aos artigos qualitativos internacionais, estando eu desde 1990 como editor responsável sempre mereci a generosa acolhida, em oportunidades distintas, dos diversos órgãos da Reitoria da Universidade de São Paulo e da Escola de Comunicação e Artes da U.S.P., assim como a atenção cuidadosa da Editora da Universidade, a EDUSP. Isso nos deu liberdade da escolha, a busca sine qua non da não concessão e o interesse claro de ilustres musicólogos além-fronteiras pela austeridade de propósitos. Sendo uma publicação do Laboratório de Musicologia do Departamento de Música da ECA-USP, Laboratório este que esteve sob minha coordenação até fins de 2007, houve sempre uma simpatia das lideranças universitárias pela publicação, pois sabiam de nosso norteamento, assim como de nossas dificuldades.

Acabo de atingir a compulsória e deixo a função de editor responsável. O número ora publicado é o último sob minha coordenação. Assume Marcos Branda Lacerda, competente professor e especialista em etnomusicologia. Sugeriu-me continuar como membro do Conselho Editorial. Não aceitei o sincero convite, por entender que rumos novos deverão advir e que o meu tempo como responsável encerrava-se com o número ora lançado. Sob nova orientação, certamente trilhas outras serão tomadas, oxalá altamente positivas. Faz parte do caminhar. A sensação, ao ver as lombadas dos vinte números reunidos, traz-me reconforto, pois percorro com o olhar todo um longo trajeto que surgia da idéia, do convite ao articulista, das revisões necessárias e do lançamento. Foram dezessete anos de fervor.
Deixo pois registrado o grande carinho que sempre mantive pela Revista Música. Cada exemplar significou, para este professor que atinge hoje a aposentadoria, uma categoria de felicidade possível. Outros compartimentos estão a proporcionar-me alegria de viver. A todos os que colaboraram, fica o meu profundo respeito e gratidão. Sem as contribuições preciosas, a Revista Música não teria razão de existir. E na certeza da permanência da publicação, conduzida pelo pensar de Branda Lacerda, renova-se a esperança de continuidade com qualidade. Que o canto das sereias não o perturbe. Assim espero.

After entering the University of São Paulo in 1982, I founded in 1990 a music periodical, “Revista Música”, published on behalf of the Department of Music by EDUSP (the University Press). I have been its chief editor from the beginning until now, when I am retiring from my position at the University. The present issue is a major milestone for me, for it is the last under my supervision. My aim has always been to publish creative writing on music by welcoming first-rate contributors from a variety of disciplines, countries and theoretical perspectives. I believe it is through interaction with others and confrontation of ideas that we construct new meanings, thus the importance of the articles by foreign authors, who brought new ideas and approaches. My thanks to all who have made “Revista Música” possible. The ethnomusicologist and fellow professor Marcos Branda Lacerda will succeed me as chief editor. I wish him well.

Yasmina Reza (1959- )

Nicette Bruno e Paulo Goulart em 'O Homem Inesperado' de Yasmina Reza. Foto Beti Niemeyer.

Voilà la méchanceté du temps. Ce qu’est le temps.
Le temps: le seul sujet.

Yasmina Reza (Hammerklavier)

Há muito tempo não ia ao teatro. Minha filha Maria Beatriz assistira à peça O Homem Inesperado, de Yasmina Reza, encantando-se com o texto e também com a atuação de Nicette Bruno e Paulo Goulart. Ofereceu-nos os ingressos, como presente aos pais pela passagem dos 45 de casamento, a dizer-nos que ficaríamos fascinados igualmente. Confesso ter relutado inicialmente, por evitar sair à noite em São Paulo, mas fui com Regina ao Teatro Renaissance.
Conhecia a importância de Yasmina Reza, nascida em Paris, filha de uma violinista húngara e de um engenheiro e músico amador russo-iraniano de origem judaica. É autora de récits relevantes e peças de teatro. Algumas são montadas com freqüência nos países em que o teatro é tradição enraizada. Lera Hammerklavier (Paris, Albin Michel, 1997, 120 págs.), “Art” e L’Homme du Hasard ora em questão (Théatre: L’Homme du hasard, Conversations après un enterrement, La Traversée de l’hiver, “Art”. Paris, Albin Michel, 1998, 251 págs.). Confesso preferir ler textos teatrais a assisti-los ao vivo. Talvez essa prática tenha origem nos retornos que realizo quando de frases entendidas essenciais e nas encenações criadas em meu imaginário.
Quando da visita a Hammerklavier, a curiosidade maior veio do título homônimo da Sonata para piano op. 106 de Beethoven, obra monumental. A ascendência musical de Yasmina Reza poderia parecer pouco importante, não fosse a ligação afetiva que manteve com seus progenitores, a receber toda uma herança sonora que perpassa por seus textos, não na superficialidade facilmente detectável, mas num conhecimento de escutas atávicas. Hammerklavier é um conjunto de curtas narrativas basicamente autobiográficas, constância da autora, a revisitar desde o passado longínquo, enriquecido por lembranças afetivas nas quais seu pai sobressai. Escrito dois anos após L’Homme du Hasard, não deixa a autora de colocar os problemas do cotidiano, existenciais em sua essência, de maneira a revelar, sem barreiras, o seu pensar do instante, pois nada parece ficar nebuloso, antes mostra-se despojado, sem censura. Nessa narrativa, parte de um repertório da música sacralizada, motivo de recordações, é projetado nas intenções de Yasmina Reza. Beethoven, Schubert, Haëndel, Mozart, Stockhausen são ouvidos em concerto e a lembrança de seu pai emerge. A referência a Hammerklavier faz-se necessária para o melhor entendimento de O Homem Inesperado, pelas reiteradas menções à música e a compositores e pelas reflexões sobre a existência.
Quanto a L’Homme du Hasard, O Homem Inesperado na tradução de Flávio Marinho para o Português, tem-se um texto de humor aparente. Contudo, é bem mais perspicaz. Poder-se-ia entender como um acúmulo de situações humanas não resolvidas, mas a atingir com o desenrolar da peça o final feliz. Um primeiro impacto já é salutar. Sabe-se que a concentração estará voltada ao texto e à interpretação de dois atores. É uma salvaguarda para a não dispersão das idéias, a depender da qualidade dos intérpretes. O tema aparentemente é banal: Paul Brodsky e Marta, ele um escritor famoso, ela uma mulher de classe média com aspirações absolutamente rotineiras, leitora anônima das obras do autor à sua frente, não se conhecem e estão sentados em poltronas vizinhas num comboio que os levará de Paris a Frankfurt. Durante o decorrer da peça, até quase o seu fim, tem-se solilóquios alternando preocupações do homem de nossos dias, solidão, carência afetiva, hesitação, neurastenias, não aceitação da velhice, frustrações existenciais, mas a contrapor momentos de fina dose de humor. O Homem Inesperado revela a morna angústia do homem urbano, sua indiferença diante dos outros, seu egocentrismo de contágio.
A evidenciar a familiaridade com a música, Yasmina Reza menciona compositores e seus atributos na fala de Paul Brodsky: Debussy em duas peças sacralizadas que ele dedilha, a impossibilidade de poder tocar L’isle Joyeuse ou obras de Scriabine, ou ainda Scarbo, de Ravel, sua dificuldade no uso dos pedais, sentindo-se bem em não usá-los em um Impromptu de Schubert. Menciona Cenas da Floresta, de Schumann, também uma melhora de sua mão esquerda graças a Bach e o melhor desempenho de seu amigo Youry Kogloff ao tocar. Pensa: “Fácil ouvir os outros, ouvir-se a si mesmo, eis a dificuldade”. Nesse monólogo interior, a comparação com Youry é musical; no início da peça, refere-se a uma relação amorosa do amigo com uma japonesa. Desvantagens a ferirem Paul Brodsky.
Todo texto teatral depende fundamentalmente de fatores que interferem na apreensão de conteúdos. Mais focalizado o aspecto extratexto, menor a captação de mensagens. A globalização fomentou egos exagerados, que privilegiam encenações de impacto, deixando o essencial em segundo plano. Meritórias pois a direção de Emílio de Mello e a cenografia e concepção de imagens de Marcos Flaksman para a edificação de O Homem Inesperado. Chegou-se ao multum in minimo, a proporcionar a plena valorização do texto de Yasmina Reza.
Admiro há décadas o talento e a vocação para o teatro de Nicette Bruno e Paulo Goulart. Conservando a essência do DNA cênico, apesar de atuarem freqüentemente em novelas televisivas, não se deixaram contaminar, quando na ação teatral ao vivo, pelos vícios daquele meio, amálgama de joio e trigo, onde o talento de alguns grandes atores e a mediocridade plena de outros convivem num universo repetitivo. Versáteis, íntegros e competentes, Nicette Bruno e Paulo Goulart estiveram extraordinários em suas representações. Domínio da cena, dicções perfeitas a nada se perder, carisma insofismável do casal ficam evidentes. O texto inicial de Paulo Goulart e o brilhante final de Nicette Bruno testemunham maestria absoluta. É um privilégio poder assisti-los em peça teatral que poderia tornar-se verdadeira armadilha, não fossem suas qualidades maiúsculas. Comovente performance.

Ouça por J.E.M.:
- A. Scriabine – Estudo op.8 no.12 (Pathétique)
- R. Schumann – Humoresque op.20 – Einfach
- Claude Debussy – Pour les tierces

I am not a theatergoer – for me plays work better on the page than on the stage. But I was given tickets for Yasmina Reza’s “The Unexpected Man”, as a wedding anniversary gift from my daughter. So I went to see the play with my wife – reluctantly, I must confess. I was already familiar with the works of the French playwright and novelist Yasmina Reza, having read two of her books: the play “Art” and “Hammerklavier”, a collection of autobiographical sketches showing the affectionate relationship with her father and their love of music. The title refers to one of the most challenging of Beethoven’s piano sonatas. As to “The Unexpected Man”, my initial reluctance turned into bliss. The plot is simple: an understated woman (Martha) sits opposite a famous writer (Paul Brodsky) that she admires while traveling on a train. As they observe each other silently, the audience listens to their thoughts in a series of alternating interior monologues about man’s solitude, doubts, emotional disorders, frustrations, the barriers one erects against each other, all tempered with a subtle sense of humour. Only at the very end the couple will exchange a few words. Reza’s familiarity with music is stated in Paul Brodsky’s mentioning of a series of pieces by great classical composers. The work of the production crew is praiseworthy, but what makes the play outstanding is the superb performance of two great actors – Paulo Goulart and Nicette Bruno – displaying talents shaped during lives on the stage. It was a privilege to watch actors of this caliber in a play that in less competent hands could turn into a trap. Their standard of acting is sheer delight.

Reflexões sobre a Essência

Antoine de Saint-Exupéry (1900-1944)

Mais l’amour de la danse
n’est point amour de toi qui danses.

Antoine de Saint-Exupéry

Já abordei o fascínio inicial que me conduziu à leitura de Citadelle, de Antoine de Saint-Exupéry, e o fato marcante que me levou a eleger naturalmente o livro como preferencial após o acúmulo de tantas outras leituras no peristilo dos setenta anos (vide Antoine de Saint-Exupéry, categoria Literatura, 09/11/07). A complexidade da obra, a atentar para todas as possibilidades do homem, destino, almejos, condições, aspectos envolvidos in conditio sine qua non sob o manto da responsabilidade, merece apreciações. Tenho-a sempre em meu quarto, ao lado do livro percorrido no momento. Sendo uma enciclopédia da essência humana em suas manifestações mais amplas, livro eleito pois, visito excertos com constância. Trazem-me a paz interior necessária para outro percurso, a obrigatoriedade do sono. Ao longo, como já observara, transcreverei trechos, transmitindo ao leitor conceitos fundamentais desse extraordinário pensador que foi Saint-Exupéry.
Estava a trotar pelas ruas de minha cidade-bairro, como faço três vezes por semana, quando o olhar encontrou algo que me ligou a olhares anteriores de Citadelle e a analogia se fez. Um pedinte, aparentando a minha idade, tocava um pequeno tambor e angariava alguns trocados. Passei por ele no meu lento correr, deixei umas moedas e continuei. Veio-me imediatamente uma passagem de Citadelle inserida no capítulo CIV. Saint-Exupéry escreve: O selvagem acredita que o som é somente emitido pelo seu tambor. E ele adora o tambor. Um outro acredita que o som está nas baquetas e ele adora as baquetas. Um último acredita que o som é devido à pujança de seu braço e o verá orgulhoso com o braço erguido. Você reconhece, sim, você, que o som não está nem no tambor, nem nas baquetas nem nos braços, e denominará verdade o toque de tambor (leia-se interpretação) do tamborileiro.
Tantas décadas acumuladas e mais me dou conta de que caminhamos para a “glorificação” do estereótipo, de tudo aquilo que possa causar impacto. Mídia, holofotes potentes, a necessidade absoluta do emergir sem atender à ética. O homem tem que ser visto, bajulado, incensado, e os valores intrínsecos ficam à deriva. Compactuando com setores privados, o meio político distorcido, a acalentar a corrupção endêmica, antítese de captações morais e éticas. Perdemos o norte pela instauração da mentira como prática e norma. Tambor, baquetas e braços fortes continuam em escala geométrica a prevalecer sobre o verdadeiro toque do tambor, a essência essencial a motivar a transmissão. O pensamento metafórico de Saint-Exupéry serve para todas as áreas.
Na Música, por exemplo, quando o enfoque é menos voltado à real qualidade da interpretação e mais à promoção. Esses traços mais e mais se tornam dominantes a mostrar que dificilmente haverá retorno.
Tambor, baquetas e braços, nessa alegoria, sintetizariam o próprio Sistema, não interessado nos aprofundamentos que possam levar à elevação cultural de um povo, mas ao que é aparente, que brilha, que anestesia. Os governos em nosso país, sejam eles quais forem, voltam-se impreterivelmente à manutenção de um status quo para populações que não reivindicam com firmeza, por absoluta letargia, os atributos ou direitos a formarem a noção de cidadania sob todas as égides. Jornais e revistas estão sempre a buscar anunciantes que deságuam publicidade voltada à coletividade, entendida esta como desprovida de quaisquer julgamentos críticos. As propagandas estarão a compor o todo, povoado por tantos artigos visando ao sensacionalismo ou ao vazio das idéias; os canais abertos, salvo raríssimas exceções, exibem programas endereçados preferencialmente àqueles incapazes de apreciação mais ajuizada. A grade televisiva volta-se ao dirigismo do não pensar. Exterminaram-se princípios voltados à cultura como meio de elevação de um povo. Como exemplo, os grandes shows de “música” popular reúnem milhares de pessoas, que movimentam seus braços atendendo aos apelos previamente ensaiados no culto a ídolos descartáveis. Lembram as multidões “eufóricas” em seus gestos nos tempos de Hitler. Em ambos os casos, a presença da distorção. E as televisões insistem em pormenorizar gestuais. O gesto coletivo que inibe a reflexão.
Saint-Exupéry, nesse mesmo capítulo, continua: aquele que lê uma carta de amor sente-se lisonjeado independentemente da tinta e do papel, pois ele não buscava o amor nem no papel nem na tinta. Perde-se o conteúdo, quando esse princípio do essencial desaparece. Mais e mais volta-se o homem à tinta e ao papel. A mensagem contida teria pouca importância.
O piloto, escritor e pensador, personagem de um império imaginário e atemporal que é Cidadela, entende que seu reino não poderia ser jamais entregue ao geômetra que venera o triângulo usado para projetar a construção do templo. Há essencialidades na maneira de comandar um povo, e estas perdem o sentido na medida em que se desviam da compreensão intrínseca das reações humanas. Não estaríamos, mais acentuadamente em nossos dias, afastando-nos da própria natureza do homem? Não teria perdido ele, nessa globalização sem retorno previsível, a percepção da individualidade, integrando-se à massa informe de um rebanho sem nome? Não necessitaria o homem repensar, se ainda há tempo, todos os valores que o norteiam? Perguntas que surgem enquanto continuo minha lenta corrida pelas ruas de minha cidade-bairro, o Brooklin.

As I was jogging in my neighbourhood, I passed by a beggar playing a drum. In a flash a passage of Saint-Exupéry’s book Citadelle (The Wisdom of the Sands) came to my mind. The main character wonders from where the sound of a drum comes. Is it from the drum itself? From the sticks? From the player’s arms? Just to conclude it comes from the drummer’s interpretation.This was the starting point of this post, a consideration on the modern society tendency to promote the false and shallow to the detriment of the genuine and substantial. Shouldn’t we rethink our values, searching for the hidden essence behind the superficial appearance?